Marília Mendonça era de fato um fenômeno. Não pelos 36 milhões de seguidores ou pelo recorrente topo nas paradas de sucesso. Mas porque conseguia como nenhum outro artista cantar a vida cotidiana de mulheres comuns, com seus dramas e contradições.
Patricia GalvãoDiretora do Sintusp e coordenadora da Secretaria de Mulheres. Pão e Rosas Brasil
sábado 6 de novembro de 2021 | Edição do dia
Foto: Reprodução: Instagram/Gossipdodia
Não à toa, em cada canto do país alguém cantarolava suas músicas. Ela falava de amores perdidos, algo que ficou conhecido como sofrência e que tinha um tom pejorativo. Os grandes clássicos da música nacional ou internacional sempre falaram de corações partidos. Mas, as músicas populares eram desdenhadas pela indústria cultural. A exaltação de baladas clássicas de Edith Piaf a Michael Bublé, teve que se curvar a fenômenos como Marilia. Não por causa de um refrão chiclete, que não é exclusividade das músicas populares. Mas porque a canção que entoava com um voz rouca e potente conseguia expressar em poucas palavras dramas profundos como a traição e competição entre mulheres, o drama da amante, a violência doméstica e a prostituição.
Em um artigo da Folha, o colunista Gustavo Alonso faz uma análise rasa de um fenômeno como Marília. Além de desqualificá-la como cantora, algo bastante discutível para aquela chamada de Adele brasileira, há um certo desdém com o estilo musical. Embora a própria cantora tenha refletido sobre o trabalho de compositora que exigia uma produção em massa de hits, algo que a indústria cultural se encarregou de cobrar de qualquer artista, suas letras não eram simplesmente um choro desolado de uma mulher traída. Elas também expressaram em algum sentido o que foi a primavera feminista que varreu o mundo. As grandes marchas de mulheres, o grito de nenhuma a menos (Ni una menos), o Me too, representavam o grito contido por séculos de opressão. E Marilia, com suas contradições, foi parte de expressar esse grito Brasil afora.
E nadava contra a corrente num meio extremamente machista e conservador do agronegócio e da música sertaneja, que se apoia na negação da discussão política, especialmente entre as mulheres, como se o sofrimento cotidiano não se ligasse à política de avanços e retrocessos em relação às mulheres. Quando em 2018 Marilia aderiu ao #EleNão foi atacada por seu público e amigos do meio sertanejo. Se desculpou por trazer a política para a vida artística. No entanto, fez música contra a violência doméstica depois do escandaloso caso do DJ Ivis que espancou sua esposa. Fez música sobre a realidade de prostitutas e toda situação de exploração e opressão que vivem.
Alonso afirma que seu visual não era atraente. Marilia não era gordinha (o diminutivo trata como um defeito uma questão estética). Ela era gorda, o que não a impediu de marcar sua presença com imponência nos palcos sem esconder o corpo. O famoso cropped que vestiu foi um foda-se, nas suas palavras, aos críticos do seu corpo. Depois ela fez cirurgia e emagreceu, o que não é um problema, ainda que possa ter feito fruto da pressão estética da nossa sociedade que estabelece padrões inalcançáveis de beleza. Contradições da qual as mulheres não estão imunes, mas a briga não é com a balança, é com o sistema que nos mede por centímetros de cintura, quilos de gordura e data de validade.
Marilia tinha suas contradições, algumas das quais admitiu e buscou entender, como o comentário transfóbico que fez em um espetáculo. Também se calou quando um amigo pessoal e colega de profissão foi racista e homofóbico em rede nacional no reality show do BBB 21. Essas contradições demonstram uma artista conectada com seu tempo, pressionada pela indústria cultural, mas que com suas canções conquistou o coração de muitas mulheres reafirmando a necessidade de sororidade entre as mulheres e a superação de uma vida de opressão.
Sua voz rouca e potente deixa saudades.
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