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RESENHA DE CURTA-METRAGEM | Vadiação

Com o olhar e o sentir de quem se enamora e flana pela vadiação, ainda sem praticar; de quem ao assistir a roda deixa os movimentos e os batuques permearem o corpo; de quem se permite desterrar do cotidiano pragmático para, por algumas horas, estar em lugar-outro, lugar-transe; é deste ponto externo, mas intrínseco, que parte esta resenha breve.

terça-feira 16 de junho de 2015 | 00:00

“Numa roda de gente eu sou pacato / Numa briga de morte eu sou sereno. / Arrodeio valente que nem gato / Estudando primeiro seu terreno. / Camará mas depois que eu tomo tato / Essa briga de morte vira treino./ Eu derrubo malandro, mas não mato / Foi meu trato com São Bento pequeno”.

Paulo Cesar Pinheiro

Esta resenha do curta Vadiação, originariamente, foi postada no blogue Diário de Ferro, onde achei importante levar o tema, já que se trata de um espaço para debater questões relativas a esportes. Ainda mais, em tempos onde se acirra a discussão entorno da regulamentação/profissionalização, e consequentemente, restrição da capoeira. Os pontos de embate podem ser sintetizados nas palavras da Mestra Paulinha; [1]

Argumentar que a capoeira deve ser considerada como cultura negra – evitando o uso das definições que tentam reduzi-la apenas ao esporte/luta ou folclore/dança – nos leva diretamente à reflexão sobre o que é cultura negra, e sobre qual é a relação desta com a etnicidade e as políticas identitárias.
(BARRETO, 2005, p.64)

Deste modo, no curta de Alexandre Robatto Filho (1908-1981), logo de início com os desenhos de Carybé (1911-1997) vemos saltar a multiplicidade cultural (e artística) da capoeira. Também no início salta o sentido dúbio do título, Vadiação, categoria essa instituída pós-abolição; de um lado o discurso jurídico: “vadiagem é específica a uma condição, simultaneamente, econômica e moral (sem moradia, meios de subsistência ou exercendo ocupação “imoral” ou desonesta)” [2]; de outro resignificando-a na capoeira como “um divertimento, uma oportunidade para vadiar (folgar, brincar, divertir-se), mesmo sem eliminar suas possibilidades como defesa pessoal” [3]

Entremeada aos desenhos e créditos, a ladainha envolve-nos na toada dos jogos prestes a ganhar corpo e imagem.

A força do curta está no enredamento de várias características que ganham potência com a fotografia de iluminação barroca – dramática, crua, enfatizando os contrastes de sombra, pele negra e vestimentas brancas – e as escolhas de enquadramento – ora planos abertos, ora intimistas, como o espectador fosse o próprio capoeirista.
Sendo o cinema também um modo de representar uma fração do real, ter um cineasta tratando um tema marginal contribuiu para o processo de internacionalização da capoeira que viria em menos de duas décadas; “quando muitos capoeiras brasileiros começaram a sair do País, a partir do início da década de “1970, para “ganhar o mundo” e trabalhar em grupos folclóricos no exterior, em busca de apoio e reconhecimento [FALCÃO, s/d, p.125].

Ao evidenciar e valorizar a capoeira como cultura afro-brasileira entrelaçamos a valorização do próprio corpo negro, já que “o segundo traço da violência racista, não duvidamos, é o de estabelecer, por meio do preconceito de cor, uma relação persecutória entre o sujeito negro e seu corpo” (COSTA, 1990, p.06). Assim, a luta antirracista é posta neste reconhecimento e pertencimento do sujeito com sua cultura, diminuindo a recusa, negação e a anulação do corpo negro em detrimento de ideais do ego branco.

Para além, o curta ainda conta com a presença de importantes figuras da capoeira baiana da época, tais como: mestres Bimba, Valdemar, Traíra, Curió, Nagé, Caiçara, Crispim e Bugalho. [4]

Fez falta para mim, enquanto mulher e negra, a participação feminina, que se limita à plateia. Isso se deve ao contexto histórico e aos espaços que precisavam ser conquistados. Entretanto, gostaria de destacar duas falas sobre a questão de gênero; a primeira trata da gênese da participação da mulher:

É difícil precisar a influencia que a mulher exerceu no desenvolvimento da capoeira como jogo/luta/dança/ritual ou trazer com exatidão o histórico de sua participação ativa porque a capoeira era de tradição agrafa e de domínio quase que exclusivamente masculino. Alguns estudos levantam a hipótese de que a coreografia dos movimentos da capoeira possa ter se originado numa dança de iniciação feminina. (BARBOSA, 2005, p.9)

E Mestra Janja [5], traz questões que ainda nos permeiam hoje;

Não é novidade para ninguém que a capoeira deixou de ser algo específico de homens, se é que algum dia o foi. Hoje há organizações de capoeira fundadas e lideradas por mulheres, ou mesmo grupos, sobretudo no exterior, em que as mulheres constituem a maioria dos praticantes. Entretanto ainda lidamos com um grande desequilíbrio de representatividade quando pensamos no reduzido número de mulheres que são promovidas pelo sistema de graduação. (...) Talvez seja este um bom momento para invertemos o prisma da questão: quais são os obstáculos que precisam ser vencidos pela capoeira para integrar de maneira respeitosa e qualificada a presença da mulher? Assim, podemos levar em consideração dois temas relevantes: a diversidade e a construção do direito à equidade. (ARAÚJO, p.1-2)

Na busca de curtas que tratassem da mulher na capoeira, encontrei algumas falas importantes, mas ansiando por uma representação fílmica como a que nos traz Robatto Filho em sua vadiação, que se múltipla em estilo, linguagens, abordagens e apropriações - como diz Mestra Paulinha – também o é em gênero.

Referência Bibliográfica

BARBOSA, Maria. J.S. A Mulher na Capoeira. Arizona Journal of Hispanic Cultural Studies, Volume 9, 2005, pp. 9-28.
BARRETO, Paula C.S. Evitando a “esportização” e a “folclorização”, a capoeira se afirma como cultura negra. Revista Palmares. Ano 1 , nº 01, Agosto/ 2005
COSTA, Jurandir Freire. Da cor ao corpo: a violência do racismo. In: SOUSA, Neusa Santos. Tornar-se Negro: as vicissitudes da identidade do negro brasileiro em ascensão social. Rio de Janeiro: GRAAL, 1983.
FALCÃO, José. A internacionalização da capoeira. Textos do Brasil, Brasília, nº 14, s/d.
TEXTOS do Brasil. Entrevista Senhora Rosângela C. Araújo (Mestra Janja). Brasília, nº 14, s/d.


[1Paula Cristina da Silva Barreto; socióloga, professora adjunta do Departamento de Sociologia da Universidade Federal da Bahia; coordenadora do instituto Nzinga de Capoeira Angola.

[5Rosângela Costa Araújo; Formada em História pela Universidade Federal da Bahia (UFBA) e Doutora em Educação pela Universidade de São Paulo (USP)





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