×

Tragédia em Petrópolis | “Se não houvesse tanto descaso do poder público estas mortes poderiam ser evitadas” – Entrevista com a geógrafa da USP Michelle dos Santos

A revoltante cena de mães a procura de seus filhos e entes queridos, famílias inteiras que morreram ou perderam tudo com os deslizamentos que ocorreram em Petrópolis na semana passada é símbolo de uma situação que se arrasta por décadas no Brasil. As enchentes e deslizamentos tomam os jornais todo verão. No ano passado enchentes na região metropolitana de São Paulo no começo do ano, deslizamentos em Recife no meio do ano e as tragédias na Bahia e em Minas Gerais foram amplamente noticiadas. E todos os anos vemos um rastro de vidas perdidas. A mídia tradicional dá ênfase às chuvas. No entanto, no Brasil, um país tropical, as chuvas são frequentes e longe de ser o principal problema em tragédias como vemos hoje.

quarta-feira 23 de fevereiro de 2022 | Edição do dia

Foto: AFP

No livro Memória e sociedade: Lembrança de velhos, de Ecleia Bosi, relatos que rememoram os meados do século XX remarcam as chuvas e enchentes que alagavam as casas. Em São Paulo a construção dos piscinões minimizou as enchentes em algumas regiões, mas a cidade ainda vive o caos nas épocas de chuva. Os deslizamentos, no entanto, continuaram a destruir casa e vidas de famílias inteiras.

A doutoranda em Geografia Física na USP, especialista em Geomorfologia e Climatologia, Michelle Odete dos Santos, explicou ao Esquerda Diário um pouco sobre porquê tragédias como a de Petrópolis acontecem.

ED - O que as tragédias como essa de Petrópolis, a que aconteceu recentemente na região metropolitana de São Paulo em Franco da Rocha, em Minas Gerais e na Bahia, tem em comum?

No geral, a característica mais gritante que existe em comum entre os locais onde ocorrem estes deslizamentos é que são áreas onde a população é pobre e possui poucos recursos técnicos e apoio governamental para fazer suas construções. Quando falamos em recursos técnicos, falamos em conhecimento de engenharia e materiais adequados, pois morar em uma área que é naturalmente suscetível a escorregamentos não é apenas uma opção, e sim uma necessidade dada a situação de moradia e especulação imobiliária no Brasil. Vemos, por exemplo, a cidade de Campos do Jordão: há uma área pobre, onde sempre há desastres do tipo escorregamentos, com muitas perdas de vidas humanas. No entanto, também há áreas onde existem construções de luxo enormes e as características geomorfológicas do terreno são parecidas como os das áreas mais pobres, ou seja, são também menos favoráveis à ocupação e não sofrem com esse nível de tragédia e mortes. Não digo que não há possibilidade de haver algum evento de deslizamento em uma área rica e que atinja áreas ocupadas, no entanto, quanto menor o acesso ao conhecimento, técnicas e materiais sobre como construir de maneira correta nestas áreas, maior a possibilidade de ocorrer desastres. E isto está intimamente ligado à necessidade de moradia de pessoas que são obrigadas a ocuparem terrenos menos favoráveis para construções, a falta de capacidade financeira em contratar profissionais especializados, pois são trabalhadores precarizados, com baixíssimos salários, além da total ausência do poder público para conduzir as construções.

ED – A mídia dá bastante peso para a questão das chuvas quando acontecem tragédias desse tipo. Dá para afirmarmos que a culpa foi da chuva? Choveu demais e por isso essas tragédias acontecem?

A chuva é um fenômeno natural que acontece anualmente aqui na costa do Atlântico, principalmente no Sudeste, mas pode se estender, devido a intensidade das massas de ar e dos ciclones que se formam no Atlântico, tanto para norte quanto para sul. Isso acontece devido a vários fatores. Não tem como culpar a chuva pelo estrago feito em uma área que deveria ser manejada e gerida de forma correta pelo poder público, onde obras de contenção e estruturas de escoamento de água deveriam ser construídas, a fim de conseguir drenar a água e estabilizar encostas em épocas de eventos chuvosos da magnitude que houve em Petrópolis, por exemplo.

Há estudos que conseguem prever com certa acurácia esses tipos de evento, a frequência em que eles possivelmente irão ocorrer e a intensidade das chuvas, através de monitoramento. Em posse desses estudos cabe aos governos tomar as medidas necessárias para prevenir os escorregamentos.

ED - As áreas chamadas de risco, elas são conhecidas pelos governos? Quem faz o mapeamento?

O Brasil tem um plano nacional de defesa civil, centro de gerenciamento de alerta de desastres naturais (Cemaden), defesas civis estaduais e municipais, além de diversos estudos, bancados pelos governos federais, estaduais e órgãos como a CPRM e o IPT, que apontam e monitoram estás áreas. O problema está em como os governos gerenciam e contingenciam os eventos. Os estudos, na sua maioria das vezes, não conseguem ser interpretados e utilizados devido a falta de trabalhadores com conhecimento técnico específico para tal, ou mesmo por falta de interesse em aplicar os estudos feitos. Ainda há a falta de conhecimento sobre os conteúdos. Um exemplo típico foi o que aconteceu em 2013, quando houve uma série de deslizamentos em Xerém, Duque de Caxias, no Rio de Janeiro. Eram todas áreas mapeadas, porém os mapas, assim como todos os outros produtos, como relatórios técnicos, se encontravam na secretaria de educação, pois, na leitura deles, mapas deveriam ter fim somente didático.

ED - Porque a ocupação das chamadas "áreas de risco" pela população acontece? Qual a responsabilidade dos governos em relação a essas tragédias?

É muito mais barato o poder público "esquecer" a pessoa pobre em uma área de risco do que remanejar essa população para um local decente ou mesmo fazer obras de contenção. Os locais mais adequados para as moradias, pela localização, infraestrutura, serviços e segurança, são alvos da especulação imobiliária que lucra milhões de reais com a compra e a venda de imóveis de alto padrão ou com moradias ditas populares que utilizam créditos e incentivos governamentais, mas que endividam o trabalhador que conseguem aderir aos financiamentos imobiliários pela vida. Ser pobre no Brasil é perigoso, sua vida corre risco de diversas formas, inclusive em função de uma chuva. A especulação imobiliária tem sim um papel decisivo para que estas pessoas sejam empurradas cada vez mais para locais suscetíveis naturalmente e a vulnerabilidade dessas populações só agrava a situação perigosa de se morar em locais de potenciais escorregamentos. Porém, o poder público tem papel decisivo sobre a vida dessas pessoas, a partir do momento que "legalizam" estás ocupações, passam a cobrar IPTU e outras taxas públicas e continuam sem fazer nenhuma intervenção que possa trazer segurança para a vida das pessoas. Poque para os governos as pessoas podem morar em qualquer lugar, mas as prefeituras não se preocupam com a segurança da população, privilegiam regiões mais ricas em detrimento das mais pobres.

Muitas vezes medidas simples elementares como impermeabilizar quintais para percolar a água bastaria ou cortar bananeiras que favorecem os deslizamentos, recolher o lixo que entope os bueiros, fazer muros de contenção, construir escadas hidráulicas ou valas de escoamento, intervir nos locais onde os cortes das vertentes são muito acentuados. Todas essas ações poderiam ser tomadas pelas prefeituras. Mas os governos tratam as pessoas como descartáveis. Há pessoas que, para construir, retiram terra do terreno fazendo um corte vertical atrás da casa, o que desestabiliza toda a vertente. Estes locais precisam ser avaliados individualmente e quando necessário, interditados. Mas a interdição deve conduzir a população a locais de moradia digna, senão inevitavelmente essa população acaba voltando para a suas casas nessas áreas. Não adianta tirar as pessoas de suas casas, pagar um aluguel social miserável e esperar que ninguém mais volte.

Se não houvesse tanto descaso do poder público, além de todos os outros fatores inerentes do capital, como a exclusão da população pobre dos centros urbanos devido a especulação imobiliária, estas mortes poderiam ser evitadas ou mesmo drasticamente minimizadas.




Comentários

Deixar Comentário


Destacados del día

Últimas noticias