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Opinião | Os BRICS diante da Palestina: entre divisões e impotência política

Na cúpula extraordinária realizada na semana passada, houve uma maioria que denunciou o massacre em Gaza, mas as divisões continuam fortes dentro do grupo.

segunda-feira 4 de dezembro de 2023 | Edição do dia

Na terça-feira, realizou-se por videoconferência uma cúpula extraordinária dos BRICS com a presença de representantes da China, Brasil, África do Sul, Índia e Rússia, assim como os futuros membros dos BRICS, Arábia Saudita, Argentina, Egito, Emirados Árabes Unidos, Etiópia e Irã. Presidida pelo presidente sul-africano Cyril Ramaphosa, o objetivo da cúpula era unir os esforços dos diferentes países "para pôr fim a esta injustiça histórica", em referência ao genocídio que se passa em Gaza.

Apesar desses esforços, os líderes foram incapazes de chegar a um acordo em comum sobre uma declaração conjunta, se contentando com pedir uma "trégua humanitária imediata" que deveria levar a um cessar-fogo e à "proteção dos civis e o fornecimento de ajuda humanitária". Cyril Ramaphosa atribuiu essa incapacidade de acordar uma linha coerente à "falta de tempo", mas na realidade revela dissidências no seio dos BRICS, alguns dos quais querem usar a causa palestina para consolidar um contra bloco à hegemonia americana.

A questão palestina divide os BRICS

Os BRICS são uma coalizão de países com profundas diferenças em muitos assuntos. Sua existência é baseada principalmente em considerações oportunistas ligadas a aspectos econômicos e comerciais. A ideia de um "anti-G7" e de uma coalizão para contrapor a hegemonia dos Estados Unidos e outros países imperialistas é, portanto, apenas uma parte de sua razão de existência, embora Rússia e China tentem (e conseguem cada vez mais), enfatizar esse papel. Dessa forma, como acontece com outros conflitos que atualmente afetam o mundo, opiniões muito divergentes se expressaram entre seus membros.

A presença de Vladimir Putin, de quem pesa uma ordem de detenção do Tribunal Penal Internacional (TPI), obrigou a organizar a cúpula por videoconferência. A África do Sul, signatária do Estatuto de Roma, teria sido forçada a deter Putin se o mesmo tivesse pisado no solo sul-africano. Sobre a questão palestina, a Rússia pede um cessar-fogo imediato e que a comunidade internacional "junte seus esforços para desativar a situação", considera que os BRICS poderiam "desempenhar um papel chave nesse trabalho", defende a criação de um Estado palestino e acusa os Estados Unidos de serem responsáveis pela guerra na Palestina.

Por parte da China, Xi Jinping também pediu um cessar-fogo imediato, defendeu uma solução de dois Estados e solicitou "agir urgentemente" para parar a "catástrofe humanitária". Ele também pediu uma "conferência internacional de paz" para encontrar "uma solução justa para a questão da Palestina". A China tenta se impor no Oriente Médio e, por exemplo, apoiou o restabelecimento das relações entre o Irã e a Arábia Saudita. Na segunda-feira, ele organizou uma reunião com a Autoridade Palestina, Indonésia, Egito, Arábia Saudita e Jordânia, e o presidente chinês também conversou por telefone com Emmanuel Macron sobre a situação na Palestina.

O Irã, inimigo assíduo de Israel, vai se juntar aos BRICS em 1 de janeiro de 2024 e pede que se rompam todas as relações econômicas e diplomáticas com Tel Aviv. Mas a Arábia Saudita, que está imersa em um processo de normalização de suas relações com Israel, não compartilha essa opinião e só pede a suspensão da venda de armas a Israel. Embora a Arábia Saudita tenha insinuado que pretende suspender o processo de assinatura dos "Acordos de Abraão", ela não se opõe a sua adesão em um momento que seja mais oportuno.

A Índia, por sua vez, expressou claramente seu apoio a Israel e reprimiu manifestações de apoio à Palestina. Também foi o único país dos BRICS a abster-se na votação de uma resolução da Assembleia Geral da ONU pedindo uma pausa humanitária em 27 de outubro. Narendra Modi tem reforçado as relações do país com Israel há vários anos, em parte para satisfazer as expectativas de sua base hindu, mas alguns setores de seu próprio governo adotaram uma postura mais temperada em relação à guerra entre Israel e Gaza. Lula, que é um aliado central dos Estados Unidos na região, diferiu da postura ocidental sobre a Ucrânia (considerando Zelensky e Putin igualmente responsáveis pela guerra atual) e recentemente sobre a guerra Israel-Gaza, ao equiparar o Exército israelense e o Hamas.

Divisões profundas e o beco sem saída de uma coligação de estados burgueses

As posições dos BRICS sobre a guerra revelam, portanto, profundas divisões no seio do grupo, cujos interesses podem divergir drasticamente, como no caso da China e da Índia, que costumam estar em lados opostos do tabuleiro em questões internacionais. A inclusão de seis novos Estados no próximo ano (ou cinco se a Argentina confirmar sua retirada) ampliará os BRICS, mas também poderia reforçar a desunião no seu seio, com a aparição de dois polos, um que deseja apoiar-se em uma união para garantir um lugar mais importante na cena internacional, ao mesmo tempo que continua muito dependente dos Estados Unidos (Índia, Brasil, Egito, Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos e, em menor medida, Etiópia), e o outro que se alinha com uma confrontação mais direta e o desejo de consolidar um bloco baseado na crise da hegemonia americana sob a bandeira da construção de um mundo "multipolar" (China, Rússia, Irã).

Os BRICS têm em comum o reconhecimento do declínio da hegemonia americana e da crise do sistema de Estados herdado do final da Segunda Guerra Mundial. Embora apresentem perspectivas ainda distantes, como a redução da sua dependência do dólar, os interesses dos Estados-Membros continuam a ser profundamente divergentes no que diz respeito à sua relação com o imperialismo americano e o bloco ocidental. O fato de que o poder americano esteja ressurgindo (apesar de tudo) no Oriente Médio, tem servido para expressar esses interesses divergentes em momentos cruciais. Além da Rússia, os BRICS mostraram nas últimas semanas os profundos limites de sua influência no Oriente Médio.

O analista político libanês Khaldoun Al-Sharif declarou ao Le Monde: “Graças a essa guerra, os Estados Unidos fizeram um grande retorno à região, não só pelo seu apoio a Israel, mas também demonstrando que nenhum ator da região, seja a Turquia ou os países do Golfo em particular, pode se abster do guarda-chuva de segurança dos EUA, o que reflete nos obstáculos advindos dos esforços desses países para diversificar suas parcerias, em particular as de segurança, com outras grandes potências como China e Rússia”. As declarações dos países no BRICS contrastam fortemente com o apoio incondicional ao Estado de Israel mostrado pelas potências imperialistas, mas suas limitações só servem para nos lembrar o caráter burguês dos Estados que compõem essa coalizão, que não pode, portanto, em essência, expressar uma perspectiva progressista ou emancipadora para as nações oprimidas.

Neste jogo de poder, a China é obviamente um ator central. O principal objetivo do encontro entre Joe Biden e Xi Jinping, em 15 de novembro, era reduzir o nível de tensão entre os dois países em um contexto internacional especialmente tenso, marcado pela guerra da Ucrânia e o conflito da Palestina, e se saldou com um acordo para restabelecer a comunicação entre os exércitos dos dois países, a promessa da China de lutar contra as exportações de fentanil, o aumento da frequência das ligações aéreas e o lançamento de debates conjuntos sobre inteligência artificial. No entanto, esses elementos não questionam em absoluto a oposição estratégica que existe entre os dois países, tanto em termos econômicos como geopolíticos.

Se a China apoia abertamente a Palestina, é principalmente porque seus interesses se deslocaram recentemente para os países árabes após anos de aproximação a Israel. Pequim expandiu recentemente sua influência no Golfo, tentando consolidar sua presença frente à influência decrescente dos Estados Unidos. Essa estratégia se manifestou em vários níveis. Em primeiro lugar, na frente diplomática, a China facilitou uma aproximação entre o Irã e a Arábia Saudita. No plano comercial, lançou o trecho marítimo de sua Nova Rota da Seda, investindo em projetos cujo principal objetivo é reduzir sua dependência energética.

Para alcançar este objetivo, a China reforçou sua presença militar no Golfo estabelecendo uma base em Yibuti, em frente ao estreito de Bab-el-Mandeb, e estuda criar uma base na cidade de Gwadar, no Paquistão, perto do Estreito de Hormuz. A maior parte do petróleo e do gás dos Estados do Golfo transita por esses dois estreitos.

Como a China, o objetivo dos países que desejam desafiar o domínio incontestável dos Estados Unidos e atuar como contrapeso do bloco ocidental cristalizado na OTAN e revitalizado pela guerra da Ucrânia, é defender seus próprios interesses, flutuantes mas orientados a expandir seu domínio econômico através da exploração e opressão dos trabalhadores e dos povos. Nesse contexto, não é de admirar que as perspectivas propostas pelos Estados-membros se limitem, no melhor dos casos, a promover a velha “solução” diplomática dos dois Estados que, além de prestar um grande serviço a Israel ao permitir que reconfigure a sua ocupação colonial na Palestina mediante os Acordos de Oslo, causando com que o movimento nacional palestino entre em uma rua sem saída que agora se expressa brutalmente.

Os BRICS não só são incapazes de propor outra coisa que não a falsa “solução” dos dois Estados, ressuscitada pelos Estados Unidos, que chegou a entrave no Oriente Médio, mas suas profundas diferenças nem sequer permite com que seja expresso uma unidade capaz de se contrapor a decadente hegemonia dos Estados Unidos.

Em vez de confiar a luta do povo palestino às burguesias nacionais (algumas das quais aceleraram a constituição de regimes autoritários e reacionários), a luta contra a política das potências imperialistas e do Estado de Israel deve se basear em uma expressão de solidariedade internacionalista e operária. O exemplo das burguesias árabes ilustra perfeitamente: os mesmos governantes egípcios, emirados e sauditas que nos últimos anos participaram de uma política de normalização com Israel e reprimiram as mobilizações pró-palestinas, se tornaram agora defensores da causa palestina. Mas pelo contrário, só a mobilização das classes trabalhadoras árabes e dos povos da região, e das classes trabalhadoras de todo o mundo, pode frear a política de Israel e das potências imperialistas.




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