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FOUCALT, DOSTOIÉVSKI, TROTSKY | Miscelânea de reflexões sobre subjetividade, moralidade e relações militantes

segunda-feira 13 de junho de 2016 | Edição do dia

Essas confusas e talvez um pouco pretensiosas reflexões sobre subjetividade e moralidade são fruto da vivência e convivência com as contradições que se estabelecem nas relações militantes quando buscamos romper com as velhas relações e buscamos criar relações novas e mais emancipadas.

Há sempre uma profunda contradição em buscar romper com o velho e buscar criar o novo, apontar para novos tipos de relações. Com todo seu conservadorismo e reacionarismo as velhas formas de relacionamento, os antigos modos de comportamento, nos apontam um caminho relativamente claro e socialmente aceito sobre como devemos nos portar dentro dos conflitos que podem surgir numa relação entre indivíduos, seja ela uma relação amorosa, de amizade, de camaradagem, etc, pois tiveram os antigos códigos de conduta e formas de relacionamento já tempo de se solidificar e se tornar socialmente aceitos, sendo a forma "correta", "verdadeira", "normal", de comportamento dentro desses conflitos que aparecem nas relações interpessoais.

Isso certamente nem de longe justifica sua manutenção e conservação; nós revolucionários queremos quebrar as tábuas que reproduzem a opressão e o conservadorismo, arrancar os totens, romper com os tabus dessa velha, carcomida e corrompida sociedade onde o erótico e o gozo, a vida e a beleza são negados, o princípio do prazer castrado, para legitimar uma realidade ignóbil.

Porém nós que buscamos "transvalorar os valores" nos vemos muitas vezes vivendo contradições e conflitos cujas respostas não podemos ainda apontar, pois não existe ainda um normal ou socialmente aceito sobre o qual nos balizar e que seja um norte de conduta. A coruja de minerva levanta voo ao anoitecer, dizia Hegel, mas muitas vezes esse voo noturno, feito às cegas, pode ser mais tormentoso do que o esperado.

Nem de longe, no entanto, aqui se lamenta essas contradições. Uma visão "trágica", mas também muitas vezes sátira, é necessária para aqueles que buscam apontar para novas relações. Ser pioneiro, muitas vezes, é estar isolado mas também te garante a beleza da mata virgem ainda a ser explorada.

Como vê o leitor (se houver) que chegou até esse momento do texto essas linhas são confusas, pois confusas são as relações e sua reflexão expressa isso. Por isso mesmo esse texto é uma miscelânea de reflexões a partir de vivências e leituras recentes, que buscam uma coerência interna, mas que nem sempre é conseguida.

Assim, aqui longe de se expressar uma resposta definida a essas contradições buscará se apresentar algumas veredas e caminhos, apontando saídas extremamente gerais, mas que só novas experiências concretas poderão provar serem corretas.

Foucault, subjetividade e verdade

Em seu curso ministrado no Colege de France nos anos 1980-81 Foucault irá expor pesquisa sobre a relação entre subjetividade e verdade a partir principalmente de um debate sobre os modos de viver, principalmente a sexualidade, que através dos tempos acabam se impondo como os “verdadeiros”, os “normais”, os “corretos”, e como essa visão de uma forma correta e verdadeira, socialmente aceita, de comportamento influencia a relação subjetiva do indivíduo consigo mesmo, a formação de sua personalidade e subjetividade.

Não seria aqui espaço para entrar num debate crítico com o filosofo francês, algo que demandaria um extenso trabalho particular, mas é necessário apenas esclarecer uma diferença importante em relação ao seu entendimento do conceito verdade. Para Foucault verdade parece significar apenas um conjunto de regras e normas socialmente aceitas, sem uma objetividade efetiva para além dessa aceitação intersubjetiva que se impõe socialmente. Para nós marxistas, ao contrário, verdade é a relação concreta entre uma afirmação subjetiva e a realidade objetiva existente para além da consciência, seja essa realidade natural ou social. Assim, por exemplo, uma teoria física não é uma mera convenção, assim como não é uma convenção a teoria da mais-valia, mas verdades objetivas, mesmo que compreendamos que são verdades historicamente condicionadas.

Feito esse esclarecimento uma apreensão crítica das teses de Foucault expressas em seu curso sobre subjetividade e verdade é algo enriquecedor para nós marxistas para estudarmos as questões morais e sua historicidade. Assim como para o filósofo francês para nós também nada há de “verdadeiro”, de “objetivo”, nas regras morais e de conduta existentes. A verdade pode existir apenas em relação a realidade objetiva, factual, e nunca em relação a valoração dessa realidade, as formas como nos comportamos frente a ela. A teoria da mais-valia descoberta por Marx, por exemplo, mostra a realidade objetiva da exploração do trabalhador por parte do capitalista, mas em nada indica qual deve ser a atitude do indivíduo frente a essa realidade, não lhe dá um valor moral. Se é evidente que essa descoberta é uma arma nas mãos dos trabalhadores ela não é uma negação moral do capitalismo, pois os patrões certamente não se abalam por descobrirem algo que certamente já sabiam, que sua riqueza é fruto da exploração do trabalho.

Os discursos que buscam se apresentar como discursos verdadeiros sobre a moralidade e conduta são parte dos discursos de poder dos setores (classes) dominantes e que buscam apresentar as regras e normas criadas por eles e que os beneficiam como algo objetivamente verdadeiro, natural, a-histórico e portanto imutável, pois assim tornam perene sua dominação e impossível qualquer transformação radical das relações existentes.

Se é impossível falar nas regras e normas morais como convenções numa sociedade dividida em classes (seria melhor falarmos em imposições morais por parte dos dominantes sobre os dominados) é evidente que elas são algo criado, uma “invenção”, e como tais nada tem de verdadeiras, mas são apenas formas de interação que os seres humanos de forma coletiva criaram para si para possibilitar sua vida em comunidade.

O reconhecimento das normas e regras morais, dos modos de viver, como criação e invenção humanas, como algo em nada natural ou verdadeiro em si mesmo, carrega em germe a possibilidade de sua crítica, pois tudo que é humano pode ser transformado e criticado por ele mesmo.

Dostoiévski, Ivan Karamazov: “se Deus não existe tudo é permitido”

Aqui entra o segundo termo das reflexões que busco apresentar ao leitor. Em seu romance ‘ ‘Irmãos Karamazov’ Dostoiévski nos apresenta a filosofia de Ivan Karamazov, um dos irmãos, que diz:- “se Deus não existe tudo é permitido”. É confuso o que quer dizer Ivan com seu aforismo durante todo o livro. Tudo é permitido então ou Deus tem que existir?

A trama ganha contornos trágicos quando Smerdiakov (ou Pavel Karamazov) irmão bastardo de Ivan mata o pai de ambos baseado em sua filosofia. Essa é uma das contradições que vivemos nós que reconhecemos a historicidade e transitoriedade de todas as regras e modos de viver, que descobrimos que nada é natural ou eterno, que tudo é mutável e pode ser desfeito e recriado, que vemos que os velhos e podres valores nada tem de sacros ou divinos, mas que são apenas “humanos, demasiado humanos”. Se deus não existe, se não existem tábuas ou mandamentos, se os totens e tabus são apenas quimeras impostas a nós pelos dominantes, tudo é permitido?

Mas e quando nossos desejos e vontades, nossas ações e buscas, entram em conflito e confronto com nossos companheiros e companheiras, amigos e camaradas, como nos comportamos, como respondemos a esses problemas, que podem parecer menores, mas que são vivenciados de forma real por todos aqueles que querem criar relações novas?

Se não nos baseamos mais nas antigas e carcomidas regras e normas muitas vezes ficamos sem chão ou norte, pois no que nos basear para agirmos de forma correta?

Trotsky, períodos de transição como períodos de crise subjetiva

Em sua biografia de Stalin Trotsky coloca uma série de questões que a partir de uma dimensão muito maior nos dão certa luz sobre esse problema, penso. O questionamento que se faz o revolucionário russo no final de sua vida (a biografia de Stalin foi uma de suas últimas obras, ficou inacabada, inclusive) é como foi possível que um revolucionário como Stalin (pois um dia ele foi um revolucionário) acabou se tornando o coveiro da revolução, assassinado diretamente a maior parte de seus companheiros, homens e mulheres que junto com ele foram protagonistas da revolução russa.

A resposta que dá Trotsky a esse questionamento é que os momentos de transição, os momentos de grande ruptura histórica, onde o velho é derrubado e o novo ainda se gesta, são momentos de crise subjetiva, de um certo vácuo nos valores que medeiam as relações sociais, que podem abrir espaço, principalmente em momentos de relativo retrocesso, a uma certa degeneração moral, onde o vale tudo, o egoísmo mais desenfreado, ganham força, pois naquele momento aparece efetivamente que “tudo é permitido”.

Não somos imoralistas, no entanto, nos diz o revolucionário russo, defendemos uma moral. Rompemos com a velha e retrograda moral burguesa, mas não rumamos para um vácuo de valores, para a barbárie, como buscam nos acusar os defensores da cultura capitalista. Levantamos a nossa moral, a moral do oprimido que se rebela e rompe com suas cadeias, contra a moral do opressor. A moral deles e a nossa.

Tentativa inconclusa de conclusão

Leitor (se ainda os há nesse momento), sei bem que você não espera uma resposta conclusiva a essa questão nesse pequeno artigo e lhe sou muito grato por isso. Aqui não busquei evidentemente propor uma saída definitiva para as contradições que vivemos ao buscar criarmos relações novas, pois elas são isso, criações, invenções, e portanto essencialmente algo para o qual não há receitas. Criar e buscar esse novo só pode ser fruto de experimentações e tentativas, muitas fracassadas, algumas dando proveito.

O único norte que temos, me parece, ao buscar essas novas relações e para enfrentar as contradições e conflitos vivenciados nessa busca é o objetivo que temos. A cada uma das contradições e conflitos vividos, em cada rusga ou treta, não tendo normas ou regras as quais nos reportar, pois tragicamente as estamos criando, nossa bussola deve ser “esse caminho que escolho fortalece ou enfraquece a luta por um objetivo mais profundo, ao qual dedico minha vida?” Sei que esse é um princípio tão geral que talvez pareça inútil nos problemas concretos que vivenciamos no dia-a-dia, mas mais que isso ainda estamos criando, juntos.


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