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IMIGRAÇÃO | Mediterrâneo: o cemitério geral de imigrantes e refugiados periféricos

sábado 9 de maio de 2015 | 00:03

Durante a estação primaveril na Europa, reemerge o cenário, já antigo na Sicília – uma das principais portas de entrada de imigrantes e refugiados no continente europeu –, de mortes, de uma só vez, de centenas (ou mesmo milhares) de atravessadores do mar.

Nesse período, as temperaturas se tornam mais amenas para os “retirantes do Mediterrâneo”, dando lugar à esperança de emigrar, a via única que se coloca para inteiras populações que deixam a África e a Ásia em busca da sobrevivência, tendo em vista que a vida lhes é negada nos seus países. Assim acabam, coletivamente, dentro de um barco. Mesmo sendo visível sua fragilidade para a travessia do mar, esse espaço flutuante com alto risco de morte, é disputado por milhares de imigrantes e refugiados e representa melhor a esperança de vida do que poderia significar a permanência em seus próprios países, onde certamente deixam laços familiares e de amizades difíceis de serem esquecidos.

Trata-se de um fato histórico que poderia ser explicado com a mesma precisão sociológica, além de poética, por João Cabral de Melo Neto, ao falar dos retirantes da seca entrelaçada com a miséria, ou seja, dos muitos a quem se impunha a “Morte e Vida Severina” no Nordeste. Para descrever os movimentos dos nossos migrantes internos, o poeta não separava a seca climática da miséria produzida pelo sistema econômico, de suas dinâmicas que expropriam e produzem retirantes. E denunciava com igual força uma sociedade, em geral, indiferente a esses expropriados, com exceção, é claro, dos momentos em que se beneficia de seu trabalho.

O destino desses retirantes, segundo ele, era um “cemitério geral”, no fundo, expresso numa condição de classe, que se impõe igualmente a todos os enterrados e esquecidos em covas com palmos contados. De forma semelhante, os retirantes do mediterrâneo são uma fotografia dessa mesma condição. E, para quem está acompanhando nas últimas semanas as imagens fornecidas pela grande mídia desses barcos lotados de homens, mulheres, crianças e até bebês, percebe claramente a fisionomia não-branca-ocidental desses rostos.

De fato, no contexto neoliberal, falar de imigração e refúgio, hoje mais do que nunca imbricados, significa falar de massas de pessoas provenientes de países periféricos que se deslocam principalmente para os países centrais e, em menor escala, também àqueles que, a despeito de ocuparem uma posição subordinada no mercado mundial, se encontram em uma situação um pouco menos dramática, como é o caso do Brasil.
Desde então, esse corpo sociológico dos movimentos migratórios internacionais atinge números recordes e continua crescendo. Também está em rápida ascensão seu número de mortes nas fronteiras. Nas naturais, dos mares e desertos, e nas artificiais, violentamente vigiadas e controladas, como o muro no México que separa os EUA da América Latina e, de forma mais geral, de todas as periferias do sistema.

Segundo os dados do Migregroup, em 2014, antes considerado o ano mais mortal das migrações na Europa, 3.500 pessoas morreram tentando atravessar suas fronteiras. Um número altíssimo, se comparado com as estimativas do Fortress Europe de cerca de 19.000 mortos entre 1988 e 2012 no Mediterrâneo, certamente subestimadas, já que o cemitério geral desses retirantes também deve permanecer silenciado e esquecido. Mas o recorde de mortos, em uma só vez, foi batido num único dia de abril de 2015, com os aproximados setecentos imigrantes ou refugiados que morreram juntos cometendo o “crime” de atravessar as fronteiras em busca da sobrevivência. Esse ano caminha, com passos largos, para igualmente bater seus recordes, pois já soma cerca de 2.000 desses mortos anônimos.

Todos esses movimentos migratórios internacionais são provocados por fatores diversos como a pobreza, desemprego, guerras, conflitos, catástrofes ecológicas, que, como nos lembra bem o sociólogo italiano, Pietro Basso, são fatores interligados por uma única raiz comum: a mundialização das relações sociais capitalistas. Para explicar por que tantos imigrantes/refugiados arriscam sua própria vida para chegar no “Norte” nas últimas décadas, esse autor nos ensina que há duas dimensões, intrínsecas e inseparáveis, para entender suas causas: a condição de classe do imigrante e o lugar que seu país ocupa na divisão internacional do trabalho, enquanto um país periférico. Ambas dimensões exprimem relações de força, entre classes e países, das quais os movimentos migratórios, seja de imigrantes, seja de refugiados, são sintomas.

Por isso é válido recorrermos a João Cabral de Melo Neto para lembrarmos que, na verdade, a causa mortis desses retirantes do Mediterrâneo é anterior aos repetidos e previsíveis “acidentes” fatais.




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