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70 ANOS GONZAGUINHA | Os setenta anos do negligenciado Gonzaguinha

O historiador Jacques Le Goff certa vez escreveu que a memória é a forma encontrada pelos homens para salvar o passado, na esperança de que ele possa servir ao presente e ao futuro.

quarta-feira 23 de setembro de 2015 | 00:03

A recuperação crítica do vivido certamente não está entre os atributos mais cultivados na tradição intelectual brasileira. Um exemplo singelo de tal tendência à petrificação da consciência histórica pode ser demonstrado pela ausência quase absoluta de homenagens, ao longo de 2015, a um dos maiores nomes da nossa música popular, o cantor Gonzaguinha, que estaria completando 70 anos neste dia 22 de setembro. Excetuando-se algumas atividades organizadas principalmente pela família do artista, muito importantes mas ainda restritas ao Rio de Janeiro, praticamente nada foi feito pelos órgãos oficiais, por escritores e críticos culturais dos grandes jornais, cineastas e documentaristas e nem mesmo pelo público para lembrar de um dos mais talentosos nomes de nossa música.

Se a uma outra lendária personagem da MPB, a cantora Elis Regina, que também se tornaria septuagenária neste ano, não faltaram laureações; tais como o samba enredo que alcançou o título do carnaval paulista, atividades desenvolvidas pelo Ministério da Cultura e a Ancine, assim como a publicação de uma uma importante biografia; a sorte que nossa intelectualidade oficial reservou ao eterno moleque invocado do Morro do São Carlos, no Rio de Janeiro, foi bem outra. Toda cultura tem os seus pontos fora da curva, aqueles aos quais a posteridade acaba por reservar o lugar merecido apenas quando o poder se cansa de combater o óbvio. Gonzaguinha é um personagem desafiador que ainda está à espera, assim como tantas outras figurinhas difíceis da nossa cultura, de revisionistas e pesquisadores dispostos a encará-lo.

Luiz Gonzaga do Nascimento Junior é um dos personagens mais fascinantes da cultura brasileira na segunda metade do século XX. Filho do lendário Rei do Baião, o artista cresceu longe do pai e por muito tempo fez questão de manter com ele uma relação tensa e irresoluta. Não há vida plena sem hiatos, a idiossincrasia não deixa de ser uma condição da qual não pode escapar aquele que deseja ser grande. Apenas quando já tinha uma carreira consolidada, no início da década de 1980, aceitou subir ao palco, e em pé de igualdade, junto àquele de quem a grande maioria se contentaria em ser uma simples sombra, percorrendo o país com shows memoráveis e que depois foram registrados no disco Juntos, de 1991. Compositor absolutamente sofisticado e intérprete visceral, indubitavelmente está entre os nossos mais importantes letristas, embora ainda continue sendo uma figura ’negligenciada’ e a merecer uma interpretação que avalie em profundidade o real espaço que ocupa na música e na cultura brasileira. Não deixa de ser curioso que não exista sequer uma grande biografia ou mesmo um documentário a respeito daquele que esteve entre os mais insuspeitos dentre os artistas perseguidos pelo regime militar.

Nascido no país que tem uma das músicas populares mais ricas do mundo, impressiona pela qualidade que consegue manter ao longo de sua rica obra. Cantou a dor de cotovelo, o amor romântico e o cafajeste, a crônica e a sátira do cotidiano, o universo profundo das classes populares e se notabilizou pela composição de algumas das mais belas e ácidas canções de protesto em um dos períodos mais tenebrosos da história política do Brasil. Um julgamento sóbrio e honesto de sua produção dificilmente justificaria a razão dele não ser reconhecido pelo mercado fonográfico brasileiro como um genuíno poeta “malandro, romântico, cronista e político”. É realmente um ponto fora da curva dos acordos e conveniências que organizam o nosso mercado cultural.

Ao lado de outros nomes que, assim como ele, só explodiriam para o cenário nacional na década de 1970, como Taiguara, Ivan Lins, Aldir Blanc, dentre outros; esteve diretamente envolvido com a criação do MAU (Movimento Artístico Universitário). Criado ainda em meados do decênio anterior, e concentrando seus encontros em torno da casa do médico Aluízio Porto Carreiro de Miranda, no bairro da Tijuca no Rio de Janeiro, o grupo acabou por se configurar numa verdadeira escola para alguns dos artistas que se notabilizariam entre os mais talentosos do período; foi também uma ponte de encontro e trocas de experiências entre os jovens talentos e mestres consagrados da música brasileira, como Cartola e Zé Keti, dentre tantos.

O cantor chegou a concluir o curso de Economia e tinha em O Capital, de Karl Marx, um de seus livros preferidos. Embora seja impossível dimensionar até onde isso possa ter influenciado o desenvolvimento de sua aguçada sensibilidade para refletir o drama social brasileiro, tal dado não pode ser desconsiderado. Chegou inclusive a afirmar que jamais havia separado o economista do compositor e que vivia tal mistura como um constante aprendizado. Não à toa, ao lado de Taiguara e Chico Buarque, fez parte do trio de cantores mais perseguidos pela ditadura civil-militar, com cerca de 54 de suas composições censuradas. Mesmo tendo sido um dos alvos mais desejados do regime, preferiu não sair do país e mergulhar profundamente no rico universo de nossa música popular, o que acabou por tornar a sua obra praticamente inclassificável e irredutível a qualquer rótulo ou gênero musical. Assim como outros, Gonzaguinha não tem paralelos, traçou um caminho ímpar e por isso mesmo escreveu seu nome definitivamente na linha evolutiva da música popular brasileira.

Sua veia crítica era tão avessa às convenções elásticas e aclimatadoras que a sociedade brasileira sempre criou e recriou para evitar maiores conflitos entre os indivíduos, segmentos e classes sociais, que chegou a ser tido como irascível por gravadoras, membros da imprensa e mesmo colegas do meio artístico. Estigmatizado como o ’cantor rancor’ do Brasil, foi um dos primeiros artistas a criar um selo independente para produzir, editar e divulgar o seu trabalho, além de também ser um organizador da categoria musical na luta pelos direitos autorais. Vale destacar que tal ato muito provavelmente tenha sido influenciado pela luta conduzida pelo jogador Afonsinho, do Botafogo, que no início da década de 1970 travou uma batalha memorável e vitoriosa pelo direito de ser reconhecido como dono do seu passe. Gonzaguinha, assim como Gilberto Gil que compôs um clássico para o ’Meio de Campo’, passou a ter um interesse particular pelo futebol como um meio de compreensão e transformação da sociedade brasileira neste período. Em recente biografia, o ex-jogador Walter Casagrande Júnior também relata diversos momentos de compartilhamento de vivências e ideais com o artista. Desnecessário dizer que uma personalidade tão forte teve um papel engajado no movimento pela redemocratização do país, que antecedeu e se sucedeu à instauração da Nova República.

Ao longo da década de 1980 se consagrava como um dos compositores mais gravados e respeitados do Brasil, tendo canções imortalizadas nas vozes de cantoras como Simone e Maria Bethânia. Gonzaguinha assume um posicionamento mais introspectivo, se volta à família, com a qual havia se mudado para Belo Horizonte, e acompanha o movimento seguido pelos principais artistas da década anterior, pautando suas músicas cada vez mais pelo romantismo e sutilezas do cotidiano. Ainda assim, era reconhecido e respeitado como uma das vozes mais importantes e críticas da cultura brasileira quando um fatídico acidente automobilístico lhe tirou a vida, aos 45 anos, no dia 29 de abril de 1991.

Mesmo sem citar aqui uma única canção do vasto repertório de Luiz Gonzaga do Nascimento Júnior, gravadas ao longo dos seus mais de vinte álbuns, é possível afirmar que ele tocou nos elementos e dramas centrais vividos pela sociedade brasileira, nas chagas que evitamos discutir mas continuam a perdurar até os dias de hoje: a falta de empatia, as lutas dos trabalhadores, o racismo, a necessidade de ampliação dos direitos de cidadania, o respeito às minorias políticas -e até mesmo aos ditos loucos-, a luta das mulheres, o amor e o respeito ao outro e a contínua valorização do espírito democrático.

Não lembrar de um personagem tão marcante, ainda mais num tempo no qual um segmento significativo da sociedade brasileira flerta com ódio e a intolerância, significa também que estamos esquecendo daquela parte que tínhamos de melhor. Um povo só recai na imbecil animosidade, tal como tem acontecido com segmentos cada vez maiores da sociedade nos dias atuais, quando se esquece daquilo que sonhou coletivamente para si. Nem todos os países do mundo gozam de espíritos tão emblemáticos e libertários entre os seus grandes artistas populares. Ele seguramente está entre as cabeças que mais fazem falta no campo público do Brasil contemporâneo. Não temos o direito de esquecer de um dos grandes lutadores de nossa história.

Gonzaguinha vive em de cada pessoa inconformada com a injustiça e dentro de cada ser capaz de intensamente amar, ser, fazer, sentir e acontecer. Ao menos um deles vem aqui hoje para lhe desejar os parabéns.

Viva Gonzaguinha!


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