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CRISE MIGRATÓRIA | Os Estados Unidos, o Estado Islâmico e a crise dos refugiados

Há semanas a crise migratória europeia ocupa o centro da atenção. Mas é no cenário do Oriente Médio, com as guerras civis reacionárias e a intervenção militar sob direção norte-americana, onde se produz o combustível que alimenta esta crise.

Claudia CinattiBuenos Aires | @ClaudiaCinatti

sexta-feira 11 de setembro de 2015 | 00:00

As imagens arrasadoras de milhares de pessoas desesperadas tentando passar o umbral para o ocidente, substituíram as do Estado Islâmico decapitando prisioneiros ou destruindo tesouros arqueológicos na milenária cidade de Palmira. Mas justamente é neste outro grande cenário de barbárie, o das guerras civis reacionárias e as intervenções militares sob direção dos Estados Unidos no Oriente Médio, onde se produz o combustível que alimenta esta crise.
As causas imediatas da atual avalanche de refugiados para a União Europeia, procedentes em sua grande maioria da Síria, não são nenhum mistério.

A Síria se transformou em um país invivível, com uma economia colapsada e à beira da desintegração. O endurecimento da guerra civil multifacetada entre diversas frações e milícias e o regime de Assad, os bombardeios da coalizão anti-Estado Islâmico dirigida pelos Estados Unidos, e o início de uma nova guerra dentro da guerra entre a Turquia e as milícias curdas do PKK, causaram uma onda de pessoas que fogem desesperadamente frente às nada atrativas opções de morrer em algum bombardeio, ser vítimas da limpeza étnico-religiosa ou, no melhor dos casos, ficar embaixo da bota de quem tomar o controle territorial.

Isto explica que entre os refugiados que tentam chegar à União Europeia haja tanto simpatizantes do regime de Assad como opositores; e se mesclem setores de classe média que puderam pagar passagens de avião, trem e ônibus, com aqueles que não têm nada e caminham no mínimo 35 dias, para chegar até as portas da fortaleza europeia.

Segundo estimativas das Nações Unidas, há 11 milhões de sírios que migraram, dos 23 milhões da população pré-guerra. Destes, 7,6 milhões moveram-se dentro da Síria e 4 milhões fugiram do país. Ainda que para a imprensa pareça muito, os 270.000 que chegaram às portas da UE são uma pequena parte.

O primeiro destino destes refugiados são os países vizinhos: 1,8 milhões na Turquia; 1,2 milhões no Líbano, 630.000 na Jordânia; 250.000 no Iraque; 132.000 no Egito. Não por acaso muitos comparam a escala de refugiados com o outro êxodo histórico, o dos palestinos expulsos pela limpeza étnica que acompanhou a fundação do estado de Israel.

Com o prolongamento do conflito e o número crescente de migrantes, as condições de vida destes milhões de pessoas se deterioraram seriamente. O próprio alto comissionado para os refugiados das Nações Unidas, Antonio Guterres, afirmou que a instituição está quebrada financeiramente e que teve que cortar as rações de alimentos para osrefugiados sírios no Líbano e na Jordânia, pelo fato de terem recebido menos de um quarto dos 5.500 milhões de dólares prometidos. Isto contrasta com os $68.000 dólares que custa para os Estados Unidos cada hora de voo de seus aviões para bombardear posições do Estado Islâmico na Síria e no Iraque.

O drama humano não termina aí. 150.000 refugiados palestinos ficaram prisioneiros no distrito de Yarmouk nas redondezas de Damasco, transformada em um campo de batalha entre o Exército Livre Sírio, o Estado Islâmico e as forças leais ao regime de Assad.

Os regimes despóticos do Golfo, que em sua grande maioria intervêm na guerra civil síria através de distintas frações locais, se negaram a receber refugiados por temer importar para o interior de suas fronteiras instabilidade política que altere o controle que mantêm sobre suas próprias minorias. Historicamente, a política migratória destes estados, se limita só a importar trabalhadores aos quais nega qualquer direito.

Não é nenhum segredo que as potências ocidentais estão explorando o impacto da crise de refugiados na União Europeia para justificar uma maior intervenção militar na Síria. No começo desta semana o presidente francês F. Hollande anunciou a participação ativa de seu país nos bombardeios contra posições do Estado Islâmico. E a Grã Bretanha executou em um ataque com drones dois cidadãos britânicos na Síria, acusados de terrorismo. A Austrália também aumentaria seu compromisso militar.

Um dos objetivos imediatos desta escalada pode ser tratar de “limpar” algum território da influência do Estado Islâmico na Síria para relocalizar pessoas desabrigadas pelo conflito e descomprimir a onda de refugiados em direção aos países ocidentais. Sem ir mais longe, esta era a proposta que o presidente turco R. Erdogan fez a Obama no fim de julho, quando decidiu unir-se ao combate contra o ISIS.

Mas isto é mais fácil dizer que fazer.

A Síria está deslizando para a fragmentação estatal. O governo de Assad perdeu o controle pleno de 2 das 14 províncias: Raqqa nas mãos do ISIS e mais recentemente Idlib nas mãos do chamado “Exército da conquista”, uma coalizão de sunitas opostos ao Estado Islâmico. De fato só se sustenta pela colaboração das milícias xiitas sob ordens do Irã e das milícias do Hezbollah.
Simplificando, o país já está dividido em quatro zonas com fronteiras móveis e conflitos internos: o califado do ISIS, que se expande ao noroeste e ao Iraque. Até o oeste e o sul a zona controlada por frações sunitas islamitas e laicas opostas ao ISIS (o que genericamente se chamam os “rebeldes” e abarcam desde o Exército Livre Sírio até a frente Al Nusra ligada à Al Qaeda). A região do Curdistão, ao norte, conhecida como Rojava, e o território que Assad mantém na zona costeira.

A guerra norte-americana contra o Estado Islâmico já tem mais de um ano, a um custo aproximado de 9,4 milhões de dólares diários, segundo os dados do Pentágono. Mas apesar das quase 23.000 bombas jogadas, o objetivo de “degradar e eventualmente destruir” o ISIS anunciado por Obama está tão longe como no começo da operação.

Não está claro qual é verdadeiramente a fortaleza do ISIS. Analistas militares norte-americanos estimam que conta com ao redor de 31.000 combatentes. E segundo o Departamento do Tesouro, a venda ilegal de petróleo e o sistema de impostos nos territórios sob seu controle, estaria dando ao ISIS uma renda de 1 bilhão de dólares ao ano.

Já está claro que só a guerra aérea não pode liquidar esta milícia que se transformou em um proto-estado, e que Obama não está disposto a embarcar para os Estados Unidos em outra intervenção militar.

O governo norte-americano adotou uma versão muito light da política de “armar os rebeldes”, que por ser demasiado fraca não está dando nenhum resultado. Depois da experiência da intervenção da OTAN na Líbia, os Estados Unidos não querem correr o risco de armar frações islamitas radicalizadas, que para além do Estado Islâmico, abundam no quebra-cabeças da oposição síria ao regime de Assad.

Ao mesmo tempo, tentou aproveitar o clima gerado pelo acordo nuclear com o Irã para explorar a possibilidade de uma saída negociada, facilitada pelos aliados internacionais de Assad: Rússia e Irã.

Mas esta opção parece inviável no momento. A exigência de que Assad renuncie para iniciar uma possível negociação da qual surja um governo de transição é inaceitável para Rússia e Irã.

Além disso, não se trata só da negociação entre uma miríade de organizações e milícias que já tomaram o controle de porções de território, poços de petróleo, população, etc., senão que também entre as potências regionais, como Arábia Saudita, Qatar e Turquia, que as apadrinham e as usam para fazer avançar seus próprios interesses.

A situação do Oriente Médio é produto das guerras e intervenções norte-americanas no Iraque e no Afeganistão e da derrota da primavera árabe, que abriu uma etapa de restauração. Basta mencionar como exemplos deste giro reacionário o estabelecimento da ditadura de Al Sisi no Egito (pouco importa para o caso que se tenha “eleito” o presidente), ou as guerras civis reacionárias na Líbia e na Síria, e a própria emergência do Estado Islâmico. Também a política do governo turco de agitar o nacionalismo contra os curdos. Mas as potências imperialistas e seus aliados regionais estão longe de ter conseguido estabelecer uma nova ordem estável. A crise dos refugiados na UE, os atentados perpetrados por frações islamitas radicalizadas, não só no mundo árabe senão que também no ocidente, mostram que os conflitos do Oriente Médio têm projeção muito pra além de suas fronteiras.




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