E nessa dialética do escravo e senhor, quem assume a feição máxima deste nesse contexto, incrivelmente, não faz nem questão de esconder: o presidente da república, Jair Bolsonaro, já começou sua sorte (e nosso azar) declarando todo tipo de racismo e outras barbaridades, mas destaco o particular racismo montado em um regime político advindo de um golpe institucional, sob a égide das elites do atraso (em termos mais precisos, da burguesia brasileira), que fez de sua missão implementar reformas econômicas que tornassem a condição da trabalhadora e o trabalhador brasileiros ainda mais danosa.

Bem, essa história é bem conhecida de vocês, o que ainda parece desconhecido para boa parte da esquerda e do progressismo em nosso país é a batalha ousada por oferecer respostas. Sim, uma parcela importante da população (vejam que essa semana popularidade de Bolsonaro decaiu bastante) já entendeu que estamos vivenciando a barbárie e busca respostas, busca entender como modificar essa situação. “Espere até 2022”, brada um. “Nos juntemos, mesmo com a velha globo, tucanos e moderados, numa frente ampla”, argumenta outro. “estamos juntos só entre a esquerda e centro-esquerda, tentemos mudanças parlamentares ancoradas na pressão popular”, uma pressão que só aparece para constar, porque todo mundo sabe que a discussão do momento para essa esquerda é se vota em Baleia Rossi no primeiro ou segundo turno, nada ver com mobilização de rua.

A situação nossa é lamentável, realmente, com a catástrofe capitalista que estamos vivenciando. Mas é a primeira vez que nosso povo passa por uma situação de enorme opressão social? Como reagir ao fato de se sentir o escravo assalariado moderno em meio a pandemia? Não deveria restar dúvida que a história de lutas gloriosas da nossa população negra, indígena e proletária deveria ser uma fonte valiosa para resposta.

Chamo a atenção para um ocorrido a exatos 140 anos. No dia 27 de janeiro de 1881 começava uma greve que marcaria decisivamente a história do país na sua luta contra a escravidão. Os primeiros estados a abolir a escravidão foram o Ceará e Amazonas, em março de 1884. Isso mesmo, aí a escravidão foi abolida anos antes da Lei Áurea da princesa Isabel, que todo mundo já ouviu falar, porque é branca e princesa.

Do que não se ouviu foi que no Ceará saíam navios com escravos que alimentavam as recém desenvolvidas plantações de café no Sudeste, a nova fonte de riquezas da oligarquia escravocrata, e que no porto de Fortaleza os navios atracavam e as jangadas levavam as populações do navio para a praia e da praia ao navio. Entre os que embarcavam estavam os escravizados. Pois bem, segundo a historiografia, impulsionados por Chico da Mathilde, José Napoleão, Petra Tia Simoa e outros “dragões do mar”, os jangadeiros fizeram uma greve que impedia que os escravos chegassem nos navios. A palavra de ordem proclamada era que “No Ceará não se embarcam mais escravos”. O movimento de importante impacto na história da luta antiabolicionista foi um dos fatores que terminou com a antecipação da abolição naquele estado.

Tomemos nota: os jangadeiros não decidiram que contra a oligarquia escravocrata da barbárie era necessário adotar sua porção "menos pior". Eles não caíram no conto de que tal ou qual navio negreiro era menos cruel, e não decidiram esperar até 2022 ou propor uma frente ampla com escravistas "menos piores" para votar por um presidente que amenizasse a escravidão. Eles fizeram uma greve, eles impediram - com sua capacidade de controle da natureza e intercambio com ela, conhecida como trabalho, no caso a capacidade de controle das jangadas em alto mar - que a escravidão se desenvolvesse no Ceará. E se a crise do sistema escravista não começou aí, a greve intensificou sem dúvida sua bancarrota.

Todos nós compartilhamos da inconformidade com um governo tipo Bolsonaro, mas quando a esquerda começa a ensaiar uma frente com um filhote da oligarquia escravocrata paulista como Dória, com Maias, Baleias Rossis e Cia., ou pensar com todo seu afinco como ajudar a ir ao "menos pior" na "instituição da instituição da instituição" dentro desse Congresso podre recheado de figuras do impeachment, é sinal que o ceticismo já corroeu até os livros de história. Querem mudanças reais e não ilusões? Melhor perguntar aos jangadeiros, eles podem explicar melhor a linguagem com a qual se enfrenta nossa classe dominante.