A esperança é um erro.
Se você não pode consertar o que está errado, você fica louco.

- Max

A primeira coisa que ouvi sobre o novo filme do Mad Max foi a tragicômica notícia sobre os auto-intitulados “ativistas dos direitos dos homens” (leia-se, machistas misóginos) que se revoltaram com o filme. Nesse momento soube que deveria ir ver o filme: se esse tipo de troglodita reacionário não gostou, é porque algo de bom há nele.

Mad Max têm centenas de explosões, carros voando pelos ares, armas de fogo barulhentas atirando o tempo inteiro, sangue, morte, destruição e até mulheres seminuas. Enfim, não falta absolutamente nenhum dos ingredientes que estão presentes em todos os mais cretinos e clichês thrillers hollywoodianos. Por que, então, os machos babões chamaram um boicote ao filme?

A questão é que Mad Max foi feito na forma consagrada dos blockbusters (sua estrondosa bilheteria que o diga), mas também, em suas entrelinhas, possui muitos elementos importantes de questionamento. O que mais se destaca, sem dúvida, é o papel das mulheres no filme. O papel do “herói valentão” é dividido palmo a palmo entre Max (Tom Hardy) e Furiosa (Charlize Theron). Enquanto assistia o filme, podia imaginar, por exemplo, a cara de desgosto dos que viram nele uma tentativa de “minar a masculinidade tradicional” quando, ao errar dois disparos à distância e no escuro, Max passa humildemente a arma à sua companheira Furiosa, que, sem pestanejar, acerta o alvo à distância. São as mulheres, que unidas, representam a esperança e o objetivo final. O “final feliz” de Mad Max é outro: não termina no altar ou por obra de um macho salvador; se há alguma esperança contra o desolador cenário da barbárie e do cada um por si, essa esperança está personificada pelas mulheres, que lutam do início ao fim por justiça. De arrepiar os cabelos dos tradicionais misóginos, um público preferencial dos filmes com explosões e sangue.

O protagonismo das mulheres em Mad Max está inserido em uma trama que, por baixo da superfície, possui outros questionamentos tão profundos quanto esse. O filme é uma alegoria de nossa sociedade (alegoria que, retratando futuro apocalíptico onde a gasolina é o maior bem, já existe desde o primeiro Mad Max, de 1979). O seu deserto desolador, onde cada um por si tenta sobreviver em um cenário pós-apocaliptico, é uma hipérbole, um exagero, do que vivemos hoje. A selvageria de nossa sociedade está expressa na sociedade ficcional desse futuro imaginário. Nesse filme, os elementos de questionamento existentes desde o início da série Mad Max se aprofundam, e algumas coisas se transformam, como a valorização da gasolina como o bem mais precioso e cobiçado, é atualizada para a água, para expressar melhor a situação do mundo hoje em dia.

No grande líder, detentor de toda a água e todo o poder, Immortan Joe (Hugh Keays-Byrne), está a representação da burguesia, do famoso 1% que era repudiado nos atos do Occupy Wall Street, nos capitalistas que chafurdam em lucros enquanto o mundo amarga sua pior crise e milhões perdem seus empregos, outros tantos perdem suas casas, e em casos extremos – mas nada raros – o suicídio é a alternativa encontrada por muitos diante desse mundo selvagem em que vivemos. Immortan Joe mantém para si todo o suprimento de água disponível; um harém de jovens que escraviza sexualmente e as quais engravida para obter seus herdeiros; um exército de guerreiros suicidas fiéis dispostos a morrer por ele em ataques suicida. Ao lado de seus “sócios”, como os detentores monopólicos da gasolina ou das armas, Immortan desfruta de todo tipo de privilégio ao viver da exploração da maioria, que mantém na miséria e sob sua dominação tirânica.

Os jovens “meia-vida” ou “kamikrazi” (kamikazes loucos), são uma metáfora do fanatismo religioso extremo que em nossa sociedade é utilizado para cometer as maiores barbaridades. Há quem possa ver nisso uma referência ao povo muçulmano e até uma certa islamofobia, mas seria descabido acusar disso o filme, já que não há nenhuma característica neles que remete à religião islâmica. Toma-se de empréstimo, aliás, o termo da religião Viking, o Valhala, paraíso para onde esses jovens esperam ir após entregarem sua vida no sacrifício por Immortan. “Testemunhem”, dizem eles ao se jogar em um ataque suicida, orgulhosos de seu papel. Se não morrerem em combate, morrerão em pouco tempo de alguma das doenças que rapidamente os consomem.

Neles, podemos ver também simbolizado o verdadeiro massacre a que são submetidos os trabalhadores hoje em dia, que, nos piores postos de trabalho, têm seus corpos literalmente destruídos pela rotina massacrante de exploração. Quase sempre, jovens, como os guerreiros “meia-vida”. Como, por exemplo, os operários chineses nas fábricas, os mineiros, os imigrantes escravizados nas confecções têxteis clandestinas, os imigrantes massacrados nos barcos que tentam chegar à Europa, os haitianos que tentam se refugiar no Brasil.

Outro ponto forte do filme é a construção das personagens, que, mesmo recaindo em estereótipos, consegue escapar de algumas fórmulas prontas que ressaltam valores conservadores. Por exemplo, é digno de nota que entre os dois protagonistas não surja um caso de amor, o que é sempre utilizado como uma “isca” para o público pelo forte apelo ideológico que tem, e que reforça estereótipos, em particular sobre o papel das mulheres. A única alusão a um romance se dá entre o “meia-vida” Nux (Nicholas Hoult) e uma das “esposas” de Immortan, Capable (Riley Keough) que está fugindo. No entanto, mesmo esse romance se desenvolve de maneira bastante distinta do que costuma ocorrer nos filmes hollywoodianos. Ele é o que confere a Nux, pela primeira vez, a valorização dele como um sujeito, alguém a ser valorizado pelo que ele é, e não pelo seu sacrifício pelo líder. Vendo-se como uma pessoa, ele pode, pela primeira vez, tomar suas escolhas livremente. E o faz. Esse amor, que apenas se insinua, é uma ponte para a libertação, e não para a dependência – em particular a feminina –, como sempre se expressa na indústria cultural.

Também se evita o maniqueísmo nas personagens. Não há heróis altruístas. Max, suposto herói, é apenas um louco vagando no deserto buscando sua sobrevivência. Alguém a quem esse mundo, com sua crua barbárie, roubou a paz e a sanidade. Furiosa, também, foi uma pilota das Máquinas de Guerra de Immortan, tendo, certamente, cometido várias atrocidades enquanto ocupou esse lugar. Sua boa ação é realizada, como ela própria afirma, na procura de redenção. E é isso: em um mundo bárbaro, não é possível sobreviver sem algo de criminoso. E ter esperança de um futuro é a possibilidade de enlouquecer, como Max. A busca, quase desesperada, é por redenção. Nessa busca se encontram os personagens de Mad Max, mostrando que a única possibilidade de mudarmos essa realidade é encarando ela de frente, com lucidez e coragem para lutar.