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Da Fome ao Sonho: arte e política no Brasil da década de 1960 (Parte 2)

Afonso Machado

Da Fome ao Sonho: arte e política no Brasil da década de 1960 (Parte 2)

Afonso Machado

Continuação da elaboração "Da Fome ao Sonho: arte e política no Brasil da década de 1960". A primeira parte, já publicada no suplemento Carcará, pode ser lida aqui.

Revolucionários livres e soltos

Brasil, cidade de São Paulo. Final da década de 1970. Um cara legal se dirigia para uma reunião estudantil no começo da noite. Naquela época isso já era motivo de sobra para alguém acabar no xadrez. O visual do sujeito era o oposto dos caretas: cabelos longos tipo Lennon, barba de profeta, calça vermelha boca de sino e jaqueta preta no melhor estilo Brando. No interior da sua bolsa de coro um exemplar do livro Literatura e Revolução, do Trotski. Durante o caminho olhares paranoicos, os ouvidos atentos para os passos de um possível tira que seguia o rapaz. Não, felizmente não era um tira: o cara virou a esquina e seguiu em sentido contrário. O estudante seguia agora em frente, ele não parou nem mesmo quando alguém pediu que acendesse o cigarro. Na reunião (que rolou em algum auditório da USP ou da PUC? Tanto faz) um montão de estudantes corajosos que acreditavam na LUTA. A palavra de ordem só podia ser uma: "Abaixo a ditadura!".

A reunião terminou ás 23h e por volta da meia noite todos se mandaram para uma festa num apartamento; e que diga-se de passagem, que festa... Na vitrola o rock dos Stones comia solto. Cores e gestos relaxados. Trocavam-se beijos, amassos, livros e muitas ideias. No fim da festa, alguém pegou o cavaquinho e puxou um samba. Rock e samba?! Por que não? Para todos os efeitos, o cala a boca da ditadura e dos stalinistas já tinha morrido ali: havia LIBERDADE. Era mais um dia na vida da rapaziada da LIBELU (Liberdade e Luta). E pensar que cerca de dez anos antes, este tipo de vivência política com estas referências culturais era tabu dentro da esquerda brasileira.

Se a caretice dos stalinistas ainda permeava o debate cultural do movimento estudantil no final da década de 1970, a Libelu dava uma aula de cosmopolitismo, internacionalismo e de atitudes libertárias. Toda esta inovadora perspectiva na cultura foi análoga a um momento em que ocorria uma espécie de renascimento político do movimento operário na região do ABC. Quais eram as circunstâncias políticas para a esquerda do país? A experiência da guerra de guerrilhas tinha ido pro saco no Brasil. Os milicos ficariam mais um tempinho no poder, quer dizer, a militância de esquerda no seu conjunto ainda era clandestina. A despeito de divergências políticas e de horizontes culturais, quem opunha-se ao regime militar vivia numa mesma trincheira. Ao passo que o elitismo foquista da luta armada no Brasil, distante do proletariado, naufragou, no riscado da cultura o conceito de guerrilha ainda era uma realidade. Ou seja, focos de resistência contra a cultura dominante eram evidentes e sua dinâmica estética e comportamental nem sempre tinha a ver com a lógica militar da guerrilha embasada no nacionalismo autoritário de esquerda.

Como explicar aos olhos do processo histórico brasileiro aquela atitude mais solta e ao mesmo tempo combativa do pessoal da Libelu? Como é que o pensamento político revolucionário dos trotskistas, oposto ao da esquerda majoritária (inclusive no âmbito das discussões artísticas) coexistia com elementos da cultura de massa e da contracultura? As respostas passam pela pré-história daquela momento: a barulhenta década de 1960.

A arte revolucionária no Brasil dos anos de 1960

Um difuso movimento de rebeldia ergue-se a partir de um novo vocabulário político que tomou de assalto setores da juventude brasileira ao longo da década de 1960: a realidade dos povos do Terceiro mundo, os processos de independência política através da guerra de guerrilhas (tal como era evidenciado na Ásia e na África; além dos levantes revolucionários na América Latina) e da afirmação de valores nacionais em oposição ao imperialismo norte-americano. Enquanto que estes elementos políticos incendiavam o imaginário dos artistas de esquerda, notam-se também no campo das artes os desdobramentos das vanguardas de raiz concretista; além da explosão da cultura de massa abarcando as informações da arte pop e da contracultura provenientes dos países capitalistas do Primeiro mundo.

Como já afirmamos em outras ocasiões, o desenvolvimento dos meios de comunicação de massa acaba por superar barreiras nacionais não apenas no tocante à informação artística, já que aquele propicia a circulação imagética e sonora de uma sensibilidade rebelde, que permitiu no ocidente a sintonia entre os movimentos políticos e culturais de contestação. Certo internacionalismo instintivo entre movimentos de juventude e tendências artísticas dos anos de 1960, abarca um surpreendente movimento dialético que fazia das instituições culturais e da indústria cultural (esta última encarregada de realizar um elogio permanente do capitalismo) espaços onde emergia um clima de rebelião.

Ainda que não se tratasse de tendências ideologicamente uniformes, contemplava-se o protesto social em suas mais variadas motivações políticas: oposição a regimes autoritários, crítica às guerras imperialistas, confronto com a moral burguesa etc. Tudo indicava que a corrosão do edifício da civilização capitalista seria, no campo da expressão artística, realizada pela representação da ação revolucionária terceiro-mundista e pela oposição cultural aos valores que fundamentavam a ideologia das burguesias ocidentais (inclusive no Primeiro mundo). Fome e sonho, miséria e utopia, razão revolucionária e delírio contracultural, eram polaridades que no plano estético exprimiam projetos culturais atuantes.

Dois manifestos redigidos pelo cineasta Glauber Rocha nos mostram a amplitude que o conceito de arte revolucionária atravessou no Brasil entre a década de 1960 e início de 1970: A Estética da Fome (1965) e A Estética do Sonho (1971). Não tomamos estes documentos para comentar especificamente a cinematografia de Glauber. Nosso objetivo é partir destes textos para compreendermos situações históricas em que o debate estético é apreendido de modo distinto (e polêmico) na realidade brasileira. Através de outros documentos intermediários (que captam visões e propostas acerca do cinema, da literatura, do teatro, a música popular, as artes visuais etc.), se faz necessário refletir sobre a maneira como a esquerda brasileira se relacionou com as mutações políticas e estéticas pelas quais a vida internacional passou entre o início da década de 1960 e da década seguinte. Foram mudanças intensas, convulsivas.

Em linhas gerais, o manifesto de 1965 é distante de uma perspectiva pedagógica que tanto marcou as experiências artísticas do período janguista. A conversa agora era outra: como definir e estabelecer uma concepção autêntica da arte revolucionária no Brasil após o Golpe de 64? O cabeça do Cinema Novo apostou na violência enquanto componente estético que integra o projeto de descolonização do Terceiro mundo. Trata-se de uma estética que nasce da fome, que se afirma como expressão revolucionária da violência e da miséria dos oprimidos. O apelo e as definições programáticas da arte social não eram exclusividades do cineasta baiano. Era a própria intelectualidade de esquerda que elaborava, desde o início da década de 1960, discursos sobre o papel político e social da arte. Segundo Glauber em depoimento feito na década de 1970:

[...] As origens desses discursos estavam na literatura de 30 e na literatura social de Gregório de Mattos, o inconfidente mineiro, Euclides da Cunha, Castro Alves, Jorge Amado, Graciliano Ramos e Oswald de Andrade. Além de ter ficado naquele momento em cima da literatura internacional de esquerda, que era basicamente Fanon (Os Condenados da Terra), Lukács, Marx, Sartre [...].

Alargando horizontes estéticos e abrindo a cuca

Para Glauber, a arte revolucionária que nasce no contexto cultural terceiro mundista tem como denominador comum a imagem violenta que se opõe ao imperialismo, cujos interesses eram assegurados pela ditadura militar. Assim sendo é feita a defesa de uma estética que é produto histórico da fome:

[...] Assim somente uma cultura da fome, minando suas próprias estruturas, pode superar-se qualitativamente: e a mais nobre manifestação cultural da fome é a violência [...].

A ideia de que a arte revolucionária é fundamentalmente violenta choca-se com a perspectiva professoral que condicionou a chamada arte popular revolucionária do período pré-golpe. O projeto estético-didático, cuja origem e formulação remetem especialmente ao Centro Popular de Cultura, acabaria por contrastar com algumas práticas artísticas contestadoras da segunda metade da década: filmes como Terra em transe (1967), de Glauber, a antiarte muito louca de Hélio Oiticica e a anárquica montagem da peça teatral O Rei da Vela (1967) escrita por Oswald de Andrade em 1933 e montada pelo grupo Teatro Oficina, são os exemplos mais citados até hoje em dúzias de livros, artigos e teses acadêmicas. Estas expressões artísticas, que procuram responder ao dramático período político autoritário inaugurado pelo Golpe de 64, marcam uma crise e uma ruptura quanto ao entendimento revolucionário da arte. Como veremos em outras partes desta série de artigos, a coroação deste período de crise deu-se com o movimento tropicalista: as conquistas estéticas e comportamentais da tropicália (que dialogava com o rock e promovia o desbunde) foram fundamentais para a juventude da década seguinte que não aguentava mais o chororô nacionalista e aqueles dramalhões que remetem ao Realismo Socialista.

Já no manifesto de 1971, Glauber se beneficia do alargamento estético (possibilitado pelas agitações culturais e políticas de 1968) arejando os ares da arte que se quer revolucionária: as identidades negra e indígena, definidoras da nossa miscigenação e que nos salva das repressões e neuroses de origem europeia, formam a plataforma da arte que recusa a razão burguesa fundamentadora do imperialismo. Em sua Estética do Sonho Glauber afirma:

[...] Arte revolucionária foi a palavra de ordem do Terceiro Mundo nos anos 60 e continuará a ser nesta década. Acho, porém, que a mudança de muitas condições políticas e mentais exige um desenvolvimento contínuo dos conceitos de arte revolucionária [...] A existência descontínua desta arte revolucionária no Terceiro Mundo se deve fundamentalmente às repressões do racionalismo [...] Os sistemas culturais atuantes, de direita e de esquerda, estão presos a uma razão conservadora [...].

O raciocínio de Glauber traz combustível estético para fazer andar a guerrilha cultural. Este último conceito que apresenta-se como referência metafórica ao modelo de luta armada adotado por parte da esquerda nacionalista daquela época, transcende no entanto a ideia de guerrilha em seu sentido militar. Os focos artísticos de resistência não apenas requerem independência frente a qualquer centro de poder político, como se relacionam em diferentes níveis ideológicos com o caráter internacionalista e permanente da revolução socialista. Em outras palavras, o ritmo internacional da luta de classes e a necessária direção operária na luta contra o capital, é acelerado por manifestações culturais contestadoras que atuam no interior dos países capitalistas atrasados e avançados. Para os países capitalistas atrasados em especial, é indispensável que as formas de arte revolucionária se libertem da razão conservadora/castradora que se faz presente inclusive no ambiente político da esquerda majoritária. A arte supera fronteiras geográficas, influencia a vida política e permite no plano internacional trocas progressistas entre diferentes movimentos de combate espalhados pelo planeta.

Trata-se de um movimento de compasso, um movimento que se auto complementa na sua diversidade estética, étnica, sexual etc. A crise e o desequilíbrio da cultura oficial promovidos por uma acepção plural da arte revolucionária, não tem por finalidade a defesa nacionalista (recorrente na guerra de guerrilhas) que caracteriza a política dos Estados operários deformados do período da Guerra Fria. A guerrilha cultural e suas afinidades com movimentos culturais internacionais de contestação, é uma tática que tende a se chocar com os limites políticos de um projeto nacional popular. É a proliferação de focos internacionais de guerra contra a cultura dominante que revela a contribuição da arte dentro da revolução mundial.

As ideias de Glauber, sobretudo a partir de 1971, contribuem com esta noção ampla de arte revolucionária. Ao se opor ao sistema racionalista europeu e reivindicar as qualidades oníricas e mágicas das culturas indígenas e negras, o autor estabelece uma conexão com os movimentos contraculturais do Primeiro mundo. As práticas destes últimos levavam a um questionamento das tradições ocidentais que separam a razão e a sensação, as ideias políticas e as experiências corpóreas. Sem dúvida que Glauber Rocha era um nacionalista romântico, cujas ideias cinematográficas foram formadas no ambiente cultural janguista. Todavia, o autor, abertamente contraditório, nunca deixou de sustentar as pesquisas estéticas de vanguarda, o que o levou mais de uma vez a conflitos com a esquerda nacionalista (conflitos estes também motivados por discordâncias e incoerências políticas).

A despeito do contraditório itinerário artístico e político de Glauber, o fato é que o alargamento estético de seus filmes e textos teóricos fornecem ideias valiosas para uma espécie de guerrilha cultural que se complementa com as formas de rebelião da juventude do Primeiro mundo. Ou seja, durante e após o ano de 1968 nota-se uma conexão internacional entre manifestações contestadoras/transgressoras nos planos do cinema, da literatura, das artes visuais, da música (apesar das conhecidíssimas restrições nacionalistas que Glauber fazia em relação ao rock; o cara odiava este tipo de música). Na contramão das práticas políticas dos revolucionários latino americanos alinhados ao foquismo de Che Guevara (e o próprio Glauber estava nessa naquela época), havia entre os espíritos independentes uma valorização das qualidades contestadoras da arte a partir da sua própria dinâmica criadora. Uma coisa era certa: a elaboração de uma arte livre, logo capaz de contribuir enquanto arte com a crise e destruição da sociedade burguesa, não atende aos comandos externos; a arte atua e se renova segundo as determinações do movimento da história. Isto equivale dizer que o destino histórico da arte no mundo contemporâneo é indissociável da revolução socialista. É uma questão de fluxo e sintonia e não de regras e bitola.

Toda aquela inquietação dos jovens artistas e dos movimentos culturais de rebeldia da década de 1960, dependiam em sentido histórico mais amplo da coordenação revolucionária e internacional do movimento operário: somente as revoluções socialistas internacionais (e jamais o nacionalismo guerrilheiro com suas marcas nacionalistas e autoritárias) poderiam impulsionar os focos de arte revolucionária (ou ao menos as manifestações artísticas contestadoras/transgressoras) do período. Quem for investigar o que deu errado nos sonhos da geração de 68, inclusive no campo cultural, deve procurar as respostas na crise da direção do movimento dos trabalhadores.

O paradoxo nacionalista de Glauber Rocha e, como veremos ao longo deste estudo, a irresponsabilidade comercial do tropicalismo, podem aparentemente comprometer o que existe de inovador, transgressor e internacionalista no itinerário estético revolucionário que vai da fome ao sonho. Entretanto, são exatamente as manifestações de Glauber e da tropicália que entram em conflito com o proselitismo da esquerda nacionalista e contribuem com um entendimento revolucionário que lega autenticidade à cultura brasileira e ao mesmo tempo entra em sintonia com a marcha libertária dos movimentos de juventude da década de 1960. Na terceira parte deste texto, veremos como a arte brasileira do pós guerra foi condicionada pelos discursos políticos do populismo e do desenvolvimentismo.


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