A fala de Mano Brown no comício do PT, às vésperas do segundo turno das eleições de 2018, tornou-se emblemática pela coragem do rapper de criticar o clima de festa do evento, que buscava emplacar o espírito de vira voto, e por apontar o dedo para os erros do partido que deixou de representar os trabalhadores. Essa lembrança de contestação certamente era um dos elementos que cercavam de expectativa a entrevista do rapper com o ex-presidente - não à toa o podcast se tornou um dos de maior audiência da história.

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Entretanto, o tom adotado por Mano Brown foi o oposto daquele contestador de 2018, o rapper se mostrou muito mais diplomático com Lula. O próprio Brown, quando relata o episódio do comício, diz que se deparou com uma “festa”, quando estava indo pronto para um “velório”, pois já sabia da derrota quando não viu “os seus” ali presente. Ao invés de aprofundar na crítica do Brown de 2018, o Mano Brown apresentador parece mais interessado em montar palco para o Lula 2022. Assim, o rapper pergunta ao ex-presidente como apresentá-lo a essa nova juventude que só viu o Lula no poder, não viu o Lula “oposição ao sistema”?

Ao longo de todo o podcast, parece claro o intuito, por parte de Brown, de fazer um movimento de resgate das origens e dos princípios do PT, em contraposição ao posterior desvio que ele apontou o dedo em 2018. Um resgate que alça Lula a uma figura heróica - “A minha geração te via como um herói… e te vê ainda” -, e que quer apresentá-lo a nova geração como o redentor capaz de reconectar o partido a sua origem operária, aos “anos dourados” dos governos petistas. Um sentimento bastante atrativo para uma juventude que vive o “fundo do poço”, com a degradação do regime desde o golpe institucional em 2016, com o desemprego recorde, o retorno da fome, os trabalhos ultra-precários, o desastre climático planetário, e a elitização cada vez maior das universidades.

Seria mais útil retomar a postura crítica do Brown de 2018, para contestar essa origem imaculada da criação do PT, contestar os “anos dourados” e contestar a viabilidade da restauração daquele projeto de Brasil potência da hegemonia lulista, no contexto atual de crise econômica global e acirramento das disputas geopolíticas. As palavras do próprio Lula ajudam a perceber as contradições já presentes na criação do partido e os limites de suas gestões que se estreitaram muito, em meio a seguidos anos de degradação do regime.

O mito da origem imaculada do PT

O relato de Lula de porque decidiu fundar um partido é bastante simbólico. Retomando seu período como líder sindical, Lula debocha de si mesmo quando dizia na imprensa que não tinha interesse pela política, dizendo que era celebrado pela grande mídia por declarações desse tipo, como exemplo de um “líder duro”. De fato, o sonho da burguesia é de que os trabalhadores se limitem ao terreno da luta econômica e não se atrevam a adentrar o terreno da luta política. O sindicalista Lula diz que percebeu isso quando viajou para Brasília, o centro do poder, e não encontrou por lá um único representante dos trabalhadores, por isso viu a necessidade de fundar um partido.

Porém, o ascenso das greves no final da década de 70, não se limitavam ao terreno das pautas econômicas de aumento salarial, de luta contra a inflação, mas incorporavam também as demandas políticas de luta contra a Ditadura, ganhando o apoio de toda a população e a legitimidade para os métodos operários, desenvolvendo tendências de hegemonia operária. Quem reintroduz a divisão entre a luta econômica e a luta política é o próprio Lula, restringindo a mobilização dos trabalhadores a reivindicação salarial e enterrando a greve em nome da conciliação de classes. Depois o PT será fundado como expressão dessa separação entre o econômico e o político. Assim, o pecado capital da conciliação de classes para o PT esteve presente antes mesmo da origem do partido.

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“Quando a gente não gosta de política o ovo da serpente pare um Bolsonaro”

Nesse mesmo momento da entrevista, Lula dispara essa frase, que culpa os próprios trabalhadores pela despolitização que resultou na eleição do negacionista e genocida Bolsonaro. A propósito de Bolsonaro, o petista diz ainda que o genocida não pode ser considerado nem de esquerda nem de direita, que ele está mais para um Hitler ou Mussolini. Se para Lula cabe essa comparação, é de se perguntar onde está a resistência correspondente que o PT organizaria para enfrentar o fascismo? Em nenhum momento da entrevista, Lula coloca qualquer chamado a se mobilizar agora para enfrentar e derrubar Bolsonaro, só sua candidatura aparece como forma de enfrentamento.

Além disso, um partido, como uma direção da classe trabalhadora, cumpre um papel de educação em relação ao nível de consciência dos trabalhadores. Logo, como disse o próprio ex-presidente: “se você planta jabuticaba, você vai colher jabuticaba”. O PT plantou essa despolitização, nos seus anos de governo o partido assentou uma das bases de sua hegemonia na ilusão do gradualismo, de que as massas trabalhadoras, através do consumo e do crédito, iriam paulatinamente melhorando suas condições de vida - Brown definiu bem essa mudança: “O que era a luta contra a fome em 88, em 2012, 2014 virou a luta pelo iPhone”. Durante suas gestões as centrais sindicais tornaram-se apêndices do governo para desmontar as lutas operárias e sacramentar a pax lulista.

Lula foi um pouco mais honesto quando ao final da entrevista ele declara que a esquerda perdeu a batalha ideológica com a direita, após Mano Brown reforçar a pergunta de porque vê os trabalhadores tomando bandeiras do discurso conservador, em defesa da propriedade, da família e da religião. Porém, a verdade é que a batalha não foi perdida, pois ela sequer foi travada. O PT e Lula relegaram qualquer combate pela consciência dos trabalhadores quando, em nome das alianças com a direita e os patrões, aceitaram e promoveram o crescimento da terceirização, quando implementaram a reforma da previdência, quando rifaram o direito das mulheres, dos LGBTQIA+ em norme de se aliar com a bancada da bíblia, quando deixaram de promover a reforma agrária para fomentar o apetite predatório do agronegócio.

E, justamente, são essas alianças que vemos Lula buscando reconstruir uma a uma, como em sua recente viagem pelo Nordeste, visitando figuras abomináveis do regime, como José Sarney, Tasso Jereissati e até o pastor defensor da cura gay e inimigo LGBT, Isidório. Ou também, na sua intenção de tornar a empresária Luíza Trajano sua vice, em um novo aceno aos empresários.

Na retórica de Lula tudo isso se justifica porque isso é o fazer política; é preciso ouvir todos- entenda-se conciliar -, como se não houvesse interesses irreconciliáveis em jogo. Assim, Lula pode até falar em “colocar o pobre no orçamento e taxar o rico”, mas isso vira apenas demagogia sem a compreensão de que para isso é preciso enfrentar a ganância dos empresários pelo lucro e a propriedade privada.

“A esquerda é branca”

Outro ponto chamativo da entrevista se deu quando Brown questionou Lula se “a esquerda é branca?”. Primeiro, é de se lamentar que a referência de esquerda para a grande massa ainda seja a política de conciliação de classes petista. O PT e Lula não são de esquerda. Mas, aceitando esse referencial, a crítica do rapper procede e a resposta do petista, novamente, coloca a culpa nos próprios oprimidos. Ele diz que: “A política nesse país era uma coisa de branco mesmo”, justificando outra adaptação petista, que nunca elevou o combate ao racismo como um elemento estratégico da luta da classe trabalhadora no maior país negro fora da África.

Lula prossegue: “O que é que está acontecendo agora? É que há uma evolução política dos negros, tanto homens como mulheres. Porquê? Porque um grande número de gente está adquirindo consciência que não basta ficar achando que é vítima ‘Ah eu sou assim porque eu sou negro, gay’. Não! As pessoas resolveram ir a luta, resolveram brigar, eu quero o meu espaço...”. Novamente se mostra o rebaixamento do PT ao espontaneísmo da consciência dos trabalhadores, foi preciso os próprios setores oprimidos se organizarem para disputarem seu espaço, por fora de uma estratégia do partido para promover essa aliança dentro das fileiras operárias, por fora do partido defender o conteúdo de que os trabalhadores brancos precisam assumir as demandas dos trabalhadores negros, de que os homens precisam assumir as bandeiras das mulheres, precisam defender os direitos dos lgbts, de que todas as opressões são funcionais à exploração capitalista.

A velha conciliação travestida de frente ampla

Em síntese, a longa entrevista de Mano Brown com Lula poderia ser resumida a uma campanha publicitária em que Lula investiu todo o seu discurso eleitoral. Um discurso eleitoral que tem como objetivo principal resgatar o capital político de toda a biografia de Lula, desde a origem humilde como metalúrgico, passando pelo líder sindicalista depois dirigente político, até chegar aos anos dourados das administrações petistas, tudo com o intuito de conectar o ex-presidente com o eleitorado mais jovem que não viveu esse período, e também contrapor o sentimento antipetista que afastou parte do amplo eleitorado lulista. Nesse sentido, para vender esse discurso eleitoral é preciso não só esconder os defeitos do passado, a conciliação de classes presentes desde o DNA do PT, como reembalar o velho como coisa nova.

Dessa forma que o ex-presidente revisita os velhos amigos e caciques dos partidos da direita golpista vendendo a velha conciliação como uma nova necessidade de ampla unidade contra as ameaças à democracia, ou quer reeditar a parceria com o setor privado com as investidas para que Luíza Trajano seja sua vice. Mas o pior são as mostras que Lula dá de que irá aplicar novamente a mesma agenda liberal a serviço dos empresários e do capital financeiro, falando na necessidade de um “Estado indutor”, da possibilidade de abertura de capital da Caixa Econômica, e absolutamente nada sobre revogar a reforma da previdência e trabalhista, deixando claro que ele se prepara para gerir o legado de ataques que conduziram o país ao atual contexto de desemprego, miséria e retorno da ameaça de fome.

Como a maioria das propagandas, o discurso é muito diferente da realidade. Internamente, os golpistas que Lula está disposto a perdoar são os mesmos que foram degradando o regime, aprofundando seu autoritarismo, rasgando a CLT e revisando a Constituição, com a retirada de direitos e com as privatizações. Ou seja, as margens que o PT irá dispor de manobra para governar são muito menores, em um regime em que os militares, o judiciário, o centrão e o agronegócio aumentaram muito seu protagonismo.

Da mesma forma, internacionalmente a conjuntura mudou, caso seja eleito Lula não irá dispor de um novo superciclo de commodities em seu benefício. Um cenário que obrigará que os petistas novamente apliquem reformas em busca de atender as demandas do capital financeiro e levará a choques com sua base. Cenário que vemos se confirmar no nosso vizinho, onde o governo kirchnerista de Alberto Fernandez acaba de passar por uma importante crise política após o resultado das eleições primárias que confirmou a frustração da população com a manutenção dos ajustes em nome do FMI.

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O terreno eficiente de enfrentamento das tendências autoritárias não está no longínquo 2022. Está na luta de classes, assim como nos esforços por ajudar a erguer a classe trabalhadora como sujeito político independente, potencialmente hegemônico, dotado de um programa que faça os capitalistas pagarem pela crise. Para isso é fundamental enfrentar a paralisia das centrais sindicais, em especial as dirigidas pelo PT e o PCdoB (como a CUT e a CTB), construindo polos classistas e anti-burocráticos que batalhem pela frente única operária no único terreno em que essa tática, na concepção marxista, se aplica: o das tarefas práticas de ação na luta de classes, unificando como um só punho os trabalhadores para resistir aos ataques, e abrir caminho para a influência dos revolucionários. Em pequena escala, conflitos como o da MRV de Campinas, da RedeTV em São Paulo, da Sae Towers em Betim, da Carris em Porto Alegre, e da Proguaru em Guarulhos são sintomas de que há disposição de combate na classe trabalhadora. A contracara da ausência de independência de classes em organizações como o PSOL e o PSTU é a convivência pacífica com essas burocracias, lugar-tenentes dos capitalistas no movimento operário. É necessário batalhar para unificar nossa classe contra as intenções dessas direções, que atendem aos interesses eleitorais de Lula.