No fim de semana, em eventos que permanecem obscuros, fábricas de propriedade de chineses em Yangon, a principal cidade de Mianmar, foram queimadas e saqueadas. Uma contagem realizada na última segunda-feira mostrou que 32 empresas financiadas por aquele país foram afetadas. De acordo com a embaixada chinesa, as perdas totais chegaram a quase 240 milhões de yuans (37 milhões de dólares).

A diplomacia chinesa então pediu à Junta militar que governa o pais para que restaurasse a ordem. Em poucas horas, os generais foram forçados a fazê-lo: soldados mataram dezenas de manifestantes e a lei marcial foi declarada em Hlaing Tha Yar e outros distritos de Yangon.

Os distúrbios anti-China acrescentam uma nova dimensão internacional à crise política de Mianmar. Os manifestantes estão furiosos não apenas com os governantes militares, mas também, e cada vez mais, com o apoio velado da China à junta. Sua referência inicial ao golpe como um "caso interno" é motivo para paródia após os dramáticos eventos deste fim de semana. Assim, nas redes sociais, comentários como: “Então isso não é mais um ’assunto interno [sic]’. A China agora usa palavras fortes quando seus interesses são ameaçados”.

De acordo com o site Nikkei Asia: “Os jovens deste país já rechaçam os jogos móveis mais populares desenvolvidos por empresas na China continental”. "O boicote provavelmente afetará outros produtos, como telefones celulares, mas não será fácil para o público em geral boicotar tudo o que vem da China, especialmente bens e produtos básicos normais e baratos." Por sua vez, ativistas pró-democracia também suspeitam que especialistas chineses em segurança cibernética estão ajudando o Conselho a desenvolver tecnologia de censura na Internet semelhante às do gigante asiático.

Um ótimo teste para Pequim

Os interesses da China em Mianmar são claros: eles procuram manter uma parte de seus recursos naturais e hidrovias. Pequim quer que os generais relançem os planos de uma polêmica hidrelétrica para gerar eletricidade para a China, que a população local teme que vá prejudicar o meio ambiente e forçar milhares de pessoas a se mudarem. Da mesma forma, a burocracia do PCCh está faminta pelos metais de terras raras de Mianmar, insumos necessários para as principais indústrias, como energia e transporte. A China também precisa que Mianmar continue construindo um gasoduto conectando a província chinesa de Yunnan ao porto de águas profundas de Kyaukpyu no estado de Rakhine para acessar o Oceano Índico, onde a China compete pela supremacia marítima com a Índia.

Por tudo isso, o governo chinês, em sua primeira expressão direta de preocupação com a situação, instou Mianmar a tomar medidas para "prevenir resolutamente a recorrência desses incidentes". Em uma declaração urgente no domingo, o porta-voz do Ministério das Relações Exteriores chinês evitou mencionar mortes de civis, dizendo que seu país estava "muito preocupado com o impacto sobre a segurança das instituições e do pessoal chinês". Em particular, Pequim ficou alarmada com as ameaças de ativistas pró-democracia aos dois oleodutos e gasodutos apoiados pela China que percorrem quase 800 km de Mianmar. Altos funcionários do Ministério das Relações Exteriores mantiveram uma reunião virtual de emergência com funcionários do Ministério do Interior e do Ministério das Relações Exteriores de Mianmar para pressionar o regime militar a garantir a segurança dos oleodutos.

Rumo a uma intervenção direta?

A burocracia do PCCh está profundamente preocupada com a instabilidade em sua fronteira e frustrada com o fracasso dos generais em acabar com os distúrbios pós-golpe. É que, em meio à crescente reação pública em Mianmar, será mais difícil para o governo de Xi Jinping levar adiante projetos estratégicos no âmbito da Rota da Seda conectando Mianmar à China. Além disso, a segurança desses projetos está cada vez mais em questão.

No momento, como em Hong Kong, espera que a ordem seja restaurada após a repressão sangrenta sustentada pela junta. Mas se o sentimento anti-chinês crescente se tornar mais violento, a China pode se sentir compelida a fazer algo um pouco mais radical. Após os acontecimentos do fim de semana, a mídia estatal chinesa CGTN alertou que o país "não permitirá que seus interesses sejam expostos a novos ataques", acrescentando que "se as autoridades não cumprirem e o caos continuar a se espalhar, a China poderá ser forçada tomar medidas mais drásticas para proteger seus interesses."

No entanto, uma intervenção militar direta seria uma ruptura com a alardeada política chinesa de não ingerência nos assuntos políticos internos de outros países, dando um golpe de misericórdia à imagem que em de Pequim de uma superpotência asiática poderosa, mas benevolente, a principal razão por trás de sua diplomacia da vacina de COVID. Também pesa que a última vez que o país desdobrou forças de combate no exterior foi em 1978, quando a China perdeu uma breve guerra com o Vietnã. Uma memória ruim que não incentiva.

À medida que os eventos em Mianmar radicalizam e aprofudam, a China está em uma dificuldade maior de saber como responder. A seguir.