Publicado Originalmente em www.reajanasruas.blogspot.com.br

Salve Negro Blul, meu parceiro,

Chegamos em agosto de 2015 e já fechou 09 anos de sua morte. São nove anos te escrevendo, são nove anos que fazemos um tributo em sua memoria. Agora, te peço permissão para parar de escrever. Não é bem parar, mas mudar minhas tristes e tortas linhas para um outro destinatário, vários deles, abatidos pela tirania estatal.
Te peço Blul, que acolha os meninos do Cabula, os mais de 12 de que fala a ação penal que pronunciou aqueles soldados da Rondesp, aqueles mesmos, agraciados por uma dancinha da Igualdade e uma sentença absolutória construída pela ilegalidade jurídica do Estado da Bahia, essa promiscuidade politica que sustenta a supremacia branca sobre nossos corpos pretos vulneráveis, desprotegidos.

Te peço que acolha os meninos de Valeria que foram arrancados de suas casas, dos braços das mães para serem abatidos como gado, alimentando assim a grande indústria da violência que segue crescendo na Bahia como seus agentes burocráticos, uma grande parte em cargos de confiança sob a farsa de lutar por pretos e pretas. Uma mídia de rapina, um corpo de operadores do direitos dos brancos, para os brancos com um branco no comando sempre. Essa gente faz tudo para manter uma ordem que mata preto. Nós aqui dos campinhos de terra molhado de chuva e sangue, estamos criando as condições para demolir essa ordem injusta Acolha-os Negro Blul e descanse, que nós seguimos daqui.
A justiça que conseguirmos aqui te envio como luz, mas meu preto, eu e meus amigos e amigas, irmãos e irmãs da Reaja que se espalham pelo pais e fora dele, não acreditamos em justiça, acreditamos em combate, o combate pode produzir a luz que aquecerá nossos mortos. Que te aquecerá, antes de seu retorno para acabar de cumprir seu destino interrompido.

Nós estamos espalhando um sentimento de amor pelas cidades, amor entre nós, um sentimento de quem se importa com a dor alheia, uma tática de luta sem os vícios desse pragmatismo que saiu dos partidos loucos para ocupar a maquina estatal e que contaminou os movimentos com essa coisa menor de lucrar com a desgraça alheia.
Você sabe Blul, estivemos juntos por todos esses anos e vocês, nossos mortos, são o farol que guia a Reaja, a presença de vocês é sempre reclamada por nós quando vamos as ruas, aos congressos, na frente das autoridades hipócritas reclamar reparação por nosso martírio coletivo desde o colonialismo e a escravidão.
Evangivaldo, Bronca, Ricardo e Ênio, Jean e Sapo, Márcia e David, Jackson e Joquielson , Edlane, Alax e Riquinho, e os meninos de Canabrava, de Fazenda Coutos os meninos que eu não sei o nome mais que me visitam pela madrugada me arrancando o sono para que meus olhos os proteja. Eu conheço cantos sagrados que abrem nas matas densas passagens para o repouso certo nos Braços de Ya Bain, Buruku e o calor das asas de Oya sendo borboleta.

Não tenho ainda como olhar para esses meninos que tombaram recentemente em Cabula, Valeria, Cosme de Farias e Fazenda Coutos. O sangue deles ainda arde na terra fria da Estrada das Barreiras, ou na terra pisada dos Casebres de Fazenda Coutos. Não sei o que cantar para eles Blul, ofereço esse silencio noturno , essa nicotina que me consome, esse meu choro preso que as vezes explode nas manifestações ou nessas reuniões que não levam a nada.

Adeus Negro Blul, eu já estou chegando por ai, por enquanto vou seguindo com meus amigos e amigas mortas que preparam uma Marcha para se unir aos vivos, e sigo atento aos meus amigos e minhas amigas Encarceradas que nos dão um recado simples sobre nossa vida nesse Estado Racista Neocolonial Decadente. Dizem-me que sem lutar nós negras e negros aceitamos o cativeiro, nos rendendo voltamos a condição do nada semovente que se projetou para nós naquele antigo sequestro pelas águas do atlântico. Siga meu amigo morto, transfigurado em luz. Você é livre agora e agora você sabe o que é paz.
Eu não sei e pouco me importa.

Hamilton Borges dos Santos (Walê)
Coveiro Amador da Cidade Tumulo – Salvador
Dessa Bahia de grade , covardia e servidão
Agosto de 2015 – Rumo a III Marcha Internacional Contra o Genocídio do Povo Negro