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Classe e patente, hierarquia e revolta: praças contra oficiais nas Forças Armadas brasileiras

Mateus Castor

Classe e patente, hierarquia e revolta: praças contra oficiais nas Forças Armadas brasileiras

Mateus Castor

As revoltas de Sargentos e Marinheiros no contexto do pré-golpe de 1964 buscaram se conectar com as massas contra a conspiração do alto comando. Mesmo derrotadas, não podemos renegá-las ao esquecimento. Tais revoltas fazem parte daquela história brasileira que é silenciada em comum acordo entre os defensores da ditadura, liberais democratas e pela esquerda reformista: uma história em que os explorados e oprimidos ousam lutar e vencer.

“Militares” é um termo recorrente pela grande parte da mídia e analistas quando vão falar sobre os movimentos da cúpula militar. Ocorre que as Forças Armadas (FAs) não são compostas somente de generais encastelados em privilégios e salários extravagantes. A maioria dos fardados, dos “militares” é composta por soldados, cabos e sargentos, os praças. Durante o governo Bolsonaro, tivemos outra reforma da previdência além da civil. Ocorreu a reforma da previdência militar, que atacou direitos das patentes baixas e salvaguardou os privilégios das patentes altas, um sintoma na contemporaneidade de um processo que desde sempre entrou nos quartéis, sem pedir licença: a luta de classes.

O alcance do bolsonarismo na base das FAs não significa que nela não se expressam as contradições de uma sociedade capitalista, racista e opressora. Podemos afirmar que, mesmo que o generalato busque esconder essa história a sete chaves, os praças se rebelaram, como a Revolta da Chibata.

No aniversário de 60 anos do golpe militar, que o governo Lula-Alckmin deseja deixar ao passado, vale lembrar que nada de inevitável ele teve. As revoltas de Sargentos e Marinheiros no contexto do pré-golpe de 1964 buscaram se conectar com as massas contra a conspiração do alto comando. Mesmo derrotadas, não podemos renegá-las ao esquecimento. Tais revoltas fazem parte daquela história brasileira que é silenciada em comum acordo entre os defensores da ditadura, liberais democratas e pela esquerda reformista: uma história em que os explorados e oprimidos ousam lutar e vencer.

Os quartéis não podem fugir das contradições do capitalismo

As Forças Armadas brasileiras constituíram-se como tal na formação de um Estado surgido de um processo violento de expropriação, durante o qual a elite colonial - e depois imperial - tomou terras e dizimou povos indígenas inteiros, enquanto sustentava suas riquezas sequestrando negros e lucrando com o trabalho escravo. Com a exceção do morticínio na Guerra do Paraguai, as Forças Armadas brasileiras sempre estiveram mais preocupadas com os “inimigos internos” da nação. Entenda-se o conjunto dos oprimidos e explorados.

Das missões e expedições para caçar e exterminar indígenas; para destruir quilombos, como Palmares; ou comunidades de camponeses pobres, como em Canudos. As Forças Armadas detém em sua História mais confrontos contra seu próprio povo, além da ruína sangrenta na qual deixou os paraguaios. O oficialato do exército é herdeiro dos bandeirantes, das milícias das capitanias coloniais e de bandos mercenários, que reprimiram revoltas escravas como a dos Malês

Porém, como toda Força Armada, é preciso recrutar soldados de algum local. Durante os primeiros anos de monopólio da força “brasileira” no século XIX, as altas patentes eram simplesmente recrutadas dos mais altos estratos da elite econômica, escravocrata e da burocracia imperial, por outro lado os praças - soldados, cabos e sargentos - provinham das camadas inferiores, entre brancos empobrecidos, indígenas e negros, que viam no fuzil uma oportunidade de liberdade da escravidão.

Ainda que tenha se modernizado aos moldes de Forças Armadas como a francesa e a alemã no início do século XX, e adotado métodos de seleção não tão abertamente nobiliárquicos, baseados em processos de seleção formais, oficiais e praças continuam a provir de extratos sociais diferentes. Hoje, por exemplo, a AMAN forma oficiais aqueles que conseguem passar em seus processos seletivos e anos de formação, cuja grande maioria já provém de famílias militares e endinheiradas; por outro lado, a ESA forma sargentos, provindos de extratos sociais de origem proletária.

Por mais que as altas cúpulas se esforcem por toda a História em produzir uma ideologia nacionalista, que coloque a defesa da pátria e a noção de “povo” acima das diferenças de classe, a “família militar” já esteve em profunda crise em diversos momentos. A hierarquia, princípio primário da vida militar, já foi pisoteada em diversas circunstâncias no passado. Não só em disputas de interesses entre os próprios oficiais, caso do tenentismo e muitas outras, como também, o que mais gera temores entre generais, revoltas de praças contra os oficiais.

Na vida civil, o confronto entre diferentes camadas se expressa diretamente através da luta de classes. Fato é que as instituições responsáveis por gerir a força estatal, por mais que busquem produzir uma ideologia de corpo hegemônico, não estão apartadas da sociedade. Em muitos contextos, os interesses entre praças e oficiais se chocam e conflitos explodem. Valores como a obediência cega à hierarquia, as humilhações e lembretes cotidianos da ordem de comando, firmaram durante séculos uma estrutura de poder na qual, em diversos momentos, tal desigualdade entre fardados, privilégios de oficiais e opressão aos praças, se expressou através da luta, sempre misturada com processos da luta de classes fora dos quartéis entre explorados e oprimidos.

Da Revolta da Chibata as revoltas de praças que antecederam o golpe de 1964

As contradições da sociedade capitalista, suas hierarquias e relações, são reproduzidas dentro das FAs. Elas se expressaram em luta de classes dentro da Marinha na Revolta da Chibata em 1910. Marinheiros liderados por Antônio Cândido tomaram o controle de quatro navios, armados até os dentes, na Capital Rio de Janeiro, e viraram os seus canhões para a capital. Exigiam o fim das punições com chibatadas - herança da escravidão que, não por acaso, era aplicada pelos oficiais em soldados, muitos deles negros. O gatilho da revolta foi quando um marinheiro foi amarrado no mastro do convés, o que gerou uma reação em cadeia dos soldados negros.

O medo foi tanto das autoridades da República e dos oficiais que o presidente marechal Hermes da Fonseca teve que ceder a anistia e prometer o cumprimento das reivindicações. Contudo, seguindo o protocolo histórico de covardia e traição, a República e os militares descumpriram sua palavra e prenderam os revoltosos. Em 1910, a classe trabalhadora brasileira se constituía como um sujeito político ativo, com a formação de sindicatos e organização de greves, como foi a forte greve geral de 1917, ano da Revolução Russa.

É comum que processos como o tenentismo, da década de 1920, ganhem uma grande evidência nos livros de História. A revolta dos novos oficiais teve a presença de muitos jovens provenientes de famílias pequeno-burguesas e burguesas que viam na carreira militar uma oportunidade de formação acadêmica. Influenciados pelo pensamento burguês liberal europeu, reproduziam as tendências de disputa entre a burguesia industrial em ascensão e a velha oligarquia pré-republicana latifundiária. Luis Carlos Prestes formou-se na escola tenentista e, ainda que tenha dirigido a chamada “Intentona Comunista” de 1935, seguiu a tradição do PCB de buscar uma ala burguesa “moderna e progressista” para tomar o poder e superar os traços “feudais” do Brasil.

Quando ascende ao poder, a burguesia também organiza seu monopólio da força, agora profissionalizado, não mais diretamente atado à terra e comandado pela nobreza. Sua ideologia liberal estabelece que o Estado-nação moderno deve ter poderes separados e Forças Armadas que sejam um “poder de Estado” e não sigam nenhum bando burguês em disputa pelo poder. Este acordo entre as próprias frações burguesas encontrou respaldo na realidade: em momentos de crise do poder estatal, as FAs surgem como garantidoras últimas da ordem capitalista. Por outro lado, detém um aspecto absolutamente idealista: homens armados “imparciais”. Em processos de disputa pelo poder, o oficialato se dividirá conforme as disputas entre a classe dominante, da mesma forma os praças, em momentos agudos da luta de classes, se alinharam à classe trabalhadora e oprimidos.

Vemos tal processo ocorrer novamente na década de 60. Em última instância, as Forças Armadas brasileiras nunca se aproximaram do tipo ideal de exército liberal. Os oficiais sempre tomaram o lado de algum bando burguês em toda sua existência, tal como foi no golpe de 1964, quando resolveram assumir, eles próprios, a direção direta do Estado. O que impediria os praças, recrutados nas fileiras de operários e camponeses, tomarem o lado do proletariado e campesinato em luta na década de 60?

A Associação dos Marinheiros e Fuzileiros Navais do Brasil: maior expressão da auto-organização das bases das Forças Armadas

A partir de 1961, as divisões que até então se expressavam predominantemente entre setores da oficialidade e do alto-mando, passaram a se expressar também com revoltas das bases contra o alto-mando e tendências à ligação dos soldados e suboficiais com o movimento operário e camponês.

A “Rebelião dos Marinheiros”, expressão mais avançada do conjunto deste processo, foi um levante dirigido pela Associação dos Marinheiros e Fuzileiros Navais do Brasil (AMFNB) que ocupou o Sindicato dos Metalúrgicos da Guanabara de 25 a 27 de março. A AMFNB surgiu em 1962, após a renúncia de Jânio Quadros. Ela organizava baixas patentes e conseguiu o apoio das massas dos marinheiros. Como durante a Revolta da Chibata, a Marinha estava marcada por um profundo antagonismo. Provindos em grande parte do campo nordestino, os marinheiros mal podiam sair dos navios, comiam em cozinhas separadas por patente, não podiam se casar, ouvir rádio, votar e ser eleitos, e seus salários não chegavam sequer a um salário mínimo. Entre 63 e 64, a Associação funcionou baseada em um sistema de delegação arraigado nos setores mais proletarizados das repartições e dos navios, que passaram a participar ativamente da vida política da entidade, preenchendo a sede com centenas de ativistas envolvidos diariamente entre assembleias, reuniões, panfletagens etc.

As contradições na AMFNB traziam à tona o maior limite do processo, a direção do PCB. Com uma estratégia de seguidismo às alas janguistas da burguesia e contendo a espontaneidade das massas, o PCB impediu que se desenvolvessem as potencialidades de uma aliança mais orgânica entre os marinheiros, o movimento operário e o movimento camponês. As deliberações da associação chegavam até aos navios em alto-mar em poucas horas. A pressão da base também forjava uma aliança com os operários e camponeses. Os diretores mantinham contato com sindicalistas, organizavam cursos de auto-defesa para militantes camponeses das Ligas e diretamente boicotaram a repressão de acampamentos, como vemos abaixo:

A sub-sede de Brasília participou de dois episódios que acabaram custando a vida de um companheiro fuzileiro. O primeiro fato esteve relacionado com um acampamento das Ligas Camponesas em Goiás, ao norte de Brasília. O local foi detectado pelos serviços de informação e o batalhão de fuzileiros, sediado em Brasília, recebeu ordens de reprimir. A sub-sede informou a diretoria da associação e nós, imediatamente, repassamos o informe para Francisco Julião, líder das Ligas, que resolveu pedir nosso apoio. (...)Tínhamos uma grande simpatia pelas Ligas e um bom relacionamento com Julião. Traçamos um plano imediatamente. Enquanto orientávamos a sub-sede para atrasar ao máximo a operação militar, Julião e seus companheiros deveriam sair do local. Se os fuzileiros fossem obrigados a atacar o acampamento, fariam barulho, mas não atirariam nem prenderiam ninguém, apenas exortariam as pessoas do local. A sub-sede de Brasília conseguiu levar a orientação na prática e tudo saiu melhor do que planejamos, mas criou-se uma tensão dentro da corporação que extrapolou os limites de Brasília.
Acima, vemos elementos embrionários de duplo poder em relação ao almirantado e aos planos golpistas. Os próprios diretores reconheciam que eram levados pela luta de classes: “tinha a sensação de que eu não decidia nada”, e sem o controle a “diretoria era forçada a agir na defensiva”. Não por acaso, a separação entre a base radicalizada e a direção conciliadora ocorreu quando a intervenção da AMFNB na luta de classes foi mais aguda: na “revolta dos sargentos”, na “rebelião dos marinheiros” e na resistência ao golpe.

A traição do PCB: morre na praia a aliança entre os marinheiros, operários e camponeses

Na “revolta dos sargentos” de 1963, a diretoria orientou a sede de Brasília a ler um apoio aos sargentos da aeronáutica e nada mais. A regional, porém, participou da tomada de prédios públicos e de um tiroteio. Temendo represálias e tentando alcançar a situação, a diretoria organizou a tomada dos quartéis e navios. Segundo relato de Capitani, um diretor, houve uma ordem da Associação para avançar com o plano. Contudo, houve um recuo da direção. Os marinheiros desorganizam a tomada do quartel, e “houve um recuo sem que o Comando do Quartel tomasse conhecimento” (...)

Em 1964, a enorme polarização nacional provocava reflexos no antagonismo entre praças e oficiais e, ao mesmo tempo, a política do PCB e do PTB reforçava o papel conciliador da diretoria da AMFNB. A base estava radicalizada, disposta a tomar em armas com os operários, resolver suas demandas por si mesma e, por outro lado, a direção conseguia ser um freio maior. A “rebelião dos marinheiros” e a tentativa de resistência ao golpe são um processo só, marcado por essas mesmas contradições.

Em março, a diretoria programou um ato-festa no Sindicato dos Metalúrgicos. O almirantado o proibiu. Sabia-se também que o almirantado queria atacar os marinheiros. Os marinheiros que serviam café ao almirantado informaram aos diretores que eles seriam presos naquele mês, como parte da preparação do golpe. No dia do ato, 25 de março, eclodiram os primeiros confrontos diretos: marinheiros presos sem justificativas; diretores da AMFNB presos; oficiais jogados ao mar pelos marinheiros; marinheiros metralhados no caminho do sindicato. Um ato foi chamado e reuniu cerca de 4 mil marinheiros. Desde o começo já era uma revolta.

Vários marinheiros defendiam ir à prisão para libertar à força seus companheiros. A diretoria propunha dispersar, e para isso utilizava o pretexto de que seria “cair em provocação”. Sem sucesso, até surgir uma proposta intermediária que convenceu a base: ficariam ali em vigília no sindicato em assembleia permanente até a libertação. Sem controle, a Marinha resolveu reprimir. Enviaram a mais especial das forças: o batalhão de choque dos fuzileiros navais. O movimento conseguiu que os membros do batalhão deixassem suas armas e aderissem à assembleia. O almirantado não mandava mais.

Logo, porém, a direção da AMFNB conseguiu prestar um valioso serviço à burguesia: abandonaram a reivindicação central de liberdade imediata dos presos (que seriam libertos apenas dias depois para evitar a desmoralização do almirantado) em troca da nomeação de um ministro “nacionalista e democrático” ligado ao trabalhismo janguista. A diretoria se esforçava para orientar os marinheiros e fuzileiros rebelados na sua volta à normalidade e na garantia de apoio ao novo Ministro.

Apesar do desvio do levante para eleger um ministro, a base ainda se mostrava disposta a resistir ao golpe e medir suas forças e as do movimento operário com as dos oficiais e da reação. Todos, da AMFNB ao PCB e Goulart, sabiam, há muito, que ocorreria o golpe, e não tomaram medidas de defesa. Nos dias 30 e 31 ele era totalmente visível e novamente a base tentou ultrapassar a direção, e esta, forçada pelos marujos e pela situação, também começou a agir. Os marinheiros inviabilizaram os canhões e os motores de vários navios e ficaram aguardando ordens. A AMFNB por sua vez emitiu ordens para buscar armas e obedecer aos oficiais fiéis ao governo de Goulart e surgiram milícias de marinheiros que se preparavam para prender Lacerda (governador do Rio de Janeiro e uma das principais lideranças do golpe).

Aguardavam ordens de Goulart e outros “progressistas” que nunca chegaram. Preparavam-se para distribuir armas para os operários através do CGT e formar batalhões de operários e marinheiros. O CGT nunca apareceu. Tinham disposição de lutar e, frente à covardia e capitulação de suas direções, não se propuseram a ser massacrados. Estavam em menos de 5 mil homens, com armamentos da 1ª guerra mundial, sem treinamento para enfrentamento terrestre, frente a uma força de 11 mil efetivos do Exército, melhor armados, treinados, e que ainda esperavam um reforço de mais 50 mil homens que vinham de Minas Gerais e São Paulo.

Perdidas as brechas à esquerda, a situação se fechou à direita. Morreram na praia as possibilidades de desenvolvimento do que foi um embrião de auto-organização dos marinheiros, e de sua vontade de forjar uma aliança com batalhões de operários. Os marinheiros eram vanguarda e a ditadura os tratou assim: tentou prendê-los antes do golpe, e depois dele o número de presos e desaparecidos na Marinha foi o maior das Forças Armadas.

Os marujos do pré-64 construíram um embrião de soviet, estiveram dispostos a se aliar aos trabalhadores contra o Estado burguês, tomar em armas e resolver por si mesmos suas demandas: são uma mostra, como expressão mais avançada do que ocorria na base das Forças Armadas, das condições existentes para resistir ao golpe militar com os métodos da revolução proletária.


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Mateus Castor

Cientista Social (USP), professor e estudante de História
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