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Entrevista com Luciano Mendonça: “A abolição da escravidão no Brasil não se reduziu a uma data, nem tampouco foi uma dádiva da classe dominante brasileira”

Redação

Entrevista com Luciano Mendonça: “A abolição da escravidão no Brasil não se reduziu a uma data, nem tampouco foi uma dádiva da classe dominante brasileira”

Redação

Publicamos abaixo a entrevista de Luciano Mendonça de Lima, professor de história da UFCG e militante de base da Adufcg/Andes-SN. Natural de Campina Grande, Bacharel em História pela UFPB, Mestre em História pela Unicamp e doutor em História pela UFPE. Atualmente é um dos coordenadores do Grupo de Estudo e Pesquisa em Marxismo da UAHIS/CH/UFCG e pesquisa na area de escravidão e racismo, movimentos populares no século XIX e ditadura militar. Esta entrevista foi concedida a Renato Shakur, doutorando em História pela UFF.

1- IDE: Você poderia falar um pouco do processo do Quebra-Quilos no geral, mas na Paraíba em particular, ressaltando a participação escrava nessa luta?

L.M.: O Quebra-Quilos foi um dos mais importantes movimentos populares da história do Brasil, embora ainda pouco conhecido do grande público. Ele aconteceu pouco mais de duas décadas depois de um outro relevante movimento popular, O Ronco da Abelha ou Guerra dos Maribondos, que teve como palco as províncias do Norte do Império, hoje região Nordeste. Ambos ocorreram na segunda metade do século XIX, em momento de crise da sociedade escravista nortista e expressam, à sua maneira, a luta de classes e o protesto da população pobre, liberta e escravizada contra o arbítrio senhorial.

No caso do Quebra-Quilos, ele teve início no dia 31 de outubro de 1874, um sábado de feira, quando grupos de populares, comandados por João Viera da Silva, vulgo João Carga D’ Água, invadiram vilas e cidades, destruindo os padrões do sistema métrico decimal recém impostos aos pobres, incendiavam repartições públicas, arrombavam cadeias e atacaram autoridades e proprietários locais, para em seguida desaparecer de cena de forma tão espetacular como haviam aparecido. Desta vez, a palavra de ordem que ecoou mais fortemente foi de “quebra os quilos”, alcunha que acabou dando nome ao movimento, já que os símbolos do novo sistema métrico decimal de origem francesa (baseado no metro, quilo e litro, e não mais na cuia, na vara e na braça, estas últimas originárias da Península Ibérica e trazidos para cá pelos portugueses) se transformaram no alvo principal da ira coletiva.

Essas mudanças “modernizadoras” postas em prática pelo Estado imperial e setores das classes proprietárias se chocavam com o mundo tradicional das camadas populares do campo e da cidade (constituída de posseiros, sitiantes, moradores, agregados, artesãos, desocupados etc.), gerando assim reações difusas. Esse quadro se materializava em medidas impostas de cima para baixo, tais como a substituição dos mencionados padrões de pesos e medidas, a criação e aumento de novos impostos, a intensificação da exploração do trabalho, a repressão aos “de baixo”, a carestia, a nova lei do recrutamento militar, dentre outras medidas draconianas.

Foi contra esse estado de coisas que os populares reagiram, pois esse conjunto de medidas ameaçava desmoronar o seu mundo tradicional, trazendo mais dor e sofrimento para a vida dos pobres da região. Iniciado na Paraíba, o movimento logo se espalhou, tal qual rastilho de pólvora, por Pernambuco, Rio Grande do Norte, Alagoas, Ceará e outras províncias, chegando a ter repercussão na Corte, no Rio de Janeiro, Capital do então Império do Brasil. Em Campina Grande, município localizado no agreste paraibano e epicentro da revolta, a população escravizada, tendo à frente os irmãos cativos Firmino e Manuel do Carmo e o liberto Benedito, aproveitaram a ocasião de desordem e entraram em cena com suas próprias reivindicações, exigindo, na “lei ou na marra”, a liberdade individual e coletiva.

Diante de tamanhas ameaças sociais e políticas, os grupos dominantes e autoridades a seu serviço se rearticularem num momento de perigo para fazer valer seus interesses de classe, pondo em prática uma verdadeira operação de guerra para combater os revoltosos, expresso em perseguição arbitrárias, julgamento sumário, uso de tortura, como o infame colete de couro, o emprego de armamentos pesados, como canhões etc. Em que pese a violenta repressão que se verificou então, grupos remanescentes conseguiram escapar e se internaram nas matas e locais íngremes dos arredores, constituindo os mocambos de Pedra D’Água e Caiana dos Crioulos, que podem estar na origem de duas das mais de 50 comunidades quilombolas, atualmente espalhadas pelo território paraibano. Nesse sentido, visto em retrospectiva, o Quebra-Quilos não foi de todo derrota, contribuindo com suas ações para o desmoronamento da ordem imperial e escravista, embora o que tenha vindo em seguida ao 13 de maio de 1888 não tenha sido exatamente o que a maioria dessa gente pobre, preta e trabalhadora imaginou.

Graças à força da tradição oral, numa região em que a maioria da população vivia no campo e era analfabeta, essas histórias resistiram ao tempo e assim puderam chegar aos ouvidos, corações e mentes das gerações subsequentes. Não por acaso João Pedro Teixeira, um dos principais líderes das Ligas camponesas paraibanas fundadas entre finais dos anos 1950 e começo dos anos 1960, costumava frequentar as feiras locais, como outrora fizera João Carga D’Água, seu antepassado de classe e de raça, para conversar e convencer seus camaradas a participar das grandes manifestações de rua, no campo e na cidade, em favor da Reforma agrária e contra a violência e o arbítrio dos latifundiários capitalistas do chamado grupo da várzea, donos dos Engenhos, das Usinas e da máquina repressora do Estado. Também não é coincidência o fato de que o MST-PB (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra) tenha denominado um de seus acampamentos/assentamentos, localizado na circunvizinhança de Campina Grande, justamente com o nome de Quebra-Quilos.

Uma prova a mais de que nenhuma história dos de baixo é em vão, mesmo que momentaneamente incompreendida, esquecida e vilipendiada pela memória dos vencedores. Movimentos populares do passado, a exemplo do Quebra-Quilos, nos ensinam que a luta por pão, terra, trabalho, liberdade e o direito a sonhar por um mundo sem exploração nem opressão, sem amos nem escravos, continua de pé e na ordem do dia.

2- IDE: Sobre o processo de abolição no Nordeste, onde teve inúmeras lutas de trabalhadores escravizados e livres, você poderia abordar o aspecto da importância da luta negra na conquista da abolição?

L.M.: Ao contrário do que uma historiografia conservadora construiu e o senso comum absorveu acriticamente, a abolição da escravidão no Brasil não se reduziu a uma data, nem tampouco foi uma dádiva da classe dominante brasileira, expressa na Lei Áurea assinada pela Princesa Isabel em 13 de maio de 1888. Na verdade, como muitas pesquisas de ponta vêm mostrando, o fim da escravidão (a mais longeva instituição da história do Brasil) foi um processo longo, complexo e cheio de contradições, que remonta ao início da segunda metade do século XIX. Como ela nem sempre se desenvolveu de maneira uniforme no território brasileiro, esse fato acabou implicando em diferenciações regionais importantes. No caso do norte do Império, o processo abolicionista coincidiu com a relativa decadência da economia local e parte dos senhores se aproveitou para minimizar a situação vendendo boa parte de sua escravaria (por conta do fim do tráfico negreiro em 1850 e o consequente aumento do preço dos cativos) para a região sudeste em função da expansão da cultura cafeeira. Enquanto isso, os escravos que permaneceram na região (juntamente com o crescente contingente de homens livres pobres) passaram a ser ainda mais explorados e cruelmente tratados por seus proprietários e prepostos, gerando novas tensões e conflitos sociais. Daí observarmos o aumento do número de fugas, assassinatos de senhores, intensificação da luta pela liberdade e a própria eclosão de movimentos coletivos, como foi o caso do Quebra-Quilos, que como vimos, teve uma significativa participação da população negra, constituída da plebe precariamente livre, libertos e os próprios escravizados. Quanto ao movimento abolicionista regional, a exemplo do Brasil como um todo, foi hegemonizado por setores da classe dominante, mas também teve sua ala popular, como o Clube do Cupim de Pernambuco e outras organizações e militantes, cujo projeto visava ir além da pura liberdade formal. Esse último projeto foi derrotado, pois os adesistas de última hora se articularam para colher os “louros da vitória”, mantendo seus privilégios de classe, expresso na estrutura política coronelista republicana, no reforço do monopólio da terra e em novas/velhas formas de exploração da força de trabalho subalternizada. Quanto aos ex-escravizados, a árdua luta pela liberdade e por direitos, continuou, agora no contexto do capitalismo periférico, dependente e racista, embates estes que chegaram aos nossos dias.

3- IDE: Você poderia falar sobre a importância do Marxismo para estudar e compreender os processos de luta negra que tiveram no Brasil em suas variadas expressões como as revoltas, greves, quilombos, etc?

L.M.: A importância da tradição marxista (vista em sua unidade e diversidade teórica e política) para a compreensão da escravidão, do racismo e da luta do povo negro no Brasil deita raízes profundas no tempo. Arrisco a dizer que o melhor que se produziu sobre a temática tem a marca do materialismo histórico e dialético, verdadeiros clássicos da historiografia e das ciências sociais do nosso país, materializado na obra de autores como Edison Carneiro, Clóvis Moura, Florestan Fernandes, Octávio Ianni, Emília Viotti da Costa, Jacob Gorender, Marcelo Badaró, dentre outr@s. É verdade que dos anos 1990 pra cá (com a hegemonia do neoliberalismo na sociedade e do pensamento culturalista e pós-estruturalista na universidade) essa tradição vem sendo questionada e negada por boa parcela dos ativistas dos movimentos negros e de uma geração de acadêmicos formada dentro do espírito anti-marxista e anti-socialista, a ponto de arrogantemente decretarem a morte da teoria e do projeto societário inaugurado por Marx e Engels no século XIX e desde então espalhado pelo mundo afora. São os adeptos do identitarismo, das epistemologias do sul, do pensamento decolonial e pós-colonial, que acreditam que os problemas das classes e grupos subalternos, aí incluso os do povo negro, podem ser resolvidos no horizonte do capitalismo. Nada melhor do que a prática, que continua sendo o critério da verdade, para desmascarar essas falácias. Malgrado os esforços dessa gente, totalmente domesticada e cooptada pela ideologia e a concessão de pequenas migalhas materiais oferecidas pelo capital e seus diferentes governos (inclusive o atual de hiper conciliação de classes), o marxismo nunca esteve tão vivo e necessário no Brasil e no mundo como hoje, com a emergência de uma nova geração de intelectuais e militantes orgânicos, negros e não negros, que defendem que só com a articulação dialética entre raça e classe é possível resolver a questão negra, como parte da luta estratégica de massas contra a barbárie capitalista e a construção do socialismo.


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