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Trótski comunicou com Havana

Sergio Abraham Méndez Moissen

Trótski comunicou com Havana

Sergio Abraham Méndez Moissen

Trótski foi o revolucionário mais importante do século XX. Como é que ele se saiu na ilha de José Martí?

Cuba teve uma poderosa geração de marxistas heterodoxos durante a revolução de 1933. Influenciados pelo espírito crítico de José Martí, adotaram uma abertura intelectual sem paralelo. Martí, que se exilou em Nova Iorque, lutou pela independência com a caneta e a espingarda. Este homem, que escreveu o belo ensaio "Nuestra América", leu os anarquistas e também Karl Marx.

Carlos Baliño, companheiro de armas de Martí, foi um dos fundadores do primeiro Partido Comunista de Cuba. Isso foi possível, em grande medida, porque Martí admirava Marx e o lia. Procurou compreendê-lo e disse no dia da morte de Marx que, embora não se pudesse considerar marxista, com a morte do alemão os pobres do mundo perdiam uma das figuras mais gigantescas da luta pela liberdade e pela justiça.

Os marxistas de 1933 de que falo - que não pertenciam ao PC Cubano ou que foram expulsos desse partido estalinista - foram chamados, por especialistas da ilha, os marxistas "pela liberdade". Estamos a falar de Pablo de la Torriente Brau, Julio Antonio Mella e do poeta surrealista Juan Ramón Brea. No México, o nome de Mella é mais conhecido, pois foi assassinado no Centro Histórico quando passeava com a sua companheira Tina Modotti.

Estes marxistas vieram a batalhar intelectual e politicamente com a "ortodoxia" do seu tempo, hegemonizada pelo PC Cubano. Este último pensava, através do gabinete caribenho da IC, que a ilha da monocultura açucareira não estava preparada para a revolução socialista. Em muitos aspectos, o seu pensamento não cabia nos conceitos quadrados impostos pelo Kremlin e pelos seus dirigentes para pensar a América Latina.

Embora não tenham conseguido uma obra tão acabada quanto a de José Carlos Mariátegui, que escreveu sobre a cultura andina [1], os marxistas citados se opunham ao dogmatismo e até liam cada vez mais Leon Trótski. Os jovens universitários que se envolveram em lutas de rua - "tanganas" - com a polícia do ditador Gerardo Machado, leram Trótski. Sim, isso está em suas cartas, textos e memórias. Julio Antonio Mella dedicou o seu jornal "Tren Blindado" à honra do fundador do Exército Vermelho. Mella foi expulso pelo PC Cubano e tachado de trotskista por discursos "pequeno-burgueses" após a sua greve de fome.

Brea, o poeta, após uma viagem à Europa, tomou contato com a obra de Trótski e difundiu as suas ideias entre os estudantes. Foi um dos criadores da Ala Esquerda Estudantil, que se opunha ao Diretório dos Estudantes com base na estratégia do terrorismo individual. Naqueles anos, era comum os estudantes implantarem bombas em canudos de sorvete para assassinar Machado, como conta o historiador Newton Briones em Acción Directa.

Da Torriente Brau - considerado o jornalista mais importante do seu tempo na ilha - contou nos seus famosos diários da prisão de Morrillo que costumava ler Leon Trótski nessa prisão: havia uma galera com o nome desse velho bolchevique. Após a sua morte e desaparecimento forçado durante a guerra civil em Espanha, Pablo tornou-se uma referência central desse marxismo "pela liberdade".

Trótski estava a par dos acontecimentos que derrubaram Machado em 1933. O que não é habitual. A sua principal preocupação era a ascensão de Hitler na Alemanha. Estava fora da URSS há cinco anos. Passou por Alma Ata, na Ásia Central. Vai para a Turquia. Acaba em França. Mas comunicou com Havana. Qual foi a forma de comunicação? Cartas. Em que condições isso acontecia? Quem recebia as cartas? Como é que elas chegavam a Havana? Não temos a certeza. Uma possibilidade é que os militantes dos Estados Unidos tenham conseguido fazer chegar as suas cartas. Pelo menos há uma, preservada, em Writings, que vem da edição de Harvard do material de Trótski.

Trótski escreveu aos seus camaradas do Partido Bolchevique Leninista fundado em agosto (que reunia várias centenas de militantes e se tornou mais importante do que os oficialistas pró-soviéticos). Pouco depois da derrota de Machado, em 1933, Trótski comunicou a Havana e defendeu que, em Cuba, os estudantes e a intelectualidade deveriam ser um elemento central no estabelecimento de um governo revolucionário.

Os documentos fundadores do PBL "Manifesto de 1933" - inspirado nas Teses da Teoria da Revolução Permanente de Trótski - constituem um documento marxista fundamental para a análise da revolução que derrubou Machado. Nesse documento há teses que desmentem todo tipo de calúnia contra os trotskistas da década de 1930.

Os "Guiteristas", socialistas que se identificavam com o pensamento de Joven Cuba e com os 100 dias de governo do ministério de Antonio Guiteras, eram desprezados pelos comunistas ortodoxos e comparados como fascistas. Nesse terceiro período da IC, todas as forças progressistas eram sociais-fascistas. Na Alemanha, esta interpretação impediu que, com a ascensão de Hitler, os comunistas realizassem uma frente unida para derrotar os fascistas e facilitou uma terrível derrota política.

Em vez disso, alguns trotskistas fundiram-se com a Joven Cuba, outros foram assassinados por assassinos contratados e Sandalio Junco, o mais importante dos sindicalistas de Havana, devido ao seu estatuto racial e à sua mobilidade ascendente, foi assassinado e vilipendiado, tal como aconteceu com Andrés Nin em Espanha. Junco é um caso isolado na história. Negro e padeiro. Viajou para a URSS, foi para o México e para outros países da América e tornou-se trotskista.

Junco era tão importante que até Rubén Martínez Villena, o poeta líder dos trabalhadores do açúcar e advogado do PC Cubano estalinista, se recusou a escrever contra ele, apesar de a própria IC lhe ter pedido. Mesmo a última carta de Villena a Junco começa com uma dedicatória de "querido amigo e camarada". A sua ruptura foi crucial. Mas Villena gostava dele: Junco estava na prisão com Mella e foi julgado pela mesma causa. Foi assassinado num dos momentos menos recordados pelos historiadores estalinistas de Cuba. Na noite do aniversário do assassinato de Antonio Guiteras, executado por um assassino estalinista. Aqueles que resistiram como membros do PBL, anos mais tarde, ajudaram a fundar o POR (T) ou continuaram como militantes independentes.

Tiveram de ver e resistir à capitulação histórica do PC Cubano estalinista a Fulgencio Batista, que foi protegido pela IC como carrasco da revolução contra Machado. Os comunistas cubanos pensavam que Batista devia ser apoiado. No meio do marasmo do PC Cubano, os trotskistas foram perseguidos e executados (Junco) por uma fusão de batistianos, comunistas e grauistas. A lama foi lançada sobre a sua pessoa, a sua história e a sua tradição. No entanto, mantiveram-se presentes em lugares como Oriente e Guantánamo e conseguiram influenciar a franja dos trabalhadores do açúcar durante 1933, organizar federações sindicais poderosas como a de Havana, projetar pela primeira vez o Encouraçado Potemkin, publicar um jornal e revistas teóricas. O caso mais emblemático foi em agosto de 1933. Enquanto os estalinistas se opunham à grande greve para derrubar Machado, os trotskistas foram um elemento importante para o seu surgimento.

Excursus: “Che” e "Fernandito"

Dois casos são emblemáticos. O de Ernesto Guevara e o de Fernando Martínez Heredia. “Che"Guevara pensava, segundo os seus diários, que Trótski era uma das figuras mais relevantes do século. De fato, os livros de Trótski encontravam-se entre os seus pertences na Bolívia antes de ser capturado. Nos seus cadernos sobre Praga, questionava a URSS. Mas Guevara achava que só um partido militar poderia conquistar o poder.

A perspetiva de Che não era a da centralidade do proletariado na estratégia revolucionária, mas sim a de que um destacamento de vanguarda poderia alcançar a vitória contra o Estado. Olhando a história "a contrapelo" na América Latina, os operários industriais lutaram de fato e não foram sujeitos passivos da luta anticapitalista, como pensavam os foquistas e a sua estratégia. Assim, a guerrilha de foco esbarrou tragicamente num muro: na Argentina com o Cordobazo, no Chile com os Cordones, no Brasil com as greves do ABC. O “Che” enganou-se neste ponto: o foco começou por ser um terrível fracasso na América Latina.

Obviamente, o “Che” não era trotskista, mas como ministro da Indústria leu Trotski, mandou chamar Ernest Mandel a Havana e encarregou-se de que os militantes do POR (T) fossem libertados e falassem contra a perseguição imposta por Fidel Castro. “Che” reuniu-se com os presos que, na altura, reivindicavam o pensamento de Trótski.

Fernando Martínez Heredia, "Fernandito", divulgava e lia Trótski, juntamente com Gramsci e outros autores como Mandel, na revista Pensamiento Crítico. Por isso sofreu o peso da censura e da detenção. Quando o PC Cubano e o M26 construiram um partido único, impõe-se a mais feroz das campanhas contra o trotskismo e contra qualquer ato de divergência ideológica: os anos do "quinquénio cinzento", o caso Padilla de Julio Cortázar e a proibição de The Beatles, a campanha suja contra "Alice no País das Maravilhas" e a proibição da homossexualidade, com a qual se impõem os controles mais ferozes. Foram os anos de desespero do genial escritor Reinaldo Arenas e da sua exasperante desilusão.

Apesar de Leonardo Padura ter quebrado a barreira com o seu “Homem que amava os cachorros”, Trótski já tinha sido objeto de homenagem na literatura com o romance “Três tristes tigres”, de Cabrera Infante. No entanto, como escritor antirrevolucionário, passou como o vento sem relevância. Leonardo Padura incitou a uma nova atualização do interesse por Trótski: alguns poucos que conseguiram ter acesso ao texto choraram nas suas páginas. A verdade é que não passou para o interesse das massas, exceto entre alguns estudantes ou intelectuais.

Como vim a saber, numa viagem a Cuba, realizou-se um curso sobre o século XX no Centro Marinello, porque o pessoal, depois de ler Padura, exigiu a Fernando Martínez uma explicação urgente sobre o que era o estalinismo. E este último gentilmente transmitiu. Apesar de tudo o que Trótski comunicou a Havana, as suas obras podem ser encontradas em inglês na biblioteca Martí, na sua história e tradições políticas, e ele faz parte da história radical da esquerda anticapitalista da ilha.


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[1Se refere à cultura desenvolvida na Cordilheira dos Andes.
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