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O amor, o perdão e a tecnologia nos levaram para outro planeta

Gabriel Brisi

O amor, o perdão e a tecnologia nos levaram para outro planeta

Gabriel Brisi

Esse álbum que remete às origens do rap nacional, tendo suas raízes na black music, traz uma perspectiva sobre o amor, o perdão e a tecnologia e quais as saídas para humanidade frente às crises capitalistas, a miséria e o racismo.

“Meu amigo Ugo
Meu amigo Pedro
Nós vamos embora
Outro planeta
Porque o amor
Porque o perdão
E a tecnologia irão nos levar”

No dia 28 de Julho, Fabrício, mais conhecido como FBC, lançou o seu quinto álbum solo. Com o nome de "O AMOR, O PERDÃO E A TECNOLOGIA IRÃO NOS LEVAR PRA OUTRO PLANETA". O álbum, que conta com a produção de Pedro Senna e Ugo Ludovico, além de participações de muito peso como Don L, Nill e Abbot, nos leva de volta para os bailes disco, que foram palco para a população negra poder expressar a cultura livremente com as músicas, as danças, o cabelo e as vestimentas. A criação dos bailes blacks refletem um momento que o movimento negro mundialmente ganhava força, com o surgimento dos Panteras Negras na década anterior nos Estados Unidos, mas também no Brasil.

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Nesse texto, vou me atentar a analisar o último álbum do FBC, que o artista chama de sua obra mais madura. Mas isso seria impossível, sem antes citar as obras anteriores desse, que está na cena há quase duas décadas. Ele veio das batalhas de Belo Horizonte, e foi um dos fundadores e mentores do DV Tribo, agrupação que lançou pro mundo nomes como o Djonga. São quatro álbuns solos anteriores e um com a Iza Sabino, todos muito exploratórios que profundamente contribuíram, não só para chegar a esse atual lançamento, mas para toda a Música Nacional.

Seu primeiro disco é "S.C.A" (Sexo, Cocaina e Assassinato), do inicio ao fim uma obra maravilhosa, seguido por "Padrim" e por "Best Duo" (em conjunto Iza Sabino). Todos os três obras primas do trap nacional, sensíveis, que escancaram as mais sentidas opressões que o sistema capitalista leva à população negra e periférica, como a precariedade da vida, o enfrentamento com a brutal violência policial e o aliciamento do tráfico que pressiona os jovens das favelas como forma de ascensão social.

Já no album "OUTRO ROLÊ", a influência do beatmaker VHOOR é notável, apesar de manter muito dos álbuns anteriores, com um tom ácido em um beat e um flow de drill afiados. Nesse momento, já era possível ouvir um pouco do que o artista vinha construindo e que essa troca levaria a produzir "BAILE". Esse disco resgata o Miami Bass, traz a raiz do Funk Carioca, tanto na sonoridade, na batida, mas também nas letras, em que os artistas referenciam os bailes dançantes, mas não deixam de pautar as opressões que desde aquela época já eram rotineiras para a juventude negra nas favelas, como as chacinas e massacres, por exemplo na faixa "Polícia Covarde".

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Então em 2023 chegamos à “O AMOR, O PERDÃO E A TECNOLOGIA IRÃO NOS LEVAR PRA OUTRO PLANETA”, no qual a black music mais uma vez é resgatada, desta vez com a disco music, bebendo de todas as gerações imagináveis da música eletrônica, dos anos 70 aos anos 2000. O artista faz um álbum que traz o que há de mais atual na nossa sociedade, de forma íntima, sensível e profunda. Ele aborda as questões psicológicas e sociais de modo de vida mais profundas na nossa geração, enquanto imagina como seria ter outros formatos de relações, em outro planeta ou a caminho de um novo planeta para a humanidade, mas em como neste momento seria importante manter o mais próximo o sentimento de viver na Terra, ser Humano, fazer música, arte.
Um álbum musicalmente pensado para ter um experiência auditiva que leve a uma ordem cronológica da disco music e da música eletrônica, com a progressão no número de instrumentos, sintetizadores, assim como as mudanças que o gênero foi apresentando ao longo das décadas. Um álbum que pode ser entendido a partir de uma ordem cronológica da vida de um único sujeito lírico ou de histórias diferentes de sujeitos líricos diferentes, distribuídos nas quinze faixas presentes no álbum, trazendo da forma mais sensível os altos e baixos emocionais e sua (ou suas) relações afetivas e amorosas.

Na primeira faixa, MADRUGADA MALDITA, é relatado um momento de crise entre um casal romântico, onde o sujeito lírico sente que está se dando mais ao relacionamento do que a outra parte. Já na faixa ESTANTE DE LIVROS, o este relata uma relação que acabou, a outra pessoa já vive outra relação, mas ele não deixa ir, finge estar bem e assiste pelos stories a estante de livro que antes eles dividiram, agora ser dividida com outra pessoa. Aqui já mostra um pouco da temática do álbum e essa relação tão atual com as redes sociais e os relacionamentos.

Na terceira faixa, QUÍMICO AMOR, o sujeito lírico está narrando sobre uma relação nova, que tem uma forte ligação química, tanto no sentido dele estar muito envolvido, muito apaixonado, quanto no sentido de ter um questionamento se a relação se baseia na droga que ele proporciona, levando a uma relação liquida, teoria defendida por Zygmunt Bauman nos anos 2000. O QUE TE FAZ IR PRA OUTRA PLANETA?, é a faixa que o próprio nome do álbum responde. Nestas duas faixas também ficam expressas a presença das relações, como a nova paixão e as amizades que te fazem pensar qual a potencialidade que a humanidade pode ter, como a de ir para outro planeta.

LIMITE COMUM, é um Skit, uma passagem intimista do sujeito lírico que ali faz planos consigo mesmo, sobre como continuar, em uma ótica pragmática, a vida. Em o DILEMA DAS REDES, FBC junto com o Nill, levam o sujeito lírico a mais uma de suas crises envolvendo as redes sociais e relacionamento, que nesse caso pode ser entendido como uma relação a distância, em que se quer estar perto da pessoa para conversar, mas a distância não permite e o que sobra são as redes sociais. Assim, mostra uma saturação com os conteúdos postados, no qual o dilema das redes se mantém por ser a única forma como ele se comunica com a paixão, mas após cansar do espelho o que resta é parar de seguir a pessoa (dar unfollow). Nessa faixa, em parceria com o Nill, o coral na parte final da música traz o canto “pare de falar com o espelho” repetidamente. Este remete à faixa “Wifi” do álbum “Regina”, em que o rapper trata das relações da nossa geração com as redes sociais, as telas trincadas dos celulares. De modo intimista o disco traz áudios do whatsapp para dialogar com o dia a dia de uma geração que foi inserida a essa nova forma, imediatista e superficial de se relacionar com a vida, e que “ quando o espelho deixar de ser normal, tenha sempre em mãos sua câmera frontal”. Linkado na faixa DILEMA DAS REDES com o espelho com qual o eu lírico deseja parar de falar, seja pela saudades da sua paixão, seja pelo cansaço do conteúdo produzido nas redes).

"Só venha cá", contraditoriamente é assim que começa a faixa ANTISSOCIAL, primeira participação de Abbot, o trapper de apenas 20 anos que tomou a cena em quatro participações nesse álbum. Um flow melódico, regado com autotune, que dá o toque perfeito para o sentimento da música. O sujeito lírico aqui apresenta sinais de ansiedade, muito presente na nossa geração, a falta de interações sociais - tão frequentes neste momento histórico - e potencializado pela pandemia -, a dor nos olhos, nas costas, devido às horas noturnas sem dormir, potencializado por um romance que fazem o sujeito se sentir machucado quando passa pelos stories da pessoa. Aqui pode, inclusive, nos lembrar dos stories da ESTANTE DE LIVROS (segunda faixa do álbum). Entre lembranças de uma relação amorosa em meio a crises, e a ansiedade que mantém os olhos focados na tela do celular: a frequente insônia, que leva o sujeito lírico a ser medicado com zolpidem. NÃO ME LIGUE NUNCA MAIS, mostra a perfeita harmonia entre FBC e Abbot, em uma música que trata de uma das questões mais sentidas pela nossa geração, a partir de como o capitalismo enxerga e trata a neurodivergência. Uma faixa que fala da relação de uma droga lícita, que para consumo deve ser receitada por um profissional, mostra mais uma vez essa relação do eu lírico com as drogas, assim como em QUÍMICO AMOR.

Em CHERRY, a relação com as drogas do eu lírico é outra, a partir de um uso recreativo, de substâncias que hoje ainda são ilícitas pela forma como o sistema capitalista lida com esse tema, assim como no Brasil usa dessa falsa guerra para massacrar e torturar a juventude negra por todo o país. Na música são citadas drogas como maconha, MD e LSD, tendo aí inclusive drogas que podem ser usadas para tratamentos medicinais. Em uma batida de derreter, em um momento mais feliz e íntimo, no qual uma paixão novamente faz sentido, aqui o sujeito lírico fala sobre o tanto de tempo que não vê a pessoa amada e como esse momento, dividindo drinks batizados com LSD presencialmente no seu quarto está sendo muito feliz.

A NOITE NO MEU QUARTO, mais uma vez em um momento que o sujeito lírico se encontra sozinho, em um beat mais lento, um flow melódico - nessa faixa que originalmente foi escrita para o próprio Abbot cantar - talvez na ressaca da noite anterior regada a psicoativos, em um momento mais nostálgico. Absolutamente só no seu quarto, lembrando sobre um dia de sol, ele divaga sobre o que talvez tenha sido uma crise na relação e ele preferiu estar certo do que continuar junto, e enquanto continua a seguir ela pelo quarto, aqui mais uma vez de volta as às redes sociais, se mostra mais uma noite a qual ele perde o sono.

Em ATMOSFERA, o sujeitolírico, assim como na quarta faixa do disco, fala um pouco sobre as suas conclusões de como a humanidade vai sobreviver a à irracionalidade do capitalismo, que levaria à destruição da Terra. E enquanto está em uma viagem para ver as estrelas no mato, ele pensa sobre a sua própria existência e o desencaixe na sociedade. No momento em que questiona a capacidade de amar da humanidade e a fé na ciência, busca em outro planeta uma forma diferente de se relacionar, uma outra forma de amar, um amor que transforma, segundo o próprio FBC.

Na décima segunda faixa, caminhando para as últimas músicas, AHAM relata um pouco de uma rotina corrida, um casal que não se vê muito, sendo a principal forma de comunicação online, e, assim, está tendo uma tensão pela falta de comunicação constante pelas redes sociais. Na faixa seguinte, uma balada romântica, em que o sujeito lírico está apaixonado por uma pessoa que ele não parece conhecer, sem ser de vista, sendo difícil até encontrar ela no insta para mandar DM, QUAL A CHANCE? reflete acerca dessa paixão platônica.
O NOSSO GRANDE PAPEL é outro skit de reflexão do sujeito lírico, retirado (assim como o primeiro skit) do filme Ad Astra de 2019. Tal como o álbum, o filme possui uma temática espacial. Então, chegamos à última faixa, DESCULPA se despede do público após uma experiência auditiva completa por todo o álbum. Fechando com chave de ouro, a música fala da relação com a culpa, as desculpas, os vacilos, em um diálogo. O sujeito lírico hora conta um pouco a conversa com amigos e como é essa relação em falar dos traumas e planos, hora retorna para outra conversa, em que ele está se desculpando enquanto também pede para não ser maltratado, mesmo entendendo o lado da outra pessoa.

Como dito algumas vezes, esse álbum é uma experiência auditiva impecável do início ao fim, mostrando uma obra madura que traz toda a bagagem tanto do FBC e seus anos de carreira, assim como a de todos os outros artistas presentes no álbum, os produtores e a equipe técnica. Uma obra que também apresenta maturidade e sensibilidade para tratar de elementos, infelizmente, tão presentes na nossa geração e que também apresenta essa busca por uma alternativa a esses males e é nesse ponto que escolhi para seguir dialogando com o álbum nesse texto.

O AMOR, O PERDÃO E A TECNOLOGIA:

Para o sujeitolírico, o amor e o perdão, junto a tecnologia seriam capazes de nos levar para outro planeta. Em um álbum permeado de crises românticas, paixões, idas e voltas deixa explícito o quanto a idealização do amor romântico, aos moldes burgueses, é uma ideia central na nossa geração. O álbum também demonstra que isso leva as pessoas a terem crises de ansiedade pelo não retorno imediato de uma mensagem, ou passar horas na frente da tela, ou ainda pessoalmente se fechar profundamente numa relação, sendo construir ela o objetivo central da vida (e esse então seria o amor que poderia transformar?). E para os comunistas não, essa proposta de amor burguês é incabível.

O ponto que queria dialogar com esse álbum é que não tem como falar de amor, modo de vida, sem lembrar das grandes revolucionárias russas, que após a revolução garantiram o direito ao aborto, o direito facilitado ao divorcio, onde debatiam como emancipar por completo as mulheres de todas as opressões, brutalidades e irracionalidade que o capitalismo coloca. Todos esses direitos enterrados pela traição stalinista. Não dá pra não falar também de Leon Trotski, o grande dirigente revolucionário que desde sempre entendeu que para ser um revolucionário tem que olhar o mundo com os olhos das mulheres. Isso está em contraponto à relação patriarcal proposta pelo amor romântico burguês, ou o pesar culposo do paternalismo. Mas, o amor que irá transformar, é o amor livre, aquele que sem as amarras do capitalismo a humanidade vai poder experimentar, de todas as formas de amor que quiser, expressando livremente sua sexualidade, gênero e tudo o que o capitalismo oprime.

Presente em todo o álbum, através dos sintetizadores, dos instrumentos, e nas letras das músicas, bem como nos clipes lançados. A tecnologia se faz presente no disco do FBC. Mas também pensar qual a tecnologia que seria capaz de levar a humanidade para outro planeta é essencial. Uma tecnologia que sirva à classe trabalhadora e não a grande bilionários, que possa nos levar a nossa classe a realmente pensar como ir a outro planeta e os porquês disso.

OUTRO PLANETA:

A estética espacial que álbum apresenta não é à toa, ou simplesmente por que os sintetizadores combinam com o ritmo, mas sim porque frente às crises românticas, às crises de ansiedade, a falta de sociabilização - questões colocadas para nossa geração pelo forma como o capitalismo acaba com a saúde mental e potencializado pela pandemia nos últimos anos - a resposta encontrada pelo sujeito lírico é viver em outro planeta. Para ele, a humanidade na Terra não tem mais futuro. Então, eu pergunto, só quando formos para outro planeta vamos viver um amor que transforme?

Não! Mas a conclusão do sujeito lírico não permeia o vácuo do espaço, mas sim uma ideia de fim dos tempos e desilusões muito grande frente às inúmeras crises capitalistas no nosso tempo, sendo mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo. Isso nos leva mais uma vez a um debate central, para enterrar de vez esse ceticismo que permeia a nossa geração e colocar, que sim a revolução socialista é possível. Para, inclusive, não precisarmos abandonar o planeta Terra e que, se um dia a humanidade for a outro planeta, não será por falta de recurso, fome ou miséria, mas sim por que vamos ter sanado a fome, os recursos serão geridos pelos trabalhadores e uma ida a outro planeta fará sentido por outros motivos.

Leia mais: A revolução é possível?


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Gabriel Brisi

Estudante de Ciências Sociais - Unicamp
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