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Debates América Latina | Ideologia, a invenção da Argentina e o futuro da humanidade

Este texto surgiu originalmente de uma atividade na matéria de História América Contemporânea na USP, e se propõe a refletir, à luz do processo formativo da América e especificamente da Argentina, o papel da ideologia de um "projeto de país", e a sua possibilidade de transformação hoje.

quinta-feira 25 de abril | Edição do dia

“Diante do fracasso dos sonhos panamericanistas, e com a probabilidade nada remote de fragmentações ainda maiores, os pensadores hispano-americanos de meados do século XIX fizeram grandes esforços para compreender a causa do fracasso dos primeiros governos independentes, e para planejar o futuro de forma mais realista. Ou seja, depois do caos sangrento que se seguiu às Guerras de Independência, os intelectuais do continente assumira a tarefa crucial de criar representações orientadoras, mitos de identidade nacional que pudessem reunificar países fraturados e, talvez, reduzir a tendência a uma fragmentação ainda maior.” - Nicolás Shumway. La invención de la Argentina: historia de una idea. Buenos Aires. Emece, 2002, p. 23-24.

Quando olhamos para o mapa das Américas, especialmente a Central e do Sul, nos deparamos com uma grande fragmentação de fronteiras que anteriormente eram parte da América Espanhola, e um Brasil, ex-colônia portuguesa, unificado. Uma américa espanhola unificada e coesa, entretanto, é algo que já passou pelo ideário de grandes líderes que lutaram pela independência dessas então colônias de Castella. Muitos deles tendo sido, inclusive, martirizados posteriormente como forma de conter crises.

A crise do sistema colonial espanhol ao fim do século XVIII e início do XIX permitiu com que as assim chamadas elites criollas (uma elite ascendente nativa das colônias) gozassem de intenções para se independizar dos colonizadores. Neste contexto social, surgiram figuras como Cecil del Valle e Simón Bolívar, que tinham um sonho de uma américa unida sob os ideários de liberdade. Entretanto, este sonho, como o excerto de Nicolás Shumway nos adianta, fracassou.
Essas “elites criollas”, das quais inclusive tais figuras eram parte, surgiram a partir do próprio sistema e da economia colonial, ganhando alguns traços de autonomia frente à crise espanhola, e almejando colocar a sua atividade econômica à frente no então momento de transformação do mercantilismo ao capitalismo internacionalmente. Essa diferenciação levou, evidentemente, a uma fragmentação de interesses, levando a diferentes organizações econômicas, políticas e inclusive militares, frustrando esses sonhadores por uma América unida.

A Gran-Colômbia, com a qual sonhava Bolívar, se viu dividida em três com os movimentos separatistas no Equador e na Venezuela. Del Valle também se viu assim com a imensa fragmentação na América Central. As condições objetivas das disputas políticas e econômicas na América Espanhola não acompanharam essa idealização dos mártires.

Na parte Sul do Cone Sul não foi diferente, mas também não exatamente igual. A região que hoje compreende o norte da Argentina, à época Províncias do Prata, também sofria de tal fragmentação. A região se desenvolveu majoritariamente por sua atividade econômica em torno do Rio de la Plata, que escoava do interior do continente para o Oceano Atlântico. A defesa das tropas argentinas (apoiadas pela França) contra a invasão inglesa, em 1806, deu aos chamados “caudilhos” da região uma reforçada como liderança a fim de se colocarem como “cabeças” da resistência e, posteriormente, do país.

As batalhas pela independência das províncias do Prata ganharam um fôlego após a proclamação da independência e a reação espanhola em 1814, até conseguir sua independência de fato em relação à metrópole em 1816. Àquela altura, após a independência, a unidade das Províncias do Prata se organizavam em torno de uma Constituição que permitia e inclusive incentivava uma autonomia frente ao poder central, que em boa parte inexistia. A fragmentação política e econômica também se expressava aqui, com os diferentes caudilhos provinciais.

Existiam três principais caudilhos, que tinham seus interesses próprios e inclusive seus próprios “projetos de país”, que atuavam em sintonia às suas atividades econômicas. Facundo Quiroga, da província noroeste de La Rioja, estava ligado à exportação de minérios de San Juan; López era uma de uma província central, Santa Fé; e Rosas da capital bonaerense, ambos ligados à pecuária. Esses eram os nomes dos que controlavam a (ainda não) Argentina naquele momento, especialmente Rosas. Esse “controle” era marcado, entretanto, pela fragmentação, que levava à diversos conflitos armados no interior entre caudilhos, especialmente a partir de 1826. Essa era a marca das disputas capitalistas que se aceleravam no Prata.

Em meio a isso, surge uma outra força política, cujo líder até o momento estava exilado no Chile. Essa força era a dos unitários. Eles surgem fortemente vinculados a um militarismo (Exército), e contra Rosas, que àquela altura já colocava em marcha um expansionismo bonaerense, principalmente após a Confederação Rosista de 1829. A cabeça desta nova força era Sarmiento.
“Toda sociedade precisa de um projeto ideológico e de educação que lhe corresponda”. Esta frase do filósofo italiano Antonio Gramsci pode frustrar Del Valle e Bolívar, mas nos ajuda a compreender Sarmiento e sua “invenção da Argentina”, como traz o título do excerto.

O analista Ricardo Piglia define que Sarmiento “funda literariamente um país”. Isso se dá assim pois, juntamente às expedições e conflitos militares entre unitários e caudilhos, especialmente após a queda de Rosas em 1852, Sarmiento se coloca como um dos maiores ideólogos para a unificação da Argentina, principalmente através de seu livro “Facundo: civilização e barbárie”.

Apesar do título do livro mencionar diretamente Facundo, a discussão se dá com Rosas, seu principal inimigo. O desenvolvimento argumentativo de Sarmiento, comparado por diversos analistas com “Os Sertões” de Euclides da Cunha, se dá tentando mostrar como na nação marcada por “um povo primitivo e pré-histórico e um servil que acabou de sair da idade média”, caracterizando a “barbárie” dos indígenas e caudilhos, poderia se tornar “civilizada” a partir de uma unificação nacional que destruísse estes elementos “bárbaros”, combinado à idealização das nações anglo-saxônicas, nas quais Sarmiento se espelhava e buscava copiar.

A queda de Rosas permitiu a ascensão e “tomada do poder” por parte dos unitários, concretizando em grande parte o projeto de Sarmiento. Formou-se um Estado Nacional que reorganizou e modernizou a economia pecuária, criou instituições centralizadas com o monopólio da repressão nas mãos do Estado. Isso se deu em base à afirmação da burguesia urbana, especialmente bonaerense, enquanto classe detentora do Estado, combinado à expedição ao Sul (Patagônia) para consolidar o Estado Nacional dizimando os indígenas, vistos como “bárbaros”.

Essa “tarefa crucial de criar representações orientadoras, mitos de identidade nacional, que pudessem reunificar países fraturados e, talvez, reduzir a tendência a uma fragmentação ainda maior”, foi, em importante medida, cumprida por Sarmiento.

As fragmentações e disputas políticas, evidentemente, se seguiram nas décadas posteriores. A fundação de uma ideologia e de uma literatura para justificar a fundação do Estado Nacional, como fez Sarmiento, não impede as contradições da sociedade argentina e de toda a América até hoje.

Para citar um exemplo, enquanto a historiografia anti-peronista no século XX reivindicava Sarmiento, o peronismo e o próprio Perón, como parte das disputas políticas que tem também suas dimensões ideológicas, começaram a reivindicar Facundo e a figura dos caudilhos como “líderes populares”.

A fragmentação que vemos hoje, em pleno século XXI provocada pelo neoliberalismo, é uma fragmentação diferente, que fragmenta algo que naquele momento na América ainda estava em seus primeiros embriões, mas que surge como sujeito fruto dessas contradições do capitalismo ascendente: a classe trabalhadora. Como sujeitos políticos, aqui em um diálogo específico com os estudantes e a intelectualidade, cabe a nós pensar os projetos de sociedade ideologicamente que correspondem à sociedade que queremos e que nos dispomos a construir. Aí reside nosso futuro. A invenção de uma nova sociedade, nos baseando nas contradições existentes e experiências do passado.




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