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4 anos do Massacre em Paraisópolis | Carta às mães dos nove que perdemos

Em 1º de dezembro de 2019, em uma viela de Paraisópolis, 09 jovens, entre 14 e 22 anos, morreram asfixiados. As primeiras notícias falavam em pisoteamento, em resistência à prisão, em confronto policial com bandidos. Há sempre que se duvidar da forma como noticiam a morte de um trabalhador. Aos olhos da polícia, da grande imprensa, da burguesia, a mera existência de um jovem negro já é uma audácia extrema.

Patricia GalvãoDiretora do Sintusp e coordenadora da Secretaria de Mulheres. Pão e Rosas Brasil

quinta-feira 30 de novembro de 2023 | Edição do dia

O filho ou filha de uma mãe trabalhadora, criado pela avó, pela irmã, pela tia, é sempre um filho da nossa classe. Carrega nas costas o futuro da classe que tudo produz. Quando esse futuro é roubado, pelas mãos do estado, da polícia ou dos patrões, cabe a nós trabalhadoras e trabalhadores reivindicar de volta o que é nosso.

Uma mãe trabalhadora é aquela que tem suas mãos marcadas pela labuta diária. Na correria do dia-a-dia, trabalha sem parar para conseguir o sustento da família. A burguesia lhe rouba a força vital, ao explorar seu trabalho. Mas não para por aí. Rouba-lhe o tempo que poderia estar com seu filho, que nasceu das suas entranhas. A mãe trabalhadora se esforça para dar comida, roupa lavada, acompanhar os estudos no pouco tempo que tem de sobra. Todo o esforço de uma mãe trabalhadora é para proteger seu filho. Mas, ela não pode protegê-lo para sempre. Daí em diante, quando ele aprende a falar, a correr, quando ele próprio insiste em andar por conta própria, é sempre um aperto no coração. Que horas será que ele volta?

A vida fora das asas da mãe o ensina que um jovem da periferia não é igual ao rico. Não pode sair por aí como se sua vida lhe pertencesse. Tem que avisar aonde vai, carregar os documentos, tomar cuidado com “os homem”, abaixar a cabeça numa blitz já pedindo desculpas, chamar de senhor a autoridade que o trata como bandido. Mas, a juventude quer viver. Ela quer dançar como se o corpo não tivesse amarras, quer sorrir de orelha a orelha vendo graça na vida. Quer ver seu time ganhar o campeonato, seu filhinho crescer. Quer poder retribuir o amor que ganhou cuidando de quem cuidou dele. Quer provar de tudo, quer sentir tudo. Há uma potência guardada em cada jovem. Uma vida a ser vivida.

Se tudo correr bem, o jovem de hoje vai tomar algumas bordoadas da vida. Vai trabalhar muito, ganhar pouco e talvez tenha algum direito. A sociedade de hoje, os patrões, o governo, eles dão um jeito de pegar toda essa potência guardada em cada jovem e transformar em lucro. Mas, com sorte, o menino que começou como empacotador, que virou entregador, que passou a vendedor, que estudou a noite enquanto trampava durante o dia, pode virar um professor, um doutor, mas sempre um trabalhador. Com sorte, mesmo com os corres do dia-a-dia, poderá viver, sentir a brisa do mar, ver sua filha correr, seus amigos casarem, a vida acontecer. E sua mãe poderá, quem sabe, ser avó, poderá ganhar uma TV nova comprada pelo primeiro salário do filho, poderá ser cuidada por ele e ser chamada de minha velhinha, minha neguinha. Com sorte, mesmo com muito trabalho, muito suor arrancado, muitas dores no corpo, poderá, por um segundo, deixar de se preocupar um pouquinho. Mas, a sorte não é pra todo mundo.

Essas mães que hoje choram, de muitas tantas que existem, são de Paraisópolis, de Manguinhos, da Rocinha. A mãe do Denys, do Mateus, do Bruno. A elas, não permitiram essa tal sorte. O estado não permitiu, a polícia não deixou. No dia 01º de dezembro de 2019. mataram seus filhos. Roubaram o nosso futuro. A classe trabalhadora ficou menor.

Quem eram os 09? Um era corintiano, o Dennys Guilherme, filho da Adriana. O Bruno cuidava dos pais e amava seu sobrinho Cauã. O Eduardo, filho da dona Ivanira, já era pai do Mateus. O filho da dona Maria José, que nasceu na Bahia, também se chamava Mateus e era flamenguista. A Luara perdeu os pais muito cedo e foi criada pela avó, a dona Elsa. O Denys Henrique, filho da Cris, tinha só 16 anos e dançava funk muito bem. Criado pela dona Alvina, que era sua avó, o Marcos Paulo também tinha só 16 anos. Gabriel era o único filho da dona Elizabeth e trabalhava com o pai. Gustavo, o risadinha, era filho da Raquel e tinha apenas 14 anos.

Os nove que perdemos, tinham história e tinham um futuro pela frente. Poderiam ter sido jogadores de futebol, atriz, escritor, funkeiro, artista. Ou poderiam ser um trabalhador, que sua, que chora, que ri. Que aos sábados liga o som na laje e chama os amigos para um churrasco. Que empina pipa no telhado. Que de moto, carrega nas costas a comida dos outros. Poderiam ser tanta coisa, viver tanta vida, sentir tanto amor. Poderiam fazer a revolução. Mas não podem mais. Mataram nove, meninos ainda, filhos de alguém, amigos, irmãos, tios de alguém. Quando não permitiram que respirassem, sufocaram nove dos nossos, os filhos da nossa classe.

O Estado que controla os nossos corpos, que disciplina o nosso trabalho, que limita nossa liberdade, através do seu braço armado, decide quem vive e quem morre. A hora errada, o lugar errado. Carregando um guarda chuva, indo para a escola, indo para um baile. Num carro com a família ou dentro de casa protegido. Quando estão decididos a nós roubar, encontram nossos filhos em qualquer lugar.

Para que a nossa classe possa existir e triunfar precisamos lutar pelo direito dos nossos jovens viverem. Pelo direito ao futuro. Mulheres trabalhadoras, mães ou não, precisam se unir ao grito por justiça para os nove. São os filhos da nossa classe, são nossos filhos também.

Não foram os primeiros a serem arrancados da vida. O jovem trabalhador, se não morre pedalando numa bike, morre pelas mãos do Estado e sua polícia assassina. Do túmulo, os milhares dos nossos, os nove, nos clamam que ergamos nosso punho, que nos rebelemos contra a miséria, que lutemos pelo futuro. E ele pertence à juventude, aos nossos filhos.

A luta por justiça das mães dos nove que perdemos é a luta fundamental da nossa classe.

São os nossos filhos e eles precisam viver.




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