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A natureza, a humanidade e o todo: esboço inicial de crítica à algumas falsificações burguesas sobre a crise ambiental

Leandro Lanfredi

Rosa Linh

A natureza, a humanidade e o todo: esboço inicial de crítica à algumas falsificações burguesas sobre a crise ambiental

Leandro Lanfredi

Rosa Linh

Sob o capitalismo, até mesmo uma guerra do outro lado do mudo conecta-se com crises ambientais aqui

O horror inaudito que o estado sionista de Israel inflinge ao povo palestino desperta ódio e vontade de lutar, mas também, é bem usado pela mídia burguesa (que, claro, faz cobertura pró-Israel) para encobrir horrores de outro tipo acontecendo em nossas terras, não só violências armadas do Estado, como vemos na Maré no Rio de Janeiro, mas, entre outros, os ambientais adoecendo e matando indígenas no Amazonas em uma seca inaudita. E estes temas tão aparentemente díspares têm, na verdade, uma conexão profunda.

As guerras recentes, como a Guerra na Ucrânia e agora a guerra em Israel, têm como resultado direto uma alteração no fluxo de mercadorias como decorrência da mudança na geopolítica, e uma das mercadorias mais afetadas nos dois casos foram as matérias primas utilizadas para obtenção de energia. A diminuição no fluxo de gás e petróleo russo para a Europa teve como consequência investimentos em energia eólica, testes de produção de hidrogênio combustível em maior escala, mas também um aumento no uso de carvão na Europa; na produção de petróleo na nossa vizinha Guiana; na produção de gás natural através do destrutivo método de fracking nos EUA. Ou seja, como resposta a contradições estatais geradas pelo capitalismo cria-se maior dano ambiental e poluição com gases geradores de efeito estufa do que antes da guerra. E agora, com a guerra de Israel contra o povo palestino, há novo aumento no preço do petróleo reforçando estas mesmas tendências.

Crises geradas pelo capitalismo ou são respondidas pelos trabalhadores e pelas massas ou sofrem respostas capitalistas que acentuam as contradições em todos os âmbitos, não só econômicos, sociais, geopolíticos, mas também naturais. O acúmulo gradual de contradições ganha um empurrão a mais para levar os fenômenos de seu patamar quantitativo ao qualitativo.

Os recordes de temperatura global vividos nos últimos meses são resultado de acúmulos de gases de efeito estufa desde o início da industrialização, 58% das emissões geradas pelos seres humanos ocorreram de 1850 a 1989, e os outros 42% desde então, ou seja há uma aceleração recente, e isso soma-se a fenômenos naturais cíclicos, mas também pelos “empurrões” recentes que foram dados pela forma capitalista de responder a crises geopolíticas engendradas pelo mesmíssimo sistema. Essa relação que precisa ser muito mais esmiuçada é uma reflexão anátema para um comentarista numa rede de TV.

A ideologia burguesa consiste, entre outras coisas, em criar falsa consciência para os trabalhadores e para ela mesma. Não é possível enfrentar os problemas de forma verdadeira, buscando sua raiz (radicalmente), sua origem, evolução e a totalidade. Fazer esses movimentos levaria esse pensamento a negar-se às suas condições de existência, levaria a negar o capitalismo. Para realizar tais operações de falsa consciência, esse “pensar” vale-se de diferentes operações: negar a existência de um problema, quando este é inegável busca-se o apontamento de falsas causas, quando aponta-se uma causa parcial desconecta-se ela de outras, entre outros expedientes. E no terreno da crise ambiental global que vivemos esse expediente burguês precisa ser demolido para erguer uma crítica dos trabalhadores à essa destruição e ao sistema que a engendra.

Reconectando o que desconectam

Diante do atual estágio de desenvolvimento das forças produtivas humanas, é irreal conceber a natureza como um ente isolado do modo de produção capitalista. O cenário contemporâneo da extensão das cadeias de valor mundialmente faz com que matérias primas de cada canto do globo sejam necessárias para produção de mercadorias, que por sua vez são insumos a outras em diversas partes do globo. Recentemente, temos visto entraves e disputas que criam novos obstáculos ao livre trânsito de capitais e mercadorias, vide as disputas de EUA e China sobre supercondutores, chips, e terras raras, que não se viam no auge da globalização triunfante, que no entanto não negam conquistas burguesas da globalização, sobretudo no que tange a expansão das áreas da natureza e da humanidade subsumidas à lógica do capital. A sociedade humana está inscrita nas tendências de crises, guerras e revoluções da época imperialista, que por sua vez compele a natureza em uma crise particular e dialeticamente relacionada. A esse fenômeno, podemos denominar “crise ambiental”, algo que vai além inclusive apenas do aquecimento global, mas procura dar conta tanto das relações de produção capitalista em crise e dos seus impactos ambientais integrais.

Exemplo disso, temos na própria capacidade de espalhamento de um vírus como a COVID-19 em questão de semanas para todo o globo, na esteira da destruição dos sistemas públicos de saúde com o neoliberalismo e, posteriormente, gerando todo um salto de qualidade nas redes de gargalos produtivos que impactam negativamente nos graus de acumulação capitalista. Esse vírus só surgiu pelo desequilíbrio promovido pelo avanço do agronegócio predatório, devastando a fauna e flora, incubando vírus em estabelecimentos de criação de animais insalubres e extensivos, etc. Há sim toda uma cadeia de fenômenos que promovem a formação de cepas, a questão da mutabilidade, seleção natural e etc., da qual a epidemiologia e outras ciências tratam em particular, que existem e existiram independentemente dos seres humanos. Ao mesmo tempo, as condições específicas de surgimento, difusão e letalidade desse vírus não podem ser explicadas sem uma dimensão sociológica e materialista do modo de produção capitalista.

Nesse ponto, cabe uma pequena digressão para irmos mais adiante. Afinal, que é “natureza”? Esse questionamento torna-se importante na medida em que a ideologia burguesa tende a tratá-la de forma a-histórica, estanque e exótica. Ora, a natureza também possui história, da qual, inclusive, os seres humanos são produto, um complexo devir de fluxos de recombinação de matéria e energia que moldam o universo e a existência como a conhecemos. Não é, aliás, incomum vir à mente para boa parte dos habitantes das grandes metrópoles contemporâneas, ao pensar na natureza, uma floresta tropical distante - e aqui a separação burguesa entre campo e cidade se coloca em evidência.

O filósofo marxista italiano Antonio Labriola indaga que a própria natureza é uma totalidade, e que o ser humano vive e é parte também da natureza, na medida em que precisa constantemente modificá-la. A dialética de “totalidade” se coloca na medida em que a realidade é composta por diversas partes distintas e particulares, que muitas vezes possuem leis próprias de funcionamento, mas que são inexoravelmente parte de um todo. Não se trata de uma soma aritmética das partes, mas o acúmulo de quantidade dessas partes, que se movimentam no tempo, se transformando em uma síntese superior e mais abrangente. Grosso modo pode-se dizer que as explicações da mecânica quântica são válidas para objetos microscópicos, mas não muito para as galáxias e planetas, onde a relatividade e outras leis dominam. Isso significa que são realidade mutuamente excludentes? Não, são níveis distintos de análise de um mesmo todo, que sem essas partes diferentes não funcionam de forma alguma. Parte do desafio da física contemporânea é conseguir conectar em um só todo as leis das forças gravitacionais, eletromagnéticas, atômica fraca e atômica forte.

Podemos dizer algo análogo à relação ser humano e natureza. Alguns conceitos aqui podem nos ajudar nesse caminho. Para Marx, a fonte da riqueza material, ao contrário do que os economistas clássicos liberais pensavam, não vem apenas do trabalho, mas sim da própria natureza. O trabalho, em seu sentido abstrato e geral, inclusive, nada mais é do que um substrato da história natural, assim como a própria espécie humana. O manejo de ferramentas se realiza ao colocar em movimento físico a força dos braços, movidas pela transmissão de sinais nervosos, sinapses bioquímicas complexas colocadas em ação. Como sintetiza Karl Marx n’O Capital, o trabalho trata de mediar o metabolismo entre a sociedade humana e a natureza, ou seja, é a maneira pela qual o ser humano atua conscientemente para modificar a natureza, sendo ele mesmo produto dela, de forma a regular a produção e reprodução da vida social. Com o advento do sistema capitalista, produz-se o que foi chamado por “ruptura metabólica”, que consiste na deturpação da coevolução humana com a natureza mediante a irracionalidade do lucro e do acúmulo desenfreado de capital, deteriorando qualitativamente tanto a homeostase ambiental quanto às condições de vida humana, sobretudo das classes e setores mais oprimidos.

O “terreno natural”, como diria Labriola, é substrato do “terreno artificial”, moldado pelo trabalho humano. Portanto, a forma pela qual as sociedades humanas se relacionam com a natureza - e não são sociedade em abstrato, mas em determinados momentos de desenvolvimento históricos, que no caso estão inseridas em uma divisão de classe materialmente sustentada na exploração do trabalho assalariado - pode gerar um acúmulo de quantidade capaz de causar rupturas na coevolução entre a espécie humana e a natureza. Um desequilíbrio gerado pela exploração do trabalho que aliena o “terreno artificial” e, em consequência, o próprio “terreno natural” - e vice versa.

Outro filósofo marxista italiano, Sebastiano Timpanaro, em “Sobre o materialismo”, irá desenvolver como o giro anti-positivista nas ciências sociais do início século XX promoveu, em contrapartida, uma virada idealista e anti-materialista, marcando o chamado “marxismo ocidental”. Nesse sentido, se é bem verdade que as tentativas mecânicas de estabelecer um nexo causal direto entre natureza e sociedade, da evolução das espécies à uma certa “evolução das sociedades humanas”, caiam recorrentemente em concepções racistas e reacionárias, isso não exclui em absoluto que os seres humanos são parte da natureza, que as sociedades humanas estão inseridas nela, dependem dela e estão sujeitas a suas leis. A questão é desvelar em que medida essa relação se dá, desvelar as mediações e suas interações, e o método capaz de apreender essa questão é a dialética materialista. Ou seja, se é verdade que a espécie humana não possui uma “natureza” estanque e imóvel, que não existem predileções naturais para tornar raças ou grupos sociais superiores a outros, e que essas na verdade nada mais são do que as ideias da classe dominante para sustentar sua dominação de classe, também não é verdade que os seres humanos superaram em absoluto a evolução das espécies, que a natureza é algo distante e alheio à cultura, trabalho e vida social.

Na sanha de se delimitar do positivismo cientificista e reacionário, na esteira do individualismo neoliberal, as tendências pós-modernas declararam não apenas o fim da história, mas também a morte completa da influência da natureza sob o ser humano. Sob uma roupagem neokantiana repaginada, tentando dialogar com as demandas das diversas opressões de raça, gênero, nacionalidade etc., o conhecimento da realidade objetiva se torna impossível, sujeito apenas a uma apreciação individual: a ciência não consegue apreender o objeto, o que existe na realidade são narrativas e a guerra permanente de suas apropriações e contra-apropriações. No âmbito do movimento ambiental, encontramos o que John Bellamy Foster denominou “crise do socioambientalismo”, na qual se crucificou o marxismo como produtivista e prometeico, confundindo-o com o stalinismo, dando passagem a uma visão romântica e espiritualista da natureza, em outras palavras, metafísica. Afinal, como essas variantes pós-modernas poderiam responder a questões candentes como a relação entre a brutal seca na Amazônia, o aquecimento global e a crise capitalista? Essas variantes do pensamento social estão intimamente interligadas com a ideologia burguesa, com reflexos importantes na produção intelectual, tratando de obliterar a condição de totalidade entre ser humano e natureza.

Do concreto ao abstrato, do abstrato ao concreto

O aquecimento global nos fornece uma prova candente dessa forma de pensar. Por excelência, tomando o conceito do geoquímico soviético Vladimir Vernadsky, é uma questão que afeta o conjunto da biosfera, isto é, as interações entre fatores bióticos (componentes vivos) e os abióticos (componentes não vivos) entre todos os ecossistemas terrestres. Não há sequer uma espécie vegetal, animal, ou qualquer que seja, e mesmo parte da matéria e da energia que não constituem seres vivos, que não estejam pressionadas e condicionadas pelas mudanças nas condições do meio causadas pelo aquecimento global. Isso não é difícil de se averiguar, como a elevação da temperatura e do nível dos mares e oceanos já interfere de forma relevante na reprodução de diversas espécies, colocando-as em risco de extinção, revelando uma interferência clara na seleção natural. Mas um exemplo mais chocante e direto é o que ocorre atualmente na Amazônia.

São imagens aterradoras de centenas de botos mortos em rios quase que completamente secos, uma nuvem de fumaça encarniçada que paira no ar a dias na cidade de Manaus. Há uma estiagem severa, sobretudo na Amazônia Ocidental, recolocando o debate sobre a emergência ambiental que vivemos no sistema capitalista. Não é possível ver essa catástrofe sem levar em conta a severa elevação da temperatura terrestre, com direito ao mês de junho ter sido considerado o mais quente de toda a história recente; segundo o IPCC, esse aumento já ultrapassou na média da década de 2011-2020 os 1,1ºC em relação a 1850 (marcação de período antes da industrialização). O ano atual deve beirar 1.8ºC acima da média de 1850, configurando-se como o ano mais quente em mais de 100 mil anos. A concentração de CO2 é a mais alta em 2 milhões de anos, e gases de efeito estufa menos conhecidos, como o metano e óxido nitroso, estão nos níveis mais altos em 800 mil anos. Esses números tão categóricos fornecidos pelo painel do IPCC falam em alto e bom som como o mundo em que vivemos, subsumido aos interesses de uma pequena minoria parasitária de capitalistas está transformando a terra de forma sem precedentes. Essas violentas alterações vêm acompanhadas da degradação dos ciclos biogeoquímicos, tais como o da água, seu impacto nos “rios voadores” e os regimes de chuva, as ondas de calor extremo no Paraguai, no Brasil, secas em países vizinhos que afetam os rios aqui, etc. Conforme o aquecimento global se assevera, mais frequentes e fortes se tornam as catástrofes ambientais.

Curiosamente, há uma operação midiática bastante interessada, que também acaba se assentando em argumentos e policies de distintos governos imperialistas e referendados em certa medida por organismos internacionais como a ONU, além do próprio governo de frente ampla Lula-Alckmin, em ordem de se distanciar do negacionismo climático arcaico do bolsonarismo e do trumpismo mais em geral, de que sim existe um problema e ele é grave, trata-se de mitigar e procurar soluções multilaterais etc., mas o problema não é”o todo”, não é, eles dizem, uma série de intervenções capitalistas uma somada a outra, são causas individuais, é a queimada daqui, a gasolina de lá, e nunca pode ser, de forma alguma, o sistema capitalista. Claro que, no lugar, desta crítica radical e totalizante, criam-se lendas das mais toscas, como se a culpa do desastre fosse dos indivíduos isolados e seus padrões de consumo e não do sistema, como se o próprio consumo e vontades também não fossem afetados, ou mesmos criados, pela produção e pela lógica de valorização do valor.

Em artigo publicado recentemente pela BBC Brasil, parte-se de considerar corretamente que de fato é orgânico (ou cíclico) a existência de épocas de estiagem e de chuva na região, mas está acontecendo algo anormal, remarcado por dois aspectos: o El Ñino e o aquecimento atípico das águas do Oceano Atlântico. Daí que temos um recorde histórico de seca dos rios amazônicos, os piores níveis em mais de 100 anos.

Em entrevista coletiva realizada na sexta-feira (13/10), a ministra do Meio Ambiente e Mudança Climática, Marina Silva, disse o seguinte sobre a fumaça que atinge Manaus: "Há um cruzamento de três fatores. O primeiro deles é a grande estiagem provocada pelo El Niño, que é agravada pela mudança do clima; matéria orgânica em grande quantidade ressecada; e ateamento de fogo em propriedades particulares e dentro de áreas públicas de forma criminosa". De fato, ela está correta. Mas o que tem gerado um El Niño atípico? O que gera mais matéria ressecada e mais ainda o que (ou quem) gera o fogo em propriedades particulares legais ou mesmo nas griladas? A questão aqui é, no entanto, como pontua Labriola, é preciso fazer com que a filosofia anime a ciência: não basta constatar as evidências, é preciso colocar a situação de forma categórica com base nos dados e opor a ela uma estratégia consequente, nesse caso anticapitalista e revolucionária.

É inconcebível e pura demagogia burguesa o discurso, na medida em que é necessário combater o aquecimento global, que abstrai esse fato da realidade concreta e material do sistema capitalista de produção, sua devastação imanente do meio ambiente e a irreconciliável necessidade de sua destruição. O governo de frente ampla Lula-Alckmin trata de jogar água no moinho desta forma de pensar anti-dialética, procurando convencer os jovens e trabalhadores, cada vez mais compelidos concretamente pela devastação ambiental, de que fazer da Amazônia uma moeda de troca para barganhar uma melhor localização nas disputas geopolíticas com o imperialismo e a China, que conciliar interesses com a bancada ruralista do centrão, o agronegócio, e todo um arco de setores econômicos poluidores e reacionários é necessário para “reconstruir o Brasil”.

Tratar o desmatamento amazônico em separado do desmatamento de outros biomas é uma operação ainda mais descarada de isolar uma parte do problema da outra. Enquanto Lula e Marina vendem que “o Brasil voltou” com suposta preservação amazônica, eis que os dados não contam a mesma história. A queda do desmatamento faz o país retroceder aos níveis de destruição de 2020 (pleno ano do “passar a boiada” de Bolsonaro e Salles), e ainda faz do ano de 2023 o quarto pior ano em desmatamento amazônico nos últimos dez anos. Tivemos uma redução do ritmo de destruição ali, mas não em absoluto, e no vizinho Cerrado (que inclusive tem rios que desaguam na bacia amazônica, como o Araguaia, Tocantins, Tapajós) há um recorde de desmatamento, com 2023 sendo o pior ano desde 2018.
É o El Niño [1] somente o que causa a seca amazônica que castiga mais severamente os mais pobres dos amazônidas, os ribeirinhos, os povos indígenas, os trabalhadores, ou não há clara conexão com o avanço do agronegócio e seu desmatamento do cerrado brasileiro afetando os rios já mencionados? Ou, indo mais longe, o avanço da soja em nossa vizinha Bolívia e seu desmatamento não está afetando os afluentes do Mamoré? O desmatamento em Rondônia afetando o Mamoré e o Madeira não tem nenhuma conexão com a crise de escassez hídrica decretada pela Agência Nacional das Águas no que tange ao Rio Madeira? E depois a crise hídrica do Madeira, que deságua no Amazonas antes de Manaus não se conecta ao drama manauara? Ou ainda todo o gigantesco consumo de água para produção de lítio nos Andes (sob protesto de povos indígenas e trabalhadores, como vimos em Jujuy na Argentina) não drena águas que afetam o clima em nosso continente? Nenhuma destas conexões evidentes é feita por Marina ou por Trigueira na Globo.

Essas conexões evidentes que não são feitas ocorrem ao mesmo tempo que se falsifica o papel do Brasil na crise ambiental mundial. Enquanto o governo Lula, a mídia, e boa parte do empresariado brasileiro vende o país como o “salvador” do planeta, ignora que 10% das emissões do mundo são feitas na América Latina, com grande concentração no país. É uma escala de emissão que nos anos recentes é maior que toda Europa e é da ordem de grandeza da Ásia Oriental (China incluída) com 12%. Nenhum comentarista de TV em sã consciência exclui a China de discussão ambiental mundial, mas exclui o país, e quando inclui, fala só do desmatamento amazônico, não fala de pastagens degradadas que também emitem muitos gases de efeito estufa, não falam do metano do gigantesco rebanho bovino (enquanto há brasileiros com fome). Essa fratura, essa omissão, é política e economicamente interessada, critica-se o grileiro, para elogiar o agronegócio. Ou ainda se faz uma discussão sobre os combustíveis fósseis focados só no petróleo ou ainda em parcela menor do problema: o carro. Ignora-se as emissões na própria produção do combustível, critica-se o petróleo e elogia-se o gás natural (que polui um pouco menos), se conduz a discussão ao indivíduo. Sabe-se por diversas estatísticas que no tange ao transporte o maior componente no Brasil é o diesel dos caminhões e se isola a discussão da necessidade de outros modais de transporte. Critica-se o carro individual a combustão pensando um carro individual elétrico, e não colocando o acento onde faria maior diferença: transporte público. Assim, na fragmentação politicamente interessada é impossível compreender o todo, muito menos sua evolução para assim traçar um caminho para sua crítica radical.

A “verdade” é algo relativo, está em constante mudança, no entanto com a ciência torna-se possível traçar seu movimento, suas tendências. A “verdade” é concreta, pois é material e natural, e o pensamento nada mais é do que esse concreto desenvolvido em ideias. A filosofia, as indagações sobre a natureza das coisas, diante de uma sociedade de classes que destrói essa mesma natureza, pode e deve servir para reanimar a ciência, fazê-la integral para além do mero conhecer, trazê-la para a ação revolucionária.

A conciliação de classes do governo de frente ampla Lula-Alckmin, tanto na dimensão política como na ideologia injeta ceticismo nas massas, pretende tirar delas o entendimento e o protagonismo da história. A sua “ciência” fala de fatos, problemas ambientais e etc., mas a subordina aos interesses dos capitalistas e seus lucros, faz dela uma moeda de troca para explorar mais, ainda que com um discurso “humano” e falsamente “amazônico”. Nesse sentido, é intencional a separação anti-dialética entre ser humano e natureza, que em última instância é anti-ecológica: é imprescindível esconder a qualquer custo da juventude e da classe trabalhadora que o capitalismo é o problema e fazer ainda mais que isso: transformar o problema em algo necessário, intransponível e que o máximo que se pode fazer é mitigar seus efeitos, portanto algum nível de desmatamento é “aceitável”, algum nível de financiamento (bilionário) ao agronegócio é necessário e porque não as próprias alianças com a direita são necessárias.

A crise ambiental não será revertida de mãos dadas com quem a causou. Esse problema se coloca em forma gritante ao analisar os efeitos no ambiente da política do PT. Mas também se aplica a muitos que se autodeclaram ecossocialistas mas colocam como sujeito de seu programa os Estados capitalistas, empenhando uma política de “green new deal” para que esse Estado induza investimentos supostamente verdes e transforme o capitalismo mas preserve-o. Ou ainda outras versões um pouco mais à esquerda destas que pedem aos imperialismos fundos para financiar a que populações preservem o meio-ambiente. Pensam, utopicamente, na coexistência do imperialismo e novas sociabilidades “sustentáveis” nas periferias. Estes projetos mostrarão sua impossibilidade de realização. Cedo ou tarde, se colocará na ordem a abertura a ideias que postem o problema em sua forma real que se resume em: capitalismo ou natureza.

Não nos cabe ficar esperando. É preciso, que se construam as ideias mas também a conexão destas ideias com quem pode enriquecê-las e empunhá-las. A questão é erguer uma estratégia revolucionária capaz de colocar a classe operária, que tudo produz, como sujeito que pode tudo mudar, que pode oferecer uma outra visão de sociedade e da interação metabólica com a natureza, trazer junto de si detrás deste programa e “visão de mundo” os oprimidos e reestabelecer uma relação harmônica com a natureza, colocar a ciência para libertar a humanidade e não escraviza-lá. Outro nome para isso é o comunismo, que inaugurará o fim dessa pré-história da relação do homem consigo mesmo e portanto com toda a natureza.


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FOOTNOTES

[1O El Ñino, como escreveram Alexey V. Fedorov e S. George Philander na revista Science, pode ser entendido como uma das fases naturais de um modo de oscilação, da qual a La Ñina é sua fase complementar, que resulta de relações instáveis entre o oceano pacífico tropical e a atmosfera. Pelo menos a partir dos dados disponíveis aos autores que escrevem esse texto, tratamos aqui de um fenômeno não-antrópico, que antecede o antropoceno, isto é, é anterior ao período geológico no qual a atividade humana de produção e reprodução da vida social gera impactos qualitativamente significativos nos ecossistemas, clima etc na biosfera terrestre. Apesar de ter sido descoberto no século XX, existem registros de que os povos originários andinos já percebiam elevações anormais na temperatura dos oceanos, afetando seus regimes de pesca. Há uma polêmica ainda não resolvida na comunidade científica sobre se haveria, e se sim quais seriam, impactos do aquecimento global no El Ñino. “Is El Ñino changing?” é o título do artigo de 2002 mencionado, que coloca como perturbações aleatórias mantêm esse modo de oscilação neutramente estável, cujas propriedades dependem do estado climático de fundo. Nesse sentido, as mudanças aparentes nas propriedades do El Niño poderiam refletir a importância de perturbações aleatórias, mas também poderiam ser uma consequência de variações decenais do estado de fundo, o que insere a possibilidade de que o aquecimento global esteja afetando essas variações de forma substancial. Já o artigo “El Ñino in a changing climate”, de 2009, aborda como recentes estudos mostram que o El Ñino “canônico” tem se tornado menos frequente e um diferente tipo de fenômeno se tornou mais comum, sobretudo a partir do final do século XX (o próprio artigo publicado na Science ressalta que os El Ñinos mais intensos registrados até então foram em 1982 e 1997), no qual as temperaturas quentes da superfície do mar (TSM) no Pacífico Central são flanqueadas a leste e a oeste por TSM mais frias. Este tipo fenômeno, denominado El Niño do Pacífico central (CP-El Niño, El Niño Modoki ou El Niño “piscina quente”), difere daquele canônico do Pacífico oriental (EP-El Niño) tanto em relação à localização de anomalias máximas de TSM quanto em termos de teleconexões de latitudes médias tropicais. Em resumo, os pesquisadores constataram que as projeções de alterações climáticas antropogênicas, isto é, o aquecimento global, estão associadas a um aumento da frequência do CP-El Niño em comparação com o EP-El Niño (canônico). Quando restrito aos seis modelos climáticos testados pelos cientistas, com a melhor representação da proporção do século XX de CP-El Niño para EP-El Niño, a taxa de ocorrência de CP-El Niño/EP-El Niño deverá aumentar até cinco vezes sob o aquecimento global.
A constatação científica, embora talvez seja ainda cedo para dizer qual a medida exata em que o fenômeno do El Ñino se transformou qualitativamente diante do aquecimento global, exprime o que a ideologia burguesa busca esconder, ou diretamente separar de forma interessada. Pode-se discutir qual o nível de impacto das mudanças climáticas aqui, no entanto não se pode negar que o impacto existe. A biosfera é uma totalidade, composta por partes distintas que interagem, contradizem umas às outras, interpenetram-se, em um devir permanente.
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Leandro Lanfredi

Rio de Janeiro | @leandrolanfrdi

Rosa Linh

Estudante de Ciências Sociais na UnB
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