Logo Ideias de Esquerda

Logo La Izquierda Diario

SEMANÁRIO

A esfinge atordoante de Junho [parte I]

Danilo Paris

A esfinge atordoante de Junho [parte I]

Danilo Paris

Esse artigo faz parte de uma sequência que irá tratar os distintos momentos e aspectos de Junho de 2013. Nessa primeira parte, trataremos dos antecedentes de Junho e de alguns aspectos internacionais que influenciaram no Brasil de 2013. Nos próximos, abordaremos as próprias jornadas e os anos posteriores, até culminar nos dias atuais.

Contra uma concepção teleológica da história, Benjamin advertia que “o dom de atear ao passado a centelha da esperança pertence somente àquele historiador que está perpassado pela convicção de que também os mortos não estarão seguros diante do inimigo” [1]. O alerta ocorre porque o passado não está imune ao presente. É ele quem busca reconstruir a história.

Entre aqueles que reformulam a história, existem os que pretendem atribuir à luta de classes o papel de vilã de um emaranhado teleológico que culmina sempre em catástrofes. Esse ponto de vista, em geral, é aquele adotado por quem quer a manutenção de determinado status quo.

O recurso de culpar grandes revoltas, e mesmo revoluções, por futuros desastrosos foi, em muitos momentos históricos, um recurso para desencorajar os oprimidos a conhecer e reeditar sua própria história. Assim, a Revolução Haitiana foi responsável pela miséria atual do primeiro país das Américas a acabar com a escravidão, e a Revolução Espanhola pelo ascenso do franquismo, entre um sem número de grandes e pequenos acontecimentos históricos.

Também em revoluções triunfantes, nos momentos prévios ao seu apogeu, as disputas em torno dos rumos dos acontecimentos foram inúmeras. Na Rússia de 1905, não foram poucas as vozes que se levantaram para atribuir à radicalidade do movimento as razões de sua própria derrota. Naquele momento, diziam que essa era a razão do posterior fortalecimento do czarismo. Não fosse o desfecho de 1917, provavelmente até os dias de hoje essa versão teria muito mais força, talvez sendo considerada como a história oficial de um momento histórico de aventureirismo dos trabalhadores e do campesinato russo.

No caso brasileiro, são inúmeros os setores que disputam a história para afirmar seus propósitos, e eles não são restritos aos que se dizem de esquerda. A extrema-direita e os militares são um exemplo disso. Das revoltas de escravos ao período regencial, chegando à ditadura militar, sempre buscaram recriar uma história positiva, e não menos fantasiosa, do papel das forças militares para a construção de um determinado ideário de sociedade. Assim, não é uma novidade histórica que o passado esteja em constante disputa, no entanto, algo novo passa nesse debate quando o tema são as Jornadas de Junho de 2013.

A principal delas é que Junho foi a primeira grande movimentação de massas da história contemporânea brasileira à qual o PT opõe-se pelo vértice. É uma grande produção presente em livros, discursos, posts e tuítes para massacrar qualquer ideário positivo de Junho. Pretende-se envergonhar, gerar arrependimento, um sentimento de auto-engano e manipulação entre aqueles que foram às ruas em Junho. Isso ocorre porque há no passado de Junho uma disputa pelo presente e pelo futuro. Uma questão de Estado, poderíamos dizer, que ultrapassa o próprio PT, mas que contém nele uma peça-chave.

Considerando o próprio processo de surgimento do PT, é de seu DNA buscar se apresentar como principal representante dos movimentos dos trabalhadores e populares, desde o grande ascenso operário dos fins dos anos 1970. Ainda que seu papel fundamental neste processo tenha sido conter e desviar a energia revolucionária deles, discussão ao qual não poderemos retomar neste artigo [2], o fato de o PT se colocar como um antagonista de Junho é um sintoma profundo das transformações que passou esse partido e do papel que ele se propõe assumir no próximo período.

Neste mês, a Fundação Perseu Abramo, vinculada ao PT, em uma revista com edição especial sobre Junho de 2013, foi taxativa sobre seus efeitos: "o ovo da serpente do fascismo começou a ser chocado em junho de 2013". A revista intitulada “Dez anos da Jornada [3]” é uma verdadeira declaração de guerra contra Junho. Já no texto de abertura, as intenções não poderiam ser mais claras. Segundo o autor: "Lembrar e deplorar os acontecimentos de junho de 2013 servirá de alerta para que as forças populares não voltem a cair no "canto de sereia" de aprendizes de feiticeiros da política que, para posarem de modernos, venham atrapalhar a caminhada vitoriosa do governo Lula em sua luta diária pela união e reconstrução do Brasil".

A aversão do PT a Junho não é apenas um debate sobre a história. Em meio ao governo de Frente Ampla, encabeçado por Lula e com o apoio de muitos daqueles que articularam o golpe institucional de 2016, o PT precisa afogar historicamente Junho para advertir que aqueles que agora ousarem lutar estarão novamente chocando o ovo do fascismo. Uma profunda ofensiva não só contra Junho, mas contra toda forma de luta de classes que queira se radicalizar.

Marilena Chauí, uma das principais representantes da intelectualidade orgânica do PT, é a personificação dessa concepção. Foi ela quem estabeleceu famosas teses de que foi em Junho que se iniciou o curso para a extrema-direita no país. Mas além dela, há inúmeros outros autores e livros que buscaram criar um nexo de causa e efeito entre Junho e a chegada de Bolsonaro ao poder, através da ideia que ficou sintetizada na expressão "ovo da serpente", expressão que tem em um livro homônimo a fundamentação dessa tese [4].

Este artigo pretende retomar Junho, buscando demonstrar como ele foi o efeito colateral do projeto de país que o PT pretendia construir, articulado em torno do fenômeno político e social do lulismo. Ao contrário do argumento essencialista de que Junho nasceu à direita para debilitar o PT e abrir espaço para a extrema-direita, defendemos que, ainda que com características contraditórias e difusas, Junho foi uma explosão social com demandas inicialmente progressistas e que não se restringiram a setores de classe média e da juventude, mas que também teve forte impacto sobre a classe trabalhadora.

Queremos demonstrar como, na realidade, Junho abre um longo período de crise orgânica no Brasil, categoria que Gramsci elabora para compreender a crise de hegemonia da classe burguesa. Como próprio desses momentos, o terreno fica aberto a soluções de força, ideia que retomaremos nos próximos artigos.

A questão decisiva que irá percorrer esses e os próximos artigos é que o futuro não estava determinado. O campo estava aberto a inúmeras possibilidades e o desfecho dos acontecimentos dependeu da articulação política de diversos setores econômicos e políticos. Entre as possibilidades, argumentamos como a classe trabalhadora poderia ter sido um ator determinante, não fosse uma conjunção de fatores que abordaremos a seguir.

O mundo não é a soma de suas partes

Junho de 2013 não pode ser desconectado de uma onda internacional de processos de mobilizações de massas que ocorreram em todo o mundo. Tunísia, Egito, Síria, Líbia, Iêmen, Bahrein, Marrocos e Arábia Saudita, Turquia, China, Grécia, Espanha, Inglaterra, Estados Unidos, Chile, México, Brasil, entre vários outros, foram palcos de mobilizações multitudinárias em um intervalo de poucos anos. Ainda em 2011, quando fortes processos sacudiram o mundo, diferentes autores e analistas se apressaram em declarar que não era possível conectar cada um desses processos devido à particularidade de cada um.

Essa lógica opera na seguinte frequência: devido ao fato dos Indignados espanhóis lutarem por democracia real, no interior de uma democracia ocidental, eles estariam completamente separados da mobilização dos egípcios que lutaram contra uma ditadura de décadas que tinha Mubarak à cabeça.

Assim, a única explicação para a eclosão de todos esses processos era uma mera eventualidade, onde o particular era a determinação e o universal uma abstração. O mundo para esses autores é uma simples soma de suas partes, desconectada e inerte às interações recíprocas. As próprias manifestações eram separadas entre as “ocidentais”, onde se lutava pelo aprimoramento da democracia, e as “orientais”, onde a democracia tinha que ser conquistada. Toda uma lógica que analisava os processos exclusivamente a partir do regime político, sem considerar outros mais profundos, como os impactos sociais e econômicos produzidos pela crise de 2008.

Por trás dessa ideia, esconde-se uma concepção que desconsidera o capitalismo como uma totalidade orgânica que pode provocar fenômenos políticos e sociais em diferentes partes do mundo e com uma relativa contemporaneidade. O que, por óbvio, não significa considerar que todos esses processos sejam idênticos e motivados pelas mesmas questões. Existem particularidades nacionais que complexificam a compreensão de cada um deles. Elas não são poucas e nem pequenas, e merecem relevo na análise. No entanto, aqueles que negam toda e qualquer conexão entre esses processos buscavam criar uma divisão entre cada um deles, que em última instância, os considerava apenas como uma união de curto-circuitos particulares que nada tinham a ver com a crise de acumulação capitalista anterior a eles.

No interior das teses de repulsa a Junho, uma das concepções que está engendrada é justamente essa. Segundo essa visão, o Brasil não era uma ditadura egípcia, não tinha nada a ver com a fome que assolava os líbios e tampouco o povo brasileiro vivia algo parecido com a miséria dos gregos que sofriam com a austeridade da Troika. Segundo a narrativa petista, o país atravessava um curso de prosperidade, com uma imagem que mais parecia a do Welfare State europeu.

Entre os diversos países que tiveram mobilizações em massa em 2013, não é verdadeira a tese de que o Brasil é um ponto fora da curva, uma vez que aqui supostamente o país passava por um período de prosperidade e bonança. Ainda que não existisse uma situação econômica catastrófica, há muitos indicativos que apontam sinais de mal-estar social.

Além disso, considerando os outros países, o Brasil não foi o único que apresentava uma situação econômica relativamente estável e mesmo assim viu em suas cidades grandes mobilizações. A Turquia, tida como um país de economia emergente e islamismo político moderado, foi um símbolo de grandes movimentos de massas nesse período, sendo a praça Taksim um dos lugares que mundialmente ficou famoso pela eclosão de protestos multitudinários.

O que converge entre esses mais diferentes processos é que esse período marcou o início do fim do triunfalismo neoliberal. Momento que atinge seu apogeu após o fim da União Soviética e da restauração capitalista nos países do leste europeu, que somado a outros fatores, como maior inserção da economia chinesa no mercado mundial, possibilitou ao capitalismo internacional uma recomposição de suas taxas de lucro a níveis exorbitantes. Devido a isso, uma ofensiva contra uma série de direitos conquistados nas décadas anteriores se impôs, combinado com uma ofensiva ideológica marcada pelos ideais de individualismo, consumismo, empreendedorismo, entre vários outros que consolidaram o projeto de sociedade neoliberal. No entanto, essa ofensiva começou a ser questionada pela maior onda de explosões sociais desde o início de sua ofensiva.

A crise econômica internacional de 2008, que teve seu epicentro nos Estados Unidos, foi uma mudança qualitativa que indicava as enormes dificuldades do capitalismo em seguir mantendo suas taxas de lucro do momento anterior. Assistimos nada menos do que a bancarrota do quarto maior banco de investimentos do principal imperialismo do mundo, o Lehman Brothers. Ainda que a dinâmica da crise tenha sido contida por enormes inversões estatais, ela também afetou outras economias mundiais e segue com efeitos até os dias de hoje, com o agravante dos efeitos da própria pandemia. As engrenagens de acumulação neoliberal já não possuíam a mesma propulsão do que os anos anteriores, o que levou a uma política de austeridade e destruição de direitos em proporções colossais.

Outros efeitos, como a diminuição do fluxo de capitais internacionalmente e a retração do crédito, provocaram reações em cadeia que desaceleraram a economia mundial. O que Lula inicialmente chamou de "marolinha" depois teve efeitos profundos no país. Na prática, estávamos diante de uma verdadeira ruptura do esquema de reprodução do capital. Não considerar esse esteio para os posteriores processos de luta de classes que ocorreram no mundo é fechar os olhos para uma crise sistêmica que afetou estruturalmente o capitalismo internacionalmente. O Brasil não ficou por fora disso, por mais que protestem os ideólogos de um país que nunca existiu.

Junho não foi um raio em céu azul

São inúmeros os sinais de mal-estar social nos momentos anteriores às grandes manifestações de junho. Essa insatisfação pode ser vista em centenas de milhares de operários, que, ano após ano, aumentaram a quantidade de greves que ocorriam no país. 2013 foi o ano em que o país atingiu o pico do maior número de greves desde 1978. Essa é a constatação feita pelo Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (DIEESE), que verificou que esse ano atingiu o topo da série histórica de greves. Só em 2013 foram contabilizadas 2.050 greves [5]. Um crescimento de 134% em relação ao ano anterior, quando foram registradas 877 greves.

São números que saltam aos olhos, considerando que a série histórica do estudo do DIEESE se inicia justamente em um dos momentos mais ativos da classe trabalhadora brasileira. O ascenso operário que se iniciou em 1978 e se estendeu até 1980 fez tremer a ditadura militar e marcou uma inflexão na situação política do país, que influenciaria as décadas seguintes. Ainda que esse levantamento considere apenas a quantidade de greves e não sua força política e social, é chamativo que a quantidade de greves em 2013 se assemelhe a esse período. Mais do que um sinal de advertência, era um acúmulo de contradições que anunciava que algo estava prestes a explodir.

No interior dessas expressões de descontentamento, novos fenômenos operários começaram a se desenvolver, de maneira completamente avessa ao sindicalismo tradicional. Uma das mais notáveis expressões foram as chamadas greves "selvagens", que ocorreram à margem dos sindicatos e com características de grande radicalização. Os canteiros de obras espalhados por todo o país entraram em convulsão.

Foram grandes levantes operários que colocaram em chamas os maiores canteiros de obras do país. Dezenas de milhares de trabalhadores foram alocados para erguer as obras do programa impulsionado pelo governo Dilma, denominado Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), que previa realizar obras de infraestrutura por todo o país. Nesses locais, subitamente, alojamentos, ônibus e maquinários foram queimados, devido às péssimas condições de trabalho. Na mídia, milhares de operários insurretos estamparam os telejornais, com enormes labaredas de fogo. Eram inúmeras as denúncias: comida azeda, impedimento de voltar para ver os familiares em outros estados, baixos salários, entre várias outras. Em suma, uma série de denúncias que aproxima esses casos de trabalho análogo à escravidão.

As burocracias dos sindicatos tentaram a todo custo conter essa revolta, mas foram amplamente rechaçadas por essas categorias. As mais famosas delas foram as grandes greves na construção das usinas hidroelétricas de Jirau e Santo Antônio, ambas na cidade de Porto Velho, em Rondônia, e Belo Monte, no rio Xingu, localizado no estado do Pará. Embora o estopim dessa radicalização tenha ocorrido em 2011, elas continuaram em 2012 e 2013, enfrentando ataques de todas as ordens, como o envio da Força de Segurança Nacional comandada pelo governo Dilma.

Mas não foi só no Norte que os operários se levantaram. Em 2012 ocorreu a greve do Complexo Petroquímico do Rio de Janeiro (Comperj) [6], no município de Itaboraí, no estado do Rio de Janeiro, quando mais de 14 mil operários cruzaram os braços e realizaram enormes manifestações contra as péssimas condições de trabalho. Até 2014 foram constantes as greves e mobilizações desses operários, que atingiram um pico de 22 mil operários em greve em 2014. As obras do Comperj, vinculada a Petrobrás, eram peça chave para o discurso de “país do futuro” de Lula e do PT. Ele participou de uma cerimônia de lançamento da pedra fundamental do Comperj em uma obra cujo investimento foi de 8,4 bilhões de dólares, sendo o maior empreendimento único da Petrobras e um dos maiores do mundo no setor.

A lista de greves em polos estratégicos foi extensa, como a do porto de Suape em 2011, quando mais de 11 mil trabalhadores entraram em greve, mostrando que pelo país todo eram dezenas de milhares de operários que se revoltaram contra as condições de trabalho absurdas. Eram as global players que o governo Lula anunciava como a nova marca do protagonismo do Brasil no mundo, explorando barbaramente enormes contingentes de trabalhadores por todo o país. O chamado “milagre brasileiro” na verdade era um verdadeiro inferno para milhares de operários de diversos setores.

Esse “boom” da construção civil, gerou efeitos nas grandes construções, mas também nas grandes cidades. A arquiteta Erminia Maricato, em seu artigo “É questão urbana, estúpido [7]” mostra como os programas do PT geraram uma hiperinflação no mercado imobiliário. De 2009 a 2012 o preço dos imóveis sofreu um aumento de 153% em São Paulo. No Rio de Janeiro o aumento foi de 184%. Segundo ela, isso gerou um processo da expulsão dos pobres das regiões já consideradas periféricas, havendo um deslocamento maior para regiões ainda mais distantes dos centros urbanos.

Isso somado a centenas de despejos violentos que ocorreram para construção das obras para a Copa, que se estima que foram de 200 a 250 mil despejos [8], gerou toda uma atmosfera explosiva nas cidades. Não foi a toda que a explosão social começou a partir da questão da passagem, justamente porque grandes contingentes populacionais passaram a ter que se deslocar mais dentro das cidades.

Além dos despejos, foram essas mesmas construtoras, utilizando-se das mesmas formas de trabalho, que estiveram à frente da construção dos estádios de futebol para a Copa das Confederações e para a Copa do Mundo. Além do rechaço social que provinha dos gastos em vultosas obras faraônicas “padrão Fifa”, foram inúmeras as denúncias de acidentes de trabalho em várias dessas construções. Não é de se estranhar que o ódio social tenha ganho a simbologia dessas construções, uma vez que elas encarnaram um projeto de país ao qual a grande maioria dos brasileiros não só não poderia usufruir, mas que também drenava recursos públicos e impunha condições absurdas de trabalho.

O processo de urbanização brasileiro, com a migração de grandes contingentes populacionais para regiões industriais, marcaram o problema da mobilidade urbana como fogo nas cidades brasileiras. Junho de 2013 não inaugurou grandes processos de mobilização. Já em 2003 se instalou em Salvador uma série de manifestações que ficaram conhecidas como a Revolta do Buzu. Em 2004, foi a juventude de Florianópolis que protagonizou a Revolta da Catraca. Em outras grandes capitais processos semelhantes ocorreram, a tal ponto de se transformarem em mobilizações “tradicionais” na juventude frente ao aumento das passagens ano após ano.

Para além do problema urbano, a precarização do trabalho foi uma marca do mal estar social que percorria os poros da sociedade brasileira. A expansão dos empregos durante os governos petistas, sempre esteve acompanhada do mesmo componente. Mais de 60% dos empregos criados durante os governos de Lula da Silva e de Dilma Rousseff foram ocupados por jovens entre 18 e 24 anos. No entanto, 94% desses empregos pagam até R$ 1.000,00 [9].

Esse foi um dos grandes segredos do lulismo. Ao passo que hoje o PT propaga que os empregos aumentaram, escondem que a maior parte deles era precária, com uma enorme expansão do trabalho terceirizado. Do ponto de vista de classe, essa é uma química social que ajuda a compreender o profundo mal-estar expresso nessas greves e no clima que desaguaria em junho de 2013.

Essas megaconstruções promovidas pelas obras do PAC também geraram inúmeros outros conflitos, em particular com vários povos indígenas. A região de Belo Monte, com a construção da hidrelétrica, foi um dos palcos de mais conflitos, onde ocorreram inúmeros embates entre indígenas, construtoras, madeireiros e o governo federal. Em 2020, a justiça do Pará reconheceu que ocorreu um etnocídio dos povos indígenas da Volta Grande do Xingu, tamanho foi a violência perpetrada contra o território, a cultura e a vida desses povos nesse período. Mas esse foi apenas um dos exemplos da ruptura de diversos povos e do movimento indígena com os governos do PT, que se enfrentaram não só contra essas grandes obras, mas também contra o agronegócio que se fortaleceu, o que provocou o aumento de conflitos e ataques às terras indígenas.

Nas cidades, já havia o despertar de uma juventude universitária e secundarista que se sensibilizava com as pautas indígenas e de preservação do meio ambiente. Ocorreram atos e manifestações, tanto em Brasília como em outras grandes capitais, que colocaram essas questões no centro. Outras pautas, como a legalização da maconha e o questionamento da guerra às drogas, também eram motores de importantes manifestações da juventude. Era um questionamento direto aos governos do PT, devido ao aumento em 160% dos encarcerados no Brasil em apenas 4 anos, o que atingia especialmente os negros, devido à chamada Lei de Drogas assinada por Lula em 2006. Foram esses processos que também contribuíram para criar uma massa crítica daqueles primeiros setores que foram às ruas em junho de 2013.

Outras categorias também começaram a expressar fenômenos iniciais anti-burocráticos, dando uma mostra do que poderia estar por vir. A educação foi um polo de grandes lutas, e em 2012, ocorreram greves em diversas universidades federais pelo país todo, sendo considerada até então, a maior paralisação já realizada no país, com adesão de mais de 95% das instituições [10]. Processo que se iniciou anos antes, com alguns momentos de forte emergência e processos massivos de greves e ocupações de reitoria, como nas mobilizações ocorridas em 2007 que se levantou contra a precarização do ensino superior.

Mas a educação básica também foi protagonista de fenômenos particulares. Em maio de 2013 os professores do estado de São Paulo protagonizaram uma forte greve contra o governo de Geraldo Alckmin [11]. A vanguarda da categoria foram os chamados categoria O (professores temporários, com contratos precários), que realizavam semanalmente grandes atos na capital paulista. Em meio a greve do Estado, os professores do município também entraram em greve, contra o ataque da prefeitura de Fernando Haddad. Havia um forte componente de unificação das duas greves, e isso era o que as burocracias sindicais que dirigiam os dois sindicatos mais temiam e buscavam evitar. Para evitar isso, a APEOESP (Sindicatos dos Professores de São Paulo - maior sindicato da América Latina), dirigida pelo PT na figura de Bebel, encerrou a greve apesar da assembleia ter se manifestado pela continuidade. A revolta tomou conta do vão do MASP, os professores cercaram o caminhão de som exigindo que a assembleia fosse respeitada e a burocracia sindical da APEOESP só conseguiu sair da Av. Paulista escoltada pela Polícia Militar.

Hoje o PT quer vender a ideia de que não havia o porquê lutar em 2013, como se vivêssemos no Paraíso. Essas são algumas das expressões do projeto de país, vendido como “Brasil potência”, pelos próprios governos do PT. A Copa das Confederações e a Copa do Mundo seriam a coroação desse projeto, com a construção civil e as grandes construtoras ocupando um lugar privilegiado. Ainda que Junho tenha sido um movimento marcadamente de juventude e policlassista, estudos mostram que mesmo em seu momento inicial é inegável a composição de um setor do proletariado mais jovem [12]. Se a classe trabalhadora não participou de maneira organizada de Junho, isso se deve, em especial, ao papel de contenção exercido pelas burocracias sindicais, que tinham como primeiro objetivo preservar o "seu" governo.

Os processos de ascenso de greves e os novos fenômenos políticos e sindicais que já se expressavam no pré-junho indicam um nível de atividade que não poderia desaparecer durante as jornadas. Os trabalhadores participaram de Junho, porém não com os seus métodos e seus instrumentos tradicionais de luta. Participaram de forma atomizada, como mais um na multidão. Hoje, aqueles que buscam atacar Junho como um bando de "classe média alienada", como fazem vários dos seus antagonistas do PT, são os mesmos que impediram que os trabalhadores pudessem ser um sujeito político nas jornadas. A força do componente operário de Junho se deu em estado de latência.

Além disso, aqueles que querem reduzir Junho a um movimento de classe média precisam apagar da história que ele não foi um processo que se manteve exclusivo às regiões centrais das cidades. Foi um aspecto marcante de Junho que dezenas de atos ocorriam simultaneamente em diversas cidades, com muitas manifestações e mobilizações ocorrendo nas periferias da cidade.

É inconteste que a energia de Junho eletrizou o movimento operário. Um dos fatos mais sintomáticos disso foi quando através das redes sociais foi convocada uma Greve Geral para o dia 1 de julho, e que contou com mais de 1 milhão de confirmados até o evento ser retirado do ar [13]. A contaminação nos locais de trabalho foi tão grande que as centrais sindicais tiveram que vir a público [14] para desfazer a convocatória, desesperada com a possibilidade da perde controle de diversas categorias de trabalhadores. Só em 11 de julho, portanto quando o movimento de massas já havia entrado em claro descenso, e o risco de descontrole já havia se dissipado, convocaram uma paralisação nacional que tinha como objetivo descomprimir essa vontade que vinha desde as suas bases de também lutar, assim como havia feito a juventude de junho. Uma paralisação nacional como essa não ocorria desde 1991 [15], expressão irrefutável que a barreira entre a mobilização da juventude em junho e o movimento operário se dava muito mais pela ação das próprias burocracias, havendo uma clara subjetividade favorável à unificação desses setores.

A ausência de uma contundente resposta operária diante da crise aberta em 2013 é um elemento estruturante para compreender o porquê nos anos posteriores a direita conseguiu iniciar uma ofensiva própria através da Lava Jato e do impeachment. O PT repelia a luta de classes, demonizava junho, freava o movimento operário enquanto buscava se conciliar com diversos setores da direita que posteriormente fariam a ofensiva reacionária com os atos verde-amarelo. Ainda haveria novos capítulos, com força para impedir uma guinada à direita no país, como foi a própria greve geral de 2017. Mais uma vez, o PT e a CUT optaram por sabotar esse movimento, que inicialmente chegou a barrar a reforma da previdência, apostando novamente que nas eleições de 2018 poderiam voltar ao comando do Brasil. Sobre esses episódios trataremos nos próximos artigos.

Ao resgatar as lições da notável experiência de poder operário de seu tempo, Marx levanta uma indagação em seu renomado livro A guerra civil na França: “Que é a Comuna, essa esfinge tão atordoante para o espírito burguês? [16]” A essa questão, Marx oferece respostas perspicazes, sempre partindo de uma perspectiva de classe, sem a qual seria impossível desvelar os verdadeiros segredos da Comuna.

Embora possua um conteúdo incomparável em diversos aspectos, Junho de 2013 surge como um fenômeno desconcertante para todos aqueles que rejeitam a análise baseada na perspectiva de classe dos grandes acontecimentos que marcaram o país naquele mês. Privada do método marxista, a história não estará segura da aversão daqueles que consideram as novas irrupções de massas como a maior das ameaças.


veja todos os artigos desta edição
FOOTNOTES

[1BENJAMIN, Walter. O anjo da história. Autêntica, 2013.

[2Para ver mais: A rebelião operária contra a ditadura e as origens do PT. Acesso: https://esquerdadiario.com.br/ideiasdeesquerda/?p=157

[3Dez anos da Jornada. Focus Brasil. Fundação Perseu Abramo. 12 de junho de 2023. n. 99.

[4DIEGUEZ, Consuelo. O ovo da serpente: Nova direita e bolsonarismo: seus bastidores, personagens e a chegada ao poder. Companhia das Letras, 2022.

[7MARICARO. Erminia. É a questão urbana, estúpido. in: Cidades Rebeldes.Boitempo Editorial, 2013.

[8VAINER. Carlos. Quando a cidade vai às ruas. in: Cidades Rebeldes.Boitempo Editorial, 2013.

[9BRAGA. Ruy. As jornadas de junho no Brasil: Crônica de um mês inesquecível. p. 53. In: OSAL Observatorio Social de América Latina. Año XIV Nº 34. Novembro de 2013.

[10Ver: Greve de 2012 dos docentes federais passa a ser a mais longa da história do setor http://adusb.org.br/web/page?slug=news&id=6809&pslug=

[12SINGER, André. Brasil, junho de 2013, classes e ideologias cruzadas. Novos estudos CEBRAP, p. 23-40, 2013.

[15SECCO, Lincoln. As Jornadas de Junho. In: Cidades Rebeldes. Boitempo Editorial, 2013.

[16MARX, Karl. A guerra civil na França. Boitempo, 2011. p. 54
CATEGORÍAS

[Manifestações]   /   [Copa do Mundo]   /   [Juventude trabalhadora]   /   [Greve]   /   [Lula]   /   [Jornadas de Junho]

Danilo Paris

Editor de política nacional e professor de Sociologia
Comentários