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Documento Nacional para o V Congresso do MRT: Entre as expectativas e a realidade do novo governo Lula

Danilo Paris

Documento Nacional para o V Congresso do MRT: Entre as expectativas e a realidade do novo governo Lula

Danilo Paris

Apresentamos o documento nacional para o V Congresso do MRT, que será realizado em junho de 2023, convidando o conjunto da vanguarda e dos ativistas à discussão diante dos novos cenários estratégicos que se apresentam no país. Neste artigo, expressamos a síntese das discussões feitas pelo Comitê Central do MRT, sobre as atualizações da situação política nacional.

Entre as expectativas e a realidade do novo governo Lula

Desde as eleições, quando foram proferidas as promessas de campanha de Lula, transcorreu-se um período de meses até que as medidas efetivamente implementadas pelo governo pudessem ser avaliadas. Entre inúmeras incertezas, Lula busca manter um equilíbrio tênue e delicado. Precisa dar declarações que garantam que não irá reverter as reformas e privatizações já aprovadas, e ao mesmo tempo evitar potenciais explosões sociais ou o crescimento das greves salariais, sob pena de perder apoio da própria classe dominante, que o apoia justamente pra isso, e de uma parcela da população que o elegeu. Na margem do possível, apresenta medidas que possam manter cativa sua base e acalmar a base bolsonarista entre os mais pobres. Através do aumento das bolsas de estudo, fixação do piso da enfermagem, manutenção do Bolsa Família, reajuste dos salários do funcionalismo, dentre outras ações, o governo Lula-Alckmin procura alcançar esse objetivo, bem como através da promoção do discurso em defesa dos mais pobres, do meio ambiente e dos povos indígenas.

Apesar de estar governando um país cujas contradições são inúmeras e de estar sujeito a perspectivas de crescimento baixo, a estratégia de conciliação adotada pelo governo garante a manutenção de reformas anteriores fundamentais, tais como aquelas que alteraram as leis trabalhistas, previdenciárias e o ensino médio. Ademais, outras medidas favoráveis ao mercado financeiro são propostas, como o novo “arcabouço fiscal”, além de novas oportunidades de negócios para os setores exportadores do agronegócio e a busca por uma maior estabilidade para as frações de classe que aderiram ao bolsonarismo. Em pouco mais de 100 dias de mandato, já é possível visualizar algumas políticas econômicas e de governabilidade adotadas pelo governo que agora começa a apresentar seu programa de administração do país.

Perspectivas econômicas estreitas e a impossibilidade de reedição do lulismo

Em sua carta de conjuntura, o IPEA parte da análise de um cenário de desaceleração da atividade econômica e de um arrefecimento do mercado de trabalho, refletido numa leve aceleração da taxa de desemprego. Além disso, considera o controle da inflação, mas alerta para os significativos patamares de preços decorrentes da escalada prévia. Em relação ao PIB, avalia a possibilidade de uma recuperação durante o ano, com a perspectiva de um crescimento leve de 1,4%. Entretanto, não podem ser descartadas perspectivas ainda mais minguantes de crescimento, como aquelas previstas pelo último boletim do Banco Central (BC), que sugere uma estimativa de 0,9%. Recentemente, o Índice de Atividade Econômica do BC (IBC-Br) registrou alta de 3,32% em fevereiro, em comparação com o primeiro mês do ano. Isso fez com que alguns bancos aumentassem as projeções de elevação do PIB, sendo a mais otimista delas, a do Bradesco, prevendo 1,8% de crescimento.

Assim sendo, embora as previsões econômicas oscilem, as perspectivas para o ano sugerem um baixo crescimento e não se pode descartar até mesmo uma estagnação. Isso se deve ao contexto de incertezas econômicas, que pode provocar mudanças nas tendências com indicadores preocupantes, como a falência de instituições financeiras, como o Silicon Valley Bank, o Signature Bank, nos Estados Unidos, e o Credit Suisse, na Europa.

Ainda entre as instabilidades figuram aumentos nas taxas de juros dos países centrais do capitalismo, somados às tensões decorrentes da continuidade da guerra na Ucrânia e da disputa entre Estados Unidos e China em relação à Taiwan, fatores que intensificam o quadro de incertezas. O tom beligerante do cenário internacional não para de emitir novos sinais, como o recente acordo dos Estados Unidos com a Coreia do Sul, de instalação de mísseis nucleares em submarinos, que já provocou fortes reações da China e Rússia.

Com isso, não podemos ignorar a possibilidade de mudanças significativas no quadro econômico global. A estabilidade política e social ainda é algo difícil de alcançar nesse contexto. Tudo isso gera projeções preocupantes para o governo, especialmente devido à situação em que as condições de vida continuam a se precarizar e os sinais de polarização política no país permanecem evidentes.

Segundo dados da pesquisa de Endividamento e Inadimplência do Consumidor (Peic) anual, divulgados em janeiro de 2023, o número de famílias endividadas bateu, em 2022, um recorde da série histórica iniciada em 2011. 77,9% das famílias brasileiras estão endividadas, um avanço de 7 pontos em relação ao ano anterior e de 14% em relação a 2019.

Do ponto de vista dos empregos, o panorama está longe de apresentar “brotos verdes” de recuperação. Ao contrário, segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (PNAD), a taxa de desemprego subiu 0,5% comparativamente ao trimestre anterior, atingindo 8,6%. Ainda assim não é uma circunstância de descontrole, que no imediato pudesse colocar a possibilidade de um estopim social. Por ora ainda distante de momentos de maiores crises, como foi no primeiro trimestre de 2022, quando a taxa chegou a 11,2%.

Essas são algumas das expressões da piora nas condições de vida, resultado das contrarreformas dos últimos anos e do cenário econômico adverso agravado pela pandemia. Durante os dois primeiros mandatos de Lula, o fenômeno do lulismo precisou se apoiar em um ambiente econômico favorável para impulsionar o mercado interno e gerar uma sensação de ascensão social por meio do consumo.

O tripé que articulou programas sociais, aumento real do salário mínimo, barateamento e expansão do crédito foram fundamentais para que Lula conquistasse altas doses de legitimação social. No entanto, o quadro agora é completamente diverso. As tendências econômicas são um grande obstáculo para que Lula consiga reeditar a mesma fórmula dos seus primeiros governos. As bases para o desenvolvimento e assentamento de uma nova hegemonia de tipo lulista – com pilares no consumo e no crédito – não estão no panorama do novo cenário estratégico do país.

O “novo” arcabouço fiscal e a distinção entre os governos Lula

É precisamente nesse contexto que se apresentam desafios estruturais para a implementação de políticas econômicas capazes de estabelecer maior estabilidade política e social no país. Embora o Bolsa Família tenha mantido seu valor elevado em comparação aos primeiros mandatos, outros alicerces desses anos dourados do lulismo se encontram atualmente debilitados em termos estruturais, como o consumo, a expansão do crédito e o aumento real do salário mínimo, tal como ocorreu nos primeiros mandatos.

O chamado novo “arcabouço fiscal”, desenhado e articulado pelo PT, é uma medida neoliberal que acentua algumas das diferenças do atual governo Lula, em relação aos anteriores. Embora a reforma da previdência realizada durante o primeiro governo tenha sido vista como uma medida crucial para o ajuste fiscal, do ponto de vista da política econômica neoliberal o PT governou ao herdar e aprimorar as estruturas deixadas pelos governos FHC. Agora, o PT apresenta uma novidade ao propor um novo mecanismo de sua própria autoria para garantir o pagamento da dívida pública e que pressiona por ajustes, dependendo do cenário econômico. Trata-se de um novo Teto dos Gastos que impõe restrições à ampliação dos gastos públicos, embora com um desenho diferente do modelo originalmente aprovado por Temer. Este se mostrou impraticável até mesmo para setores burgueses, uma vez que permitia apenas a elevação dos gastos de acordo com a inflação.

O sociólogo Sérgio Abranches, responsável por formular pela primeira vez o conceito “presidencialismo de coalizão”, e insuspeito de ser contrário a uma política-econômica de ajuste fiscal, concedeu uma entrevista sintomática nesse sentido, e ao se referir ao arcabouço afirmou: “Antes, eles adotavam uma política que não era deles, nunca foi considerada como deles. [...] Agora estão adotando uma política que foi formulada por eles, é da cabeça deles. Não dá para vir depois e dizer que é uma política neoliberal. Agora é uma política do governo do PT.” A ironia de quem sempre foi defensor de políticas neoliberais, e agora está vendo o próprio PT sendo propositor desses mecanismos.

Em suma, deixando de lado os gastos sociais como saúde, educação e assistência social, a nova regra impõe uma limitação para seu aumento, já que só pode fazê-los em até 70% do aumento da arrecadação tributária, se essa ocorrer. Em outras palavras, o arcabouço fiscal sempre impõe uma restrição à ampliação dos gastos, mesmo que haja uma elevação na arrecadação. Se esta sobe, a proporção do aumento dos gastos será sempre menor para garantir o superávit primário, que é a garantia do pagamento dos juros da dívida.

Por exemplo, para cada R$ 100 de aumento na arrecadação, o governo só pode elevar suas despesas primárias em R$ 70, excluindo os gastos com juros para pagar a dívida. Além disso, há uma banda (piso e teto) para o crescimento real (descontada a inflação) das despesas do governo, que varia entre entre 0,6% (mínimo, em momentos que a arrecadação não aumenta) e 2,5% (máximo, mesmo que a arrecadação aumente mais do que o proporcional a esse valor). Isso limita a capacidade de ampliação do investimento estatal, mesmo em momentos de maior crescimento econômico.

Para se ter um comparativo limitante que o arcabouço coloca no aumento de investimento estatal, considerando os primeiros governos Lula, a despesa pública cresceu a 5,3% ao ano. Já no segundo mandato de FHC, o crescimento foi de 4,5%. Caso o crescimento da arrecadação permita um aumento dos gastos que atinjam o teto (2,5%), isso representaria um valor 80% menor do que os gastos ampliados por FHC.

O governo aposta em um aumento na arrecadação e ensaiou algumas medidas para alcançar esse objetivo, como um maior controle das importações. No entanto, essa medida foi abandonada após a reação negativa, especialmente devido ao impacto no consumo. Outras medidas, como a taxação de agências de apostas, são consideradas, mas não há garantias de sucesso nessa empreitada. Henrique Meirelles, por sua vez, expressou aprovação pela medida, mas levantou questionamentos sobre a capacidade de ampliar a arrecadação, sugerindo que são necessários cortes de gastos. Isto é, ataques à direitos sociais, que ainda não foram apresentados, mas podem vir a ser implementados se a situação econômica e fiscal se mostrar adversa.

É por isso que a medida foi amplamente bem recebida em setores do capital financeiro, como a FEBRABAN, e elogiados por partidos de direita e do Centrão. Entre os setores mais à direita da grande mídia Haddad vem sendo louvado, como no editorial do Estadão que o define como “o que de melhor esse terceiro mandato do Lula produziu”. Não obstante, a Folha de São Paulo produziu um editorial com o sugestivo título “Passos corretos”, parabenizando as propostas econômicas do governo, em particular as intenções de impulsionar Parcerias Público Privadas (PPPs) e proteger o interesse dos acionistas do mercado financeiro.

A política de juros do BC, que se mantém em índices elevados, é um tema nacional porque se relaciona com a aposta do PT de ter um crescimento mínimo que possibilite algum nível de aumento nos gastos públicos. No entanto, tampouco com juros mais baixos seria possível afirmar que um cenário desse tipo estaria garantido ainda que fossem um fator para menor expansão do crédito e aumento de investimentos. O que está por trás desse discurso são disputas entre frações burguesas, ao mesmo tempo que Lula também irá se utilizar dessa disputa para atribuir maiores responsabilidades ao BC pelas adversidades econômicas do país. Nos governos Dilma, como parte da preparação dos projetos do PAC (Programa de Aceleração dos Crescimento), empréstimos a juros mais baixos foram oferecidos via BNDES, que em parte, visava favorecer as grandes empresas da construção civil. Foi uma política para maximizar seus lucros, ao passo que superexploravam a classe trabalhadora com condições de trabalho que promoveram enormes revoltas, como na construção das usinas em Belo Monte e Jirau.

Como já declarado durante a campanha, o governo irá apostar em aplicações privadas, ou mistas, para o aumento dos investimentos. Para isso, busca barganhar com sua política diplomática, como apresentaremos a seguir. O que está claro é que mesmo em um cenário mais otimista para os acordos internacionais a que o Brasil possa chegar, os índices de crescimento econômico dos primeiros mandatos do Lula estão longe de ser alcançados, em especial do segundo quando o país crescia em média 4,6% ao ano.

Para a aprovação do novo arcabouço fiscal, Lula contou com o apoio de Arthur Lira e da maioria do Congresso. Aqui também é possível observar significativas atualizações no que tange à governabilidade do PT e de Lula, acomodadas e reformuladas em consonância com os novos arranjos que emergiram no cenário político. No Congresso, o novo bloco parlamentar [1] expressa as composições que o governo pretende fazer. Se por um lado o PT não está diretamente envolvido, por outro o bloco ainda reúne partidos que compõem o governo como PDT, PSB e União Brasil. Uma composição que revela o movimento à direita no regime político congregando partidos importantes da coalizão governista de Lula e legendas nas quais estão figuras significativas da extrema-direita. Lira, por sua vez, apresenta-se mais enfraquecido comparativamente aos anos de gestão de Bolsonaro, em razão tanto do fim do orçamento secreto, quanto da derrota em sua contenda no Senado, quando buscava controlar a aprovação de Medidas Provisórias.

Enquanto isso, Lula trabalhou para estabelecer um novo mecanismo de emendas parlamentares (em substituição ao orçamento secreto), como forma de manter a base aliada no Congresso, mas ainda não se sabe se esse mecanismo trará bons resultados ao governo, visto que nenhuma medida significativa foi votada ainda. Muitos analistas afirmam que o adiamento da PL das Fake News se deu por debilidade nessa composição parlamentar. No momento a boa relação entre os poderes Executivo e Legislativo persiste, ainda que com muitos sinais de ruídos e tensões. Não é descartado que novas crises surjam em um período breve, pela própria heterogeneidade dos setores do Congresso com que Lula está buscando compor. No entanto, a aprovação de medidas importantes, como o arcabouço fiscal e a abertura da CPI, poderá evidenciar a real medida da força do governo em aprovar suas matérias de interesse.

As adversidades econômicas e a localização internacional do Brasil

A agenda internacional da diplomacia brasileira precisa ser inserida nesse contexto econômico, no interior das tensões internacionais. Se é verdade que Lula sempre buscou na diplomacia internacional um capital político para acumular forças na política interna, agora essa é a principal aposta frente a um cenário de baixas expectativas econômicas.

É também por isso que, logo no início do seu governo, Lula deu tanta importância para visitar os EUA e a China, uma marca distinta dos anos de Bolsonaro.Lula busca se valer do contraste em benefício próprio, sob o lema “o Brasil voltou”.

O primeiro desses movimentos foi dado com Joe Biden após maiores aproximações com o governo Democrata em torno da agenda que envolvia as eleições brasileiras e, posteriormente, o dia 8 de janeiro. Para Biden, além do tema ambiental que tem sua importância na agenda interna dos EUA, era importante se opor às movimentações de um trumpista na América Latina.

No entanto, a recepção foi no mínimo menos “calorosa” quanto Lula pretendia, e seus resultados geraram claro desconforto. Lula apostava na agenda ambiental para conseguir melhores condições e negócios com os EUA. O Fundo Amazônia era um símbolo dessas tratativas, mas que obteve resultados inicialmente pífios, para não dizer constrangedores. John Kerry, encarregado por essas tratativas, foi o responsável por anunciar os irrisórios 50 milhões de dólares para o Fundo, valor muito inferior à contribuição dada por outros países com laços menores com o Brasil, como a da Noruega (2 bilhões de euros), ou mesmo da Alemanha (200 milhões de euros).

O inverso do comedimento dos EUA foi a visita, cercada de pompa, de Lula à China. Além dos acordos e memorandos, Lula fez declarações e gestos que fizeram parte dos analistas anunciarem um maior alinhamento seu com a China. Lula fez críticas ao FMI, defendeu relações comerciais sem a mediação do dólar, visitou a gigante Huawei, que é alvo de sanções americanas, além das intenções de desenvolvimento de um projeto de supervisão da Amazônia por satélites desenvolvidos pelos dois países. Em meio a essa agenda, Lula ainda destacou a presidência de Dilma no banco dos BRICS. A sua nomeação também é um importante sinal político, justamente por ter sido alvo da operação político-jurídica da Lava-Jato, apoiada pelo Partido Democrata durante o governo Obama, que teve como resultado o impeachment e todo o processo do golpe institucional.

Na sequência da volta de Lula ao Brasil, a visita de Serguei Lavrov e as críticas mais contundentes ao papel dos EUA e Europa na guerra da Ucrânia geraram reações mais fortes do chamado mundo ocidental. Um dos sinais emitidos pelos EUA foi a visita à Argentina de sua chefe militar do Comando Sul (posto militar mais importante para a América Latina), Laura Richardson, ao mesmo tempo em que a visita de Lavrov ocorria no Brasil. Agora é Thomas-Greenfield, embaixadora dos EUA na ONU, que vem ao Brasil, sendo a primeira autoridade do gabinete do presidente Joe Biden, núcleo mais próximo do democrata, a visitar o país depois da vinda de Lavrov. Gustavo Petros, presidente da Colômbia, também foi recebido por Biden, mostrando que os EUA não pretendem desguarnecer sua atenção a uma região que sempre teve uma importância particular para sua política externa.

Lula não tardou em suavizar seu discurso, afirmando que jamais solicitará que os EUA e a Europa alterem sua postura diante da guerra, seguindo a mesma linha já adotada pelo Brasil ao expressar seu repúdio, por meio das resoluções sancionadas na ONU, que condenavam a Rússia. Posteriormente, depois de sugerir que a Ucrânia cedesse a Crimeia à Rússia, voltou atrás, ratificando que não lhes cabia determinar se Crimeia e Donbass pertenciam à Rússia ou à Ucrânia.

A tentativa inicial de Lula de criar um “clube de paz” para solucionar o conflito ucraniano revelou-se por ora frustrada devido à vasta complexidade do conflito em si. Xi Jinping, por sua vez, não sinalizou nenhum movimento para concretizar a proposta e está seguindo um caminho próprio, enquanto Lavrov optou por se valer mais das declarações de Lula contra o “Ocidente” do que apostar na proposta do “clube da paz”. Ao contrário da crise iraniana, quando Lula se dispôs a mediar em 2009, agora trata-se de um conflito no coração da Europa, que envolve disputas de grande envergadura, tornando o papel do Brasil como mediador muito mais parcial que em outros momentos.

Diferente do que foi analisado por alguns setores da imprensa como uma diplomacia errática de Lula, o jogo de barganha realizado pelo governo está fundado na posição de debilidade relativa da decadente economia capitalista brasileira no interior do sistema de Estados. Lula tem pouca margem de manobra dentro das circunstâncias de estrutural subordinação do Brasil às duas principais economias globais. A relativa “autonomia estatal” propagandeada por Lula tem por pressuposto buscar tornar-se relevante na disputa sino-estadunidense, e atender às demandas de dois senhores para tratar de conquistar a realização de determinados interesses. Dentro desse “não alinhamento automático” de Lula, base de sua política externa, existe uma maior inclinação ao bloco China-Rússia. Isso é verificável não apenas pelo contraste com a política externa de Bolsonaro (entreguismo de um governo pária ao imperialismo estadunidense) mas especialmente porque o novo governo adere à tese do “multilateralismo capitalista” encabeçado pela China. Trata-se da tradicional concepção da política externa petista, segundo a qual uma multiplicidade de dependências melhora o poder de negociação dos que não possuem poder definidor na geopolítica. Não em vão, Lula ilustrou a ideia dizendo que “é com a China que nós temos tentado equilibrar a geopolítica mundial discutindo os temas mais importantes”. Como dissemos, não haverá ruptura com Washington, e sim um novo equilíbrio nas relações, em que Pequim tem mais importância na geopolítica brasileira - o que torna o Brasil mais importante para a política dos Estados Unidos. Não foi casualidade que, após essa agenda do Lula, os EUA tenham se apressado em anunciar um novo pacote de aportes para o Fundo Amazônia, agora no valor de 500 milhões de dólares, além da visita da embaixadora norte-americana.

Longe de uma autonomia internacional, como defendem alguns setores do PT, o que essas movimentações expressam, portanto, é uma relação de dupla subordinação e dependência do Brasil, tanto aos EUA como à China, o que perpassa relações com os países europeus. Enquanto o Brasil tem relações especiais com a China, sobretudo devido às importações de commodities, a dependência tecnológica, financeira e industrial dos EUA é estrutural da economia brasileira. Essa relação de dependência estrutural dos dois países também se mostrou nos anos Bolsonaro, quando apesar da retórica mais agressiva contra a China, jamais se tenha rompido relações pela importância que tem nas exportações do agronegócio.

É um fato que a diplomacia brasileira é distinta daquela do governo anterior. Bolsonaro representou uma linha de vassalagem completa com os EUA, ao passo que Lula busca conferir ares de relativa autonomia ou “não alinhamento automático”, como defende Celso Amorim. No entanto, é importante notar que as relações crescentes entre Brasil e China também são condicionadas pela manutenção das relações de dependência com os Estados Unidos.. Uma expressão disso é que o Brasil, por ora, ainda não é signatário da Nova Rota da Seda (plano de investimentos da China em obras de infraestrutura em dezenas de países, para ampliar sua influência e acordos comerciais.) Sabedor dessas contradições, Xi Jinping não deu maior relevo ao tema por ora, apostando em aproximações comerciais e tecnológicas incrementais que incomodem Washington, pelo peso que o Brasil tem na região, e Lula como principal líder político da América Latina. Veremos permanentemente os gestos a ambos os blocos, e as boas relações com Pequim exigiram de Lula mostrar boa vontade ao bloco (cada vez com maiores fissuras) da OTAN. Nesse marco, suas boas relações com Macron, a visita que recebeu de Olaf Scholz, e a recente ida a Portugal e posteriormente à Espanha, também são úteis para querer mostrar o Brasil aberto ao mundo, colocando a Europa em particular entre aqueles com que se busca ter uma aproximação maior.

Na América Latina esse é um fator que Lula leva em consideração, porque a maior entrada de produtos e mercadorias chinesas também é um fator de preocupação para o Brasil devido a importância de suas exportações para os países vizinhos. A Argentina já é um país signatário da Nova Rota da Seda, e o Uruguai está a passos largos de estabelecer acordos comerciais por fora do Mercosul, fato que levou Lula pessoalmente a se reunir com Lacalle Pou para tentar conter o acordo, iniciativa que não teve sucesso.

É no meio fio dessa correlação de forças internacional que Lula tenta se posicionar para obter melhores acordos. Ao mesmo tempo que não busca, e não pode, romper com nenhum dos pólos de dependência e subordinação, busca tirar algum proveito próprio das disputas geopolíticas para obter melhores acordos.

Além disso, a agenda internacional de Lula objetiva trazer algum nível de estabilidade interna, principalmente para os setores da burguesia nacional. É por isso que quase um terço de sua delegação na visita à China incluía membros do agronegócio. Ele também buscou maior controle na importação de mercadorias chinesas, demanda dos setores varejistas, mas devido à repercussão social negativa, foi forçado a retroceder. Em outras palavras, a política externa de Lula também serve como base para tentar uma reconciliação com setores que apoiaram fortemente o bolsonarismo, buscando convencê-los de que seu governo pode abrir novas possibilidades de negócios internacionais.

Lula busca explorar espaços entre as potências no marco da crescente competição internacional entre EUA e China. Na América do Sul em particular, além de China e EUA há muitos capitais Europeus, no caso brasileiro em valor superior aos dois anteriores somados. Porém, esses capitais europeus não atuam de forma uníssona, alguns países tendem a uma política idêntica a dos EUA e outros às vezes a políticas mais independentes. Há muitas reflexões no marco da União Europeia sobre a importância estratégica de avançar posições na América do Sul para não ficarem espremidos entre China e EUA. Trata-se de uma região com histórico predomínio americano, que mais de uma vez já se mostrou com maiores possibilidades de disputa por outras potências. Assim, pode-se entender que há uma relativa “corrida de velocidades” na região, com diferentes potências procurando consolidar suas próprias áreas de influência.

Alterações no espectro bolsonarista e atualizações sobre sua força social e política

A correlação de forças aberta no país após o dia 8 de janeiro segue ecoando ainda que com modulações e possibilidades de mudanças, sendo que novas movimentações ocorreram a partir da operação deflagrada contra Bolsonaro no último dia 3 devido a fraude em sua carteira de vacinação, que indicam uma ofensividade maior. Naquele primeiro momento, o setor mais radicalizado e consciente da extrema-direita promoveu uma ação por fora da correlação de forças, que teve como resultado um debilitamento maior de sua força e do bonapartismo militar. De Joe Biden a Xi Jinping, a rápida e quase instantânea reação dos principais chefes de Estado do mundo não deixa margem para outras interpretações.

Os seus efeitos recaíram sobre as Forças Armadas, uma vez que os militares aceitaram os acampamentos na porta dos quartéis e promoveram um discurso dúbio em relação às movimentações dessa base, o que acabou por comprometê-los com os efeitos dessa ação. O comando do Exército foi trocado e o novo general, Tomás Ribeiro Paiva, assumiu proferindo discursos contra a deslegitimação das urnas e contra a politização das Forças Armadas. Uma declaração política que expressava essa correlação de forças, ainda que sem debilitar estruturalmente a localização dos militares no regime político, os quais seguem sendo preservados tanto pelo governo como pelo bonapartismo do Judiciário, que por ora decidiu não avançar contra generais de quatro estrelas e o Alto Comando. Também foi expressivo de uma maior defensiva do bonapartismo militar a não comemoração da data do golpe de 1964 nos quartéis, sendo vista apenas algumas expressões de pouca visibilidade em setores da reserva.

Após o 8 de janeiro, Bolsonaro teve que se manter distante do país e com uma baixa atividade política por três meses. Uma movimentação preventiva e defensiva diante de um cenário mais adverso para sua política. No entanto, isso não significa que a extrema-direita não mantenha suas reservas. O Brasil de 2023 convive com uma base social e frações burguesas que mantém uma simpatia pelo espectro bolsonarista, setor social que a extrema-direita busca reconquistar, mesmo com suas alas mais radicais debilitadas e sua força no regime político enfraquecida. Para alcançar esse objetivo, a extrema-direita depende de vários fatores, como o aumento da desilusão com o governo Lula.

Em particular, são as frações de parte do agronegócio que vêm se mostrando mais resistentes. A recente ofensiva contra o MST, que deve ser repudiada, é parte dessa operação. Após a ida de João Pedro Stédile à China, a ocupação de alguns latifúndios (em uma quantidade muito inferior aos primeiros mandatos de Lula), além de primeiras movimentações do governo que sugeriam que dirigentes do MST pudessem compor cargos no governo, a bancada ruralista articulou uma CPI para apurar supostos crimes do movimento. Como afirmou o coordenador do MST, as ocupações foram poucas e o objetivo de seus dirigentes não era “provocar a direita”, isto é, o agronegócio. Como reflexo dessas disputas, o ministro da Agricultura de Lula, Carlos Fávaro, comparou as ações do MST àquelas promovidas pela base da extrema-direita no dia 8. Mesmo assim, não participou da Agrishow (principal feira do agronegócio do país), e assistiu a Bolsonaro desfilando ao lado do governador de São Paulo Tarcísio de Freitas. O problema central é que a busca da conciliação lulista, de repactuar com frações de classe que aderiram ao bolsonarismo, ao contrário de conter a extrema-direita, sempre acaba por fortalecê-la.

Os ataques nas escolas são um sintoma desse quadro. É o caldo social gerado pela ala bolsonarista mais radicalizada que, em meio a um isolamento maior, promoveu ações de barbárie contra a escola pública e os professores, aproveitando o clima de degradação social provocado pelo conjunto das reformas. Atacaram as escolas justamente em um momento em que a educação voltava à pauta devido a enorme insatisfação contra o Novo Ensino Médio, o que levou a que o governo tivesse que adotar a medida de congelamento de sua implementação por 90 dias.

Desde o 8 de janeiro o governo aumentou o capital político de sua lua de mel, mas no atual momento começa a apresentar os primeiros sinais de tensão. Por um lado, a reabertura das discussões sobre os responsáveis por essa ação, em função da liberação das imagens, coloca tensões no regime político.

A extrema-direita tenta aproveitar a oportunidade para construir uma narrativa de que foi o governo Lula, através do general do GSI, Gonçalves Dias, quem articulou as ações do dia. A sua rápida queda, sendo o primeiro ministro do governo a cair, mostra que o tema é sensível. Nem mesmo as denúncias de corrupção envolvendo o Ministro do Turismo do União Brasil, ou a evidente relação com as milícias da ministra do Turismo provocaram a troca nos ministérios.

O governo não desejava a instalação de uma CPI sobre o dia 8, tanto para não abrir a possibilidade de novas crises com os militares, como para dar andamento a uma agenda de aprovação de sua política no Congresso. Após essa reviravolta, a CPI deve ser instalada e agora o governo busca reverter a situação e voltar o alvo para figuras bolsonaristas.

O novo escolhido para o GSI, o general Marcos Antonio Amaro dos Santos é um general 4 estrelas, era chefe do GSI no governo Dilma Rousseff, e fez parte da turma de formação de Paulo Sérgio, ministro da Defesa de Bolsonaro. São movimentos que indicam mais um sinal da busca do governo em articular uma maior pactuação com a cúpula militar, descartando a hipótese de um civil para o cargo, ou mesmo extinguir o GSI. Além disso, o novo comandante deu declarações favoráveis ao bloco da OTAN na guerra da Ucrânia, o que também pode indicar que por trás dessas movimentações estejam inseridos interesses internacionais.

Nos últimos dias está sendo aventada na imprensa a possibilidade da inelegibilidade de Bolsonaro, medida que está sendo calculada em função de suas contradições, tendo em conta que seus resultados eleitorais não foram pequenos, ainda que tenha saído derrotado. Também está em curso o julgamento daqueles que participaram do dia 8, com o próprio Bolsonaro podendo ser envolvido como mentor intelectual, o que pode abrir novas disputas políticas ainda mais duras, além da recente investigação aberta sobre a fraude no cartão de vacinação do ex-presidente. São medidas que indicam um cercamento maior de Bolsonaro, e testes na opinião pública para calcular a intensidade da investida. A resultante desses processos terá impactos muito importantes no espectro bolsonarista. Caso o regime decida ir para uma medida mais dura contra Bolsonaro, poderá se abrir uma corrida de velocidades entre aqueles que querem disputar seu eleitorado. O que mais preocupa poderosas frações opositoras de Bolsonaro no regime político é que avançar em medidas mais duras contra ele pode ter um efeito inverso. A localização de “vítima” permitiria a Bolsonaro reforçar sua retórica anti-sistema, o que lhe abriria um novo espaço de atuação. Para evitar resultados assim, as ações contra ele serão medidas e, por suposto, não serão de simples execução, podendo suscitar até mesmo divisões entre setores do próprio regime.

Em pesquisa divulgada pelo DataFolha no começo de abril, 38% consideram o governo Lula ótimo ou bom; 30% disseram ser regular; 29% falaram ser ruim ou péssimo e 3% não souberam responder. É difícil mensurar quantos desses 29% são diretamente bolsonaristas, mas é nesse setor social que a oposição de direita ao governo pretende fazer política. Também é importante ressaltar as diferenças regionais. Enquanto Lula tem a melhor avaliação entre nordestinos (53% de ótimo e bom), a pior está entre os moradores do sul (29% de aprovação). Como era de se esperar, os níveis de aprovação são os menores desde a redemocratização, ficando atrás somente de Bolsonaro. Uma expressão concreta da dificuldade de se conseguir alcançar uma nova hegemonia em um país cindido por uma crise orgânica que segue sem resolução, apesar das tentativas de re-legitimação após o dia 8.

Essas reservas bolsonaristas são, hoje, alvo de disputas entre setores, entre os quais estão aqueles que querem promover uma variante mais controlada, como Tarcísio, Zema e até mesmo Michele Bolsonaro – ainda que não possamos descartar que, em uma situação de maior polarização, esses atores possam modular sua política. Moro pareceu querer alçar voo próprio novamente, a partir das denúncias de que estaria sendo planejado um ataque contra ele promovido pelo crime organizado. No entanto, tem muitos adversários no regime e sofreu um novo desgaste com as declarações ofensivas contra Gilmar Mendes [2] . No Judiciário são medidas que parecem indicar que segue a política de enfraquecimento das alas lava-jatistas, ao mesmo tempo que busca apresentar resultados com os processos contra quem participou do dia 8. A indicação do novo nome de Lula ao STF, com a possibilidade de ser Cristiano Zanin, seu advogado na Lava Jato, também será um teste nesse sentido, demonstrando o grau de re-aproximação do Judiciário com o próprio PT.

Um cenário estratégico repleto de contradições e perspectivas de instabilidade

Como elaboramos às vésperas da eleição, Lula não encontraria as mesmas condições para a reconstituição de uma “hegemonia às avessas”, tal como elaborou criticamente o sociólogo Francisco de Oliveira. Segundo este, parte importante do sucesso do lulismo se devia ao fato de que, na aparência, não eram mais os dominados quem consentiam a sua própria exploração, mas os dominantes que aceitavam ser politicamente conduzidos por um partido e uma liderança oriunda de outra classe. Em outras palavras, mesmo garantindo a continuidade do essencial da política neoliberal, agora era um partido que se dizia “dos trabalhadores” que estava no controle do leme do país. Para o bom funcionamento dessa engrenagem, foram necessárias concessões sociais, com objetivos claros de preservação da arquitetura do capitalismo brasileiro. Atualmente, a margem para fazer concessões é muito estreita e, além disso, é difícil vender a ideia de que elas estão sendo ampliadas. Pelo contrário, Lula está começando a frustrar as primeiras expectativas de melhoria ao garantir a permanência das reformas do ensino médio, trabalhista e previdenciária, além de propor um novo arcabouço fiscal.

Com sua política fiscal Lula vem, por ora, agradando setores do mercado financeiro que inclusive começam a enxergar em Haddad um aliado, o que talvez indique uma preparação estratégica do PT na construção de uma figura para encabeçar a sucessão de Lula. Uma expressão do curso à direita desde o golpe institucional, com o próprio PT assumindo um discurso e uma prática mais orgânica ao capital financeiro. A resistência do governo em ter alguma postura mais efetiva contra o Novo Ensino Médio também pode estar relacionada com esse cálculo. Dentro da Frente Ampla, os setores empresariais da educação sempre tiveram muito peso, e seria um sinal de maior afastamento uma medida de mais questionamento à reforma.

Por outra via, busca através da política externa algum nível de investimento para, por um lado, promover algum nível de melhora econômica que, mesmo que parcial, não leve a problemas sociais mais graves como o aumento do desemprego ou disparada da inflação. Junto com isso, por outro, busca se reconciliar com frações burguesas e do regime que foram mais solidamente do bloco bolsonarista, em especial o agronegócio, o setor varejista e a cúpula militar. Por isso a grande delegação do agronegócio na viagem à China, a tentativa de controle de importação de mercadorias e a busca inicial de preservação da Alta Cúpula em relação aos eventos do dia 8 de janeiro, como já desenvolvemos.

Se, nos primeiros anos de lulismo, a conciliação de classes teve como subproduto o fortalecimento de setores que depois migraram para o bolsonarismo, como o próprio agronegócio, agora Lula busca conciliar justamente com esse setor da burguesia, que já demonstrou que não teme por se radicalizar para a implementação de seu programa econômico. Também há as primeiras mostras de que esse setor não irá aceitar se conciliar com outros que consideram inimigos mortais, como o próprio MST, que agora pode ter uma CPI aberta no Congresso por pressão da bancada ruralista.

Contudo, a situação de carestia das condições de vida, de alto endividamento das famílias e das baixas perspectivas de um crescimento do PIB qualitativo, colocam entraves objetivos para que o governo possa repaginar as conquistas provenientes dos anos de lulismo.

A médio e longo prazo essa será uma tensão que pode se colocar com mais força. O plano de investimentos de Lula será pela via de PPPs, isto é, privatizações, como já se pode prever de seu novo arcabouço fiscal. Para garantir novos empreendimentos privados, mesmo a reversão de privatizações em alguns setores, como na Eletrobras, já estão publicamente descartadas [3]. Parte dessas parcerias e dos investimentos estrangeiros visam consolidar as privatizações, como o anúncio de investimentos do fundo árabe Mubadala na refinaria privatizada da Bahia. Não é distante na memória de Lula e de seus aliados que os primeiros a romperem com mais força a pax lulista (que foi um resultado não só do cenário econômico, mas de medidas de cooptação e contenção da luta de classes através de mecanismos de passivização) foram os operários precarizados das grandes obras do PAC, que incendiaram os maiores canteiros do país contra as péssimas condições de trabalho. No mesmo caminho, há um consenso burguês em torno da manutenção do Bolsa Família, que já durante a pandemia, e ainda nos tempos atuais, tem se mostrado importante diante da crescente miséria social do país.

Diversos setores da intelectualidade petista, em especial André Singer, vêm demonstrando um forte receio com camadas intermediárias compostas por setores de trabalhadores com mais estabilidade e setores mais baixos das classes médias, com faixa salarial de 2 a 5 salários mínimos. Essa foi uma base social da qual Bolsonaro conseguiu melhores resultados eleitorais se comparado com a faixa de até 2 salários mínimos, e que o PT teme que possa aumentar seu nível de crítica ao governo.

Até mesmo defensores das política neoliberais, como o cientista político Bolívar Lamounier, mostram preocupação com o que resultaria no que ele denomina proletarização da classe média, em referência à diminuição de direitos e serviços no comparativo com os anos anteriores, diz ele em tom de advertência: “[...] temos como frear a volta do paraíso e a descida aos infernos? Numa economia de larga escala e, como sempre, incapazes de escolher entre contas públicas equilibradas e inflação galopante, essa parece ser a questão que nos espreita na esquina”.

É dirigida retoricamente a esse setor as recentes medidas de alteração da faixa de isenção do imposto de renda, mas a alteração é ainda mínima no salário líquido da classe média.

Nesse contexto o PSOL avança cada vez mais para ser um partido governista, diminuindo a margem de sua política dúbia que buscava afirmar que apoiaria apenas as medidas mais à esquerda. Fazer parte da composição de um governo que articula e propõe um novo arcabouço fiscal - chegando a se apresentar, junto a partidos burgueses, declarando que “nos dispomos a debater as novas regras fiscais encaminhadas pelo governo ao Congresso Nacional, de forma a aperfeiçoá-las às necessidades do programa eleito nas urnas e à reconstrução do país”, ou seja, uma proposta de “aperfeiçoamento” de uma política neoliberal para garantir a fraude da dívida pública com os banqueiros - é a pá de cal nesse discurso, de um partido que está em um ministério e tem entre seus deputados o vice-líder do governo na Câmara. Mesmo frente a um ataque neoliberal como esse, o PSOL articula seu discurso não em função do objetivo de evitar a piora da vida da classe trabalhadora e das massas, mas sim em função de fortalecer o governo, e evitar que a extrema direita capitalize a frustração das massas com as consequências desse ataque. A corrente Resistência, depois de ponderar que o arcabouço fiscal “é um mecanismo mais inteligente e mais flexível que o estúpido teto de gastos” sintetiza esse ângulo (presente em todos os materiais do partido e de suas correntes) de apontar “os limites” da proposta em termos aconselhar o governo sobre como fortalecer o apoio e as ilusões das massas nele: “Vale, portanto, o alerta: o apoio da classe trabalhadora (imensa maioria da população) a Lula ainda é frágil. Bolsonaro está de volta ao país. Se o governo errar de prioridade, pode colocar tudo a perder."

A crise orgânica, isto é, a crise de dominação burguesa, segue vigente no Brasil de Lula. Ainda que por efeito reativo dos anos de Bolsonaro, por ora ela segue em estado latente, devido a três fatores fundamentais: uma maior defensiva e isolamento dos setores mais radicalizados da extrema-direita, maior unidade do regime em torno de mais estabilização e situação social de maior contenção devido ao cenário econômico e programas sociais. No entanto, o cenário estratégico do país não permite vislumbrar uma situação de estabilidade estrutural, que pode se romper por fatores econômicos, políticos ou sociais. Tampouco as bases para uma re-edição do lulismo – consumo, crédito e expansão econômica – colocam-se como possibilidade para dar uma resposta estrutural aos problemas do país.

Nesse quadro, consideramos que estamos entrando em uma situação transitória, de reacionária para uma com mais sinais contraditórios, com expressões à esquerda e à direita, com o assentamento destes elementos transitórios que pontuamos, mas também com a permanência de traços reacionários da situação anterior. O ímpeto burguês já não está mais com a mesma intensidade que resultou na aprovação de ataques de grande proporção, e necessita de uma política econômica que preserve aquilo que denominamos o legado do golpe institucional, isto é, o conjunto de contrarreformas já aprovadas. Bolsonaro, apesar de encarnar esse programa econômico, promoveu permanentes instabilidades políticas, algo a que o novo governo Lula busca dar uma resposta no polo simétrico oposto. Ao mesmo tempo, a combinação de algumas medidas que sinalizem para o seu eleitorado de esquerda com medidas que agradam ao capital financeiro, é a fórmula com que a maior parte dos setores econômicos estão comprometidos. Caso esse plano entre em curto-circuito, não estão descartadas maiores crises no regime, com a disputa de outras variantes políticas, entre elas setores oriundos do bolsonarismo. Devido à manutenção das contrarreformas e, por ora, um cenário de contenção na luta de classes, há uma permanência de traços reacionários na situação que conflitam com o que predomina, mas que cada vez mais vêm se combinando com questionamentos e tensões pela esquerda que fazem o governo ter que tomar medidas como a suspensão da implementação do Novo Ensino Médio. Como subproduto disso, uma subjetividade mais aberta a debater como conformar uma esquerda independente do governo, que construa um programa de enfrentamento contra as reformas, pode estar começando a se expressar em alguns setores, como na juventude universitária.

No interior desse quadro irá se recolocar, cada vez com mais força, o debate sobre as Jornadas de Junho, aos dez anos de sua eclosão. Passado esse período, as demandas motoras que originaram o estopim social, como transporte, saúde e educação públicas, estão muito distantes de terem sido atendidas. Ao contrário, o conjunto de ataques e contrarreformas por que o país passou nos últimos anos aprofundaram a situação de precarização do conjunto dos serviços públicos, com um avanço neoliberal em diversos níveis. Os casos de trabalho análogo a escravidão são apenas um dos retratos do país nos últimos anos. O grotesco chicoteamento de um trabalhador negro de aplicativo, os ataques contra os povos indígenas, a ofensiva contra as escolas são outras expressões do grau de violência burguesa contra a vida das maiorias populares, violência essa que é a expressão da decadência e degeneração capitalista que apresenta fortes sinais de decomposição social.

Junho de 2013 foi a expressão do rompimento das expectativas daqueles que consideravam que sua vida poderia melhorar gradativamente. Em outras palavras, representou um choque de massas, através da luta de classes, com as ilusões gradualistas da conciliação de classes e sua pax social quando os efeitos da crise econômica chegaram ao Brasil. De lá pra cá, setores da esquerda que tentaram reivindicar as mobilizações de Junho agora estão diretamente dentro do governo (como o PSOL) e uma parte deles aderiu à tese do PT de que Junho teria sido uma articulação conspiratória da extrema-direita e dos EUA para derrubar Dilma, buscando apagar da história o papel do PT na repressão àquele movimento e o fato de que, logo após sua reeleição, foi Dilma quem começou a aplicar uma agenda de ajustes com seus ministro neoliberal Joaquim Levy.

A recente greve do metrô de São Paulo, além de outras greves parciais e com motivação econômica, somadas ao rechaço ao Novo Ensino Médio e à indisposição ao novo arcabouço fiscal, mostram que também há tensões à esquerda a partir de setores da vanguarda. Ainda que sejam um pequeno setor, e sem precisão do seu valor exato, são expressões mais críticas que começam aparecer de maneira inicial e confusa. As quebras de expectativas podem começar a se dar agora que o governo precisa “governar de fato”, aprovando ou mantendo medidas que se chocam contra essas expectativas gradualistas de melhora social. A afirmação de Lula de que não irá revogar o Novo Ensino Médio e a reforma trabalhista, e o novo arcabouço Fiscal, por ora são flancos débeis do governo com sua base social mais crítica.

Ao mesmo tempo, o governo segue buscando anunciar medidas que também o apresentem como promotor de avanços sociais. As mais recentes delas foram o anúncio do pagamento do piso da enfermagem, a demarcação de terras indígenas, entre outras propostas como a de equiparação salarial entre homens e mulheres, que ainda que esteja distante de resolver esse problema estrutural do país, possui força para projetar uma imagem que é fundamental para a Frente Ampla.

Sobre ela, as características de sua composição incluem setores do capital financeiro, passando pelo próprio PT e chegando ao PSOL, ao mesmo tempo que também expressam elementos de uma frente popular, como segue se mostrando na realidade. Ao mesmo tempo em que a Faria Lima comemora a nova regra fiscal, as grandes burocracias sindicais estão diante da possibilidade do retorno da contribuição assistencial aos sindicatos, em processo avançado no STF. Isso porque ela abre a possibilidade de que a contribuição seja recolhida também entre não sindicalizados, medida que supre, ao menos parcialmente, o tombo de arrecadação que os sindicatos levaram após o fim do imposto sindical. É uma expressão da nova localização dos sindicatos no regime político, que têm na figura de Luiz Marinho da CUT uma representação no governo. Em um país cercado de precarização do trabalho, o refortalecimento das burocracias sindicais é uma medida preventiva para reforçar as engrenagens que possam conter potenciais descontentamentos sociais.

Do ponto de vista das concessões que o governo busca fazer para agradar sua base de esquerda, é importante destacar que todas elas estão no limite daquilo que ele considera como possíveis, dentro de sua estratégia de conciliação de classes. Sobre o salário mínimo, Lula prometeu um crescimento real, mas pretende atrelar ele ao PIB. O aumento este ano foi de somente 18 reais. Considerando as margens estreitas de projeção do crescimento econômico, não haverá um aumento substancial que permita melhorar qualitativamente as condições de vida de setores amplos da classe trabalhadora. O recente reajuste concedido aos servidores federais no valor de 9%, ocorreu em um contexto no qual o salários estavam congelados há 6 anos, ou seja, o reajuste fica muito longe de cobrir as perdas, que há denúncias de que chegam a 60%.

No que diz respeito à demarcação das terras indígenas, o governo busca regulamentar aquelas que não criem grandes enfrentamentos com o agronegócio. Como afirmou o presidente da Frente Parlamentar da Agropecuária em relação às terras que seriam homologadas [...] “são áreas antigas e que estão praticamente consolidadas, não geram tanta preocupação”. Mesmo a operação de guerra contra os garimpeiros que ocupavam os territórios dos Yanomami agora já começam a mostrar seus primeiros sinais de contradição. Após um primeiro momento de ação mais concentrada do governo, voltaram a ocorrer ataques contra indígenas promovidos por garimpeiros, entre os quais resultou em um Yanomami morto e outros dois feridos. Ainda sobre outros temas, como o projeto de lei que supostamente igualaria o salário entre homens e mulheres, para além do fato dele não considerar o trabalho terceirizado e precarizado (que é o que submete milhões de mulheres, e particularmente, mulheres negras, às piores condições de trabalho), ele sequer ainda entrou em tramitação no Congresso. Em suma, ainda que o contraste com o governo Bolsonaro possa provocar maiores dimensões nessas iniciativas, elas são marcadamente articuladas dentro de margens estreitas, a partir do cálculo de não romper, ou criar maiores tensões, com poderosas frações burguesas.

Tanto setores precarizados da população quanto os tradicionais do movimento operário têm a possibilidade de causar mudanças no panorama estratégico do país, ainda que isso não seja o que está se expressando no cenário imediato. A retomada de greves salariais, como analisamos nesse artigo, também pode ser um fator nesse contexto, o que pode representar uma recomposição da subjetividade desses setores. Por sua vez, a juventude, secundarista e universitária, tem dados iniciais demonstrações mais críticas à política do governo. Como vemos em todo o mundo – desde a heróica luta dos povos indígenas e trabalhadores contra o golpe no Peru, até a histórica luta de classes na França, que é o epicentro da luta internacionalmente – grandes erupções de massa podem ocorrer e são um fator fundamental na equação do equilíbrio capitalista, que está cada vez mais precário e instável internacionalmente. Do mesmo modo, experiências iniciais e localizadas também podem começar a ocorrer e criar um terreno fecundo para o surgimento de uma massa crítica ao governo, precedendo mudanças de maior envergadura. As expectativas de que o novo governo poderia trazer uma melhora substancial nas condições de vida começam a entrar em colisão com a prática política de um governo em exercício, que agora começa implementar seu programa de fato.

É um grande tema estratégico considerar a possibilidade da classe trabalhadora e de setores oprimidos colocarem-se na cena política. Como demonstramos, por ora a situação está controlada, o que na conjuntura confere mais estabilidade ao governo. Mas essas não são perspectivas estruturais do país. Do ponto de vista do regime, é a primeira vez que um governo do PT não conta com setores de oposição de esquerda, mesmo que institucionais, com a localização do PSOL sendo a principal expressão disso. Por outro lado, isso reatualiza as hipóteses para a emergência de uma organização revolucionária, que tenha como princípio a independência de classes e do próprio governo. Diferente do pensamento fatalista, que só considera a correlação de forças pela situação atual, é preciso analisar o cenário estratégico do país. A conciliação lulista é cada vez mais estreita, e como já demonstrado pela história, termina por fortalecer setores da direita liberal ou da extrema-direita. As conclusões dessa reflexão, as quais apresentamos algumas nesse artigo, estão em função de oferecer fundamentos analíticos, programáticos, políticos e estratégicos para levantar a necessidade de uma alternativa política que enfrente o conjunto das reformas e privatizações.


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FOOTNOTES

[1Ele é integrado por nove partidos, que somam 173, composto por União Brasil (59), PP (49), Federação PSDB-Cidadania (18), PDT (17), PSB (14), Avante (7), Solidariedade (5) e Patriota (4).

[2Além do retorno das denúncias de Tacla Duran contra Moro que está sendo acusado de chantagear financeiramente os denunciados com a ameaça de prisão preventiva.

[3O ministro de Minas e Energia, Alexandre Silveira, disse que a venda da Eletrobras está consolidada e que isso não será revertido
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Danilo Paris

Editor de política nacional e professor de Sociologia
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