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Da relativa exceção à regra: a crise capitalista e o PL dos apps como legalização do trabalho uberizado

Weckson Vinicius

Da relativa exceção à regra: a crise capitalista e o PL dos apps como legalização do trabalho uberizado

Weckson Vinicius

A uberização possui agora uma carapuça que legaliza a ultra exploração: a tipificação legal de “trabalhador autônomo por plataforma”. Após generalizar a terceirização do trabalho em seus governos, o PT, com a configuração atual da Frente Ampla Lula-Alckmin, será o responsável pela institucionalização da Uberização, aprofundando a precarização do trabalho e todos os seus componentes de opressão racial e sexual.

O governo Lula-Alckmin assinou na segunda-feira (4) um Projeto de Lei para regulamentar o trabalho em aplicativos de transporte como Uber e 99. O Projeto passará pelo Congresso Nacional antes de entrar em vigor.

O “PL da Uberização”, como ficou conhecido, institui um novo segmento profissional que define a relação entre o trabalhador e a empresa como um regime sem vínculo empregatício, ou seja, o status que o trabalhador receberá será de um “trabalhador autônomo por plataforma” e a empresa de mera fornecedora da plataforma. Com isso, o PL traz os seguintes pontos:

- Estipula a quantidade máxima de horas trabalhadas não podendo passar de 12h diárias, não entrando neste cálculo o tempo de espera entre uma corrida e outra.

  •  Define uma remuneração de R$ 32,10 por hora efetivamente trabalhada, ou seja, não remunera o “tempo logado” como um todo.
  •  Prevê um benefício previdenciário, sendo 7,5% bancado pelos próprios trabalhadores a partir de seu salário e 20% pelas plataformas, em cima do valor mínimo.
  •  Propõe uma relação sem qualquer caráter de exclusividade entre a plataforma e o trabalhador, ou seja, podendo o motorista trabalhar para mais de uma plataforma.
  • Para entender o que está em jogo com esse Projeto de Lei é preciso entender que o melhor cenário para os empresários e capitalistas é desenvolver seus “negócios” em um país no qual se permitam regimes de trabalho o mais precários possíveis, para que seus lucros não sejam afetados por nenhum tipo de obrigatoriedade trabalhista. Não à toa as empresas buscam de toda forma meios para burlar o código trabalhista e batalham para que não sejam reconhecidos nenhum vínculo de trabalho entre suas empresas e os trabalhadores.

    O que esse Projeto de Lei faz é justamente fertilizar esse terreno, legalizando o que antes era ilegal, criando uma legislação que institucionaliza o trabalho uberizado, inclusive abrindo margem e contrapartida para uma generalização desse tipo de relação de trabalho em todas as categorias e profissões.

    Para entender melhor esse movimento, vou me deter brevemente sobre o surgimento do fenômeno da uberização no contexto da crise econômica internacional, a postura dos governos capitalistas e como chegamos até aqui.

    “Acumulação flexível” é a palavra de ordem dos capitalistas no mundo todo

    Desde a deflagração da crise internacional de 2008, os capitalistas buscam desenvolver e aprimorar novos métodos para minimamente buscar recuperar os índices de acumulação de seus lucros que decaíram enormemente, inaugurando assim uma nova fase na disputa entre o capital e o trabalho.

    Com isso, uma nova configuração do mundo do trabalho começou a ser gestada, partindo da necessidade dos capitalistas de darem uma resposta à crise, aumentando a produção sem aumentar o número de trabalhadores e diminuindo os custos destes, e buscando extrair lucros de todos os tipos de atividade, principalmente a partir da introdução de novas tecnologias que possibilitaram ampliar o controle dos trabalhadores e as atividades informais de todo tipo, ou seja, uma resposta cuja premissa era uma só: que os trabalhadores pagassem a conta da crise que os próprios capitalistas criaram.

    Em diversos governos do mundo todo se iniciou uma batalha, não sem resistência e luta, pela implantação de novas legislações que buscavam a chamada austeridade fiscal, que nada mais é do que reformas no sistema de leis do país buscando a diminuição de direitos trabalhistas e previdenciários dos trabalhadores para destinar os recursos do país cada vez mais para a dívida pública, falando de uma forma mais clara, para financiar os bancos.

    Neste contexto, começa a se configurar uma reestruturação no sistema produtivo capitalista, com a explosão de novas tecnologias de informação, inteligência artificial, plataformas digitais, moldando novas formas de relação de trabalho.

    A terceirização - um processo anterior à crise de 2008, onde empresas especializadas passam a oferecer serviços para outra empresa, pagando salários mais baixos aos trabalhadores e com os direitos reduzidos - começa a se generalizar, sendo implementada em atividades-fim e não mais apenas nos segmentos de limpeza, segurança e transporte, considerados como atividades-meio; e também explodem as plataformas digitais que atuam na parte de serviços, fenômeno que ficará conhecido como uberização.

    A uberização se insere e, ao mesmo tempo, configura um contexto em que o professor Ricardo Antunes define como a nova era de precarização estrutural do trabalho. Como características dessa “nova era”, Antunes “desenha” o seguinte quadro:

    - A erosão do trabalho contratado e regulamentado, dominante no século XX, e sua substituição pelas diversas formas de trabalho atípico, precarizado e voluntário;

  •  a criação de “falsas” cooperativas, visando dilapidar ainda mais as condições de remuneração dos trabalhadores, solapando os seus direitos e aumentando os níveis de exploração da sua força de trabalho;
  •  o “empreendedorismo”, que cada vez mais se configura como forma oculta de trabalho assalariado, fazendo proliferar as distintas formas de flexibilização salarial, de horário, funcional ou organizativa;
  •  a degradação ainda mais intensa do trabalho imigrante em escala global.

    É nesse quadro que os capitalistas globais estão exigindo o desmonte da legislação social protetora do trabalho, ampliando a destruição dos direitos sociais que foram arduamente conquistados pela classe trabalhadora, desde os primórdios da Revolução Industrial e, especialmente, após 1930, quando se toma o exemplo brasileiro [1].

  • A acumulação flexível a qual nos referimos significa, portanto, o afrouxamento das leis de proteção aos trabalhadores para assim combinar as novas tecnologias com regimes de trabalho tão precários que remontam aos séculos passados, permitindo dessa forma a expansão dos lucros capitalistas a partir do aumento das jornadas de trabalho e a atomização dos trabalhadores, dificultando sua organização e aumentando a competição desenfreada, se aproveitando do nível de desemprego exorbitante.

    [...] jornadas de trabalho extenuantes, frequentemente sem folga semanal, salários reduzidos; demissões sumárias e sem qualquer explicação; não custeamento da compra ou locação de veículos, motocicletas, bicicletas, celulares, internet, dentre tantas outras aberrações que se encontram no trabalho uberizado, no qual exploração/espoliação/expropriação se mesclam e se intensificam. Não é por outro motivo que [...] estamos vivenciando a pandemia da uberização [2].

    Como uma tendência internacional do capitalismo, essa reestruturação do trabalho se deu aqui no Brasil com um papel determinante dos governos do PT na sua criação e implementação.

    A conciliação de classes e a precarização do trabalho no Brasil

    Existe uma propaganda bastante difundida de que nos governos do PT houve um avanço no número de trabalhadores formais. Em um dos artigos do livro citado anteriormente, Icebergs à deriva, os autores apontam que “o avanço da formalização e a consequente redução da taxa de informalidade foi provavelmente um dos fenômenos mais surpreendentes daquele período”.

    Confesso que a única surpresa que me desperta é como ainda hoje se reproduz uma ideia de avanço dos direitos no mundo do trabalho durante os governos do PT, sem falar que, por exemplo, o aumento dessa “formalidade” se deu com um aumento exponencial do fenômeno da terceirização no Brasil, passando de 4 milhões para absurdos 12 milhões de trabalhadores terceirizados [3]. Carteiras e mais carteiras assinadas com a marca da precarização do trabalho.

    Em um estudo realizado pelo DIEESE em 2011, os setores considerados “tipicamente terceirizados” correspondiam a 25,5% dos empregos formais no Brasil, sendo sua remuneração 27,1% menor do que a dos demais empregados formalizados. No que concerne à jornada de trabalho, os terceirizados trabalham em média três horas a mais e o seu tempo de permanência no emprego é 55,5% menor do que o dos demais empregados. Sua taxa de rotatividade/turnover é de 44,9%, enquanto entre os contratados não terceirizados é de 22% [4].

    A política de conciliação de classes dos governos do PT também abriu espaço e fortaleceu determinados atores do regime que foram posteriormente responsáveis pela deflagração do golpe institucional de 2016, como o setor do agronegócio, com o consequente aumento dos contratos precários e sazonais de trabalho, as igrejas evangélicas, a polícia federal e o STF.

    O golpe institucional foi deflagrado justamente para aprofundar e fazer com que a carne da classe trabalhadora fosse cortada mais profundamente, aprovando como vimos a Reforma Trabalhista e da Previdência, a lei da terceirização e a terceirização irrestrita.

    Anos depois, Lula foi reabilitado depois de ser preso político do Regime do Golpe, governando de novo em uma chapa que busca a reedição de uma política de conciliação de classes, o que nós viemos chamando de “lulismo senil em um regime político degradado” [5], tendo como vice de seu governo o arauto da burguesia paulista Geraldo Alckmin. Neste governo não se fala em revogação das reformas neoliberais que foram feitas no governo Temer e Bolsonaro, que aprofundaram o regime de flexibilização do trabalho. Pelo contrário, além de conciliar com os mesmos setores e partidos que foram pilares do Golpe Institucional, aprova medidas como o Arcabouço Fiscal de Fernando Haddad, que dá continuidade à política de congelamento de gastos do governo Bolsonaro.

    Agora, a regulamentação do trabalho pelos aplicativos, como o governo está denominando, vai fazer o que nem mesmo Bolsonaro fez: codificar as relações de ultra exploração mantidas pelas empresas multinacionais de plataforma, em termos claros, a legalização da uberização.

    “Pá de cal sobre o que ainda resta da rede de proteção jurídica trabalhista no Brasil”

    Como definiu Iuri Tonelo em vídeo para o instagram do Esquerda Diário [6], essa regulamentação significará uma tragédia para o mundo do trabalho.

    O regime de trabalho de 12 horas como “máximo”, a remuneração por hora efetivamente trabalhada, a legalização da punição dos aplicativos aos trabalhadores, a manutenção do sistema arbitrário de avaliações, o controle dos trabalhadores em tempo real, tudo isso significa um gigantesco retrocesso aos direitos conquistados historicamente pelos trabalhadores.

    O nível de desemprego, de degradação e precarização do trabalho promove um desespero cada vez maior aos trabalhadores em busca de um meio de ganhar o pão de cada dia.

    Segundo o IBGE, 7 em cada 10 empregos no Brasil são gerados por micro e pequenas empresas, sendo que 80% destas fecham antes de 1 ano de vida. Os empregos no Brasil não duram, em média, mais que 2 anos [7]. A taxa de rotatividade dos empregos no Brasil é de 50%. Em 2023, por exemplo, 23.157.182 pessoas foram integradas em uma relação de emprego, e no mesmo período 21.774.214 pessoas foram demitidas ou pediram demissão [8]. Hoje, ¼ dos trabalhadores formais são terceirizados [9].

    Em uma cena do filme Eu, Daniel Blake do diretor Ken Loach, o amigo do personagem principal reclama que apesar de ter ficado muitas horas à disposição da empresa, só havia trabalhado efetivamente por 45 minutos descarregando um caminhão. Uma alegoria emblemática do que todos os trabalhadores de aplicativo vivem, e um sonho de consumo para os capitalistas. Afinal, o próprio Marx falava, a remuneração por peça, ou seja, a remuneração que não é por tempo trabalhado mas por mercadoria produzida, é a forma que mais fornece lucro aos capitalistas.

    O sistema irracional capitalista, ao invés de promover, por exemplo, a diminuição das horas de trabalho e a distribuição dessas horas para os trabalhadores desempregados sem diminuição de seus salários, faz justamente o contrário, intensifica a precarização do trabalho, intensifica a jornada de trabalho e arrocha a média salarial, para aumentar seus lucros às custas da vida dos trabalhadores.

    Através de sua página no instagram [10], horas antes de Lula assinar o PL, o professor de direito do trabalho da USP, Jorge Souto Maior, afirmou que “ao que tudo indica, pois o teor ainda não foi inteiramente divulgado, [o PL] representa a pá de cal sobre o que ainda resta da rede de proteção jurídica trabalhista no Brasil, o que, sendo confirmado, significará uma inequívoca demonstração do propósito do governo de manter aliança com os mesmos interesses que conduziram o golpe político de 2016”.

    Esse PL, se efetivado em lei, poderá ser utilizado ainda para uberizar cada vez mais todas as categorias e profissões, pois criará um novo status jurídico para o trabalhador, o de trabalhador autônomo por plataforma. O que impedirá, por exemplo, a intensificação de criação de plataformas para “professores autônomos de plataforma”?

    O que o governo de Lula-Alckmin está fazendo é um desejo antigo e explícito das empresas ditas de “plataforma”. Em matéria do The Intercept [11] publicada em setembro de 2022, foi divulgada uma operação realizada pela iFood visando a criação e institucionalização de uma nova categoria de trabalho, onde a empresa redigiu diretamente um Projeto de Lei e enviou por meio de uma deputada, Luiza Canziane (PSD), que liderava à época a “bancada do like”, uma frente parlamentar criada para representar empresas como a Google e iFood.

    Assim como o PL de Lula, o do iFood também versava apenas sobre o direito previdenciário e buscava legitimar a ausência de relação empregatícia entre Aplicativo e trabalhador.

    Por uma grande campanha contra a precarização e a terceirização do trabalho

    Presenciamos recentemente um dos processos mais efusivos que aconteceram durante a pandemia, onde não apenas o trabalho de plataforma de aplicativos explodiu, como também a indignação dos entregadores se incendiou na mesma medida.

    Os entregadores protagonizaram o Breque dos Apps e mostraram que sem eles não existem uber, nem 99, nem iFood, nem Rappi, nem entregas. Pararam grandes centros urbanos reivindicando melhores condições de trabalho e direitos. Foram capas de jornais pelo mundo inteiro. Em cima das motos e bicicletas, protestaram contra as ações autoritárias e exploradoras das empresas. Mostraram a força que têm quando se organizam.

    Se apoiando na força que os trabalhadores possuem, é preciso combater esse PL de regulamentação da uberização, com uma grande campanha contra a precarização e a terceirização do trabalho, construindo várias atividades nos locais de trabalho, nas universidades, em todo o Brasil, para que todos os trabalhadores de aplicativo possam ter garantidos os seus direitos e tenham seu vínculo empregatício reconhecido pela legislação.

    Para isso ser possível é preciso que as direções dos trabalhadores das grandes centrais sindicais atuem de fato em favor dos trabalhadores, mobilizando e promovendo espaços de autoorganização para os trabalhadores decidirem. É preciso que as centrais rompam com o projeto de colaboração e integração com o governo de conciliação de classes Lula-Alckmin. As direções reformistas atuais das centrais, o PT e o PCdoB, tiveram um papel chave também na formulação desse Projeto de Lei em voga.

    É lamentável também o papel que cumpre o PSOL, com um silêncio completo da grande maioria do partido, ignorando o ataque histórico, e quando uma de suas correntes se pronuncia, como é o caso da Resistência, é para comemorar a aprovação do PL, dizendo que “para quem não tinha nada… são pequenos avanços”, uma estocada de cinismo em toda a classe trabalhadora que agora verá sua retirada de direitos ser legalizada. O PSOL cumpre um papel de cobrir pela esquerda ataques deste governo de frente ampla e é gráfico ver que este partido se soma à própria empresa UBER, que também elogiou o PL chamando de “importante marco”, escancarando que socialismo é palavra morta em seu nome.

    Somente erguendo uma campanha como tal, promovendo a unidade de toda a classe trabalhadora, entre os trabalhadores empregados e desempregados, efetivos e terceirizados, homens e mulheres, negros e brancos, LGBTQIA+, somente assim será possível formar uma rocha intransponível de combate contra os capitalistas que querem descarregar a crise nas costas dos trabalhadores. É com esse objetivo que impulsionamos o Manifesto contra a Terceirização e a Precarização, junto a intelectuais, juristas, sindicalistas e personalidades, contando com mais de 5 mil assinaturas, articulado por Jorge Luiz Souto Maior, Ricardo Antunes, Diana Assunção, entre outros, e fazemos o chamado a que todes aqueles que querem batalhar contra a precarização da vida e do trabalho, fortaleçam esse movimento.


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    FOOTNOTES

    [1Ricardo Antunes, O privilégio da servidão: o novo proletariado de serviços na era digital (2ª ed., São Paulo, Boitempo, 2018).

    [2Org. Ricardo Antunes, Icebergs à deriva: o trabalho nas plataformas digitais (1ª ed., São Paulo, Boitempo, 2023).

    [3Conf. http://sindpdpr.org.br/noticia/entre-1995-e-2005-um-cada-tres-empregos-criados-era-terceirizado e conf. CUT-Dieese, Terceirização e desenvolvimento: uma conta que não fecha: dossiê acerca do impacto da terceirização sobre os trabalhadores e propostas para garantir a igualdade de direitos, s/1, set. 2011; disponível em https://www.cut.org.br/acao/dossie-terceirizacao-e-desenvolvimento-uma-conta-que-nao-fecha-7974

    [4Conf. CUT-Dieese, Terceirização e desenvolvimento: uma conta que não fecha: dossiê acerca do impacto da terceirização sobre os trabalhadores e propostas para garantir a igualdade de direitos, s/1, set. 2011; disponível em https://www.cut.org.br/acao/dossie-terceirizacao-e-desenvolvimento-uma-conta-que-nao-fecha-7974

    [5Conf. Lulismo senil em um regime político degradado. Disponível em https://www.esquerdadiario.com.br/Lulismo-senil-em-um-regime-politico-degradado.

    Weckson Vinicius

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