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USP | Estatuto de Conformidade de Condutas da USP: novo regimento para legitimar velhas práticas

O atual Regimento Geral da Universidade de São Paulo, que trata da organização geral da universidade e suas estruturas de poder é descendente direto da ditadura militar. Seu texto original data de 1972, os anos de chumbo da nossa história recente, época em que o Brasil era governado pelo presidente Ernesto Garrastazu Médici e onde a repressão às liberdades democráticas atingiu seu auge. A aprovação desse regimento, portanto, cumpriu o papel de sistematizar as formas de centralização da estrutura de poder ao gosto do regime autoritário dos militares, bem como sistematizar a repressão à comunidade universitária. Sua versão atual, de 1990 mantém o fundamental da estrutura de poder antidemocrática da universidade.

Patricia GalvãoDiretora do Sintusp e coordenadora da Secretaria de Mulheres. Pão e Rosas Brasil

sexta-feira 30 de abril de 2021 | Edição do dia

Foto: Cecília Bastos/USP Imagem

Anterior ao Regimento Geral, o Estatuto dos Servidores da USP, que disciplina as relações jurídicas de emprego, foi elaborado em 1966 e seu texto está em vigor até os dias de hoje na universidade. Nesse estatuto são ainda mais evidentes os resquícios da ditadura.

Agora, há 57 anos do golpe militar, a USP decidiu reescrever um novo estatuto de conformidade de condutas para substituir os velhos regimentos da universidade. O texto apresentado pela reitoria, no entanto, mantém as velhas práticas sob uma nova roupagem supostamente democrática e constitucional.

FUNCIONÁRIOS E DOCENTES

O Estatuto dos Servidores possui diversos artigos que são hoje inconstitucionais, além do seu viés moralista e punitivista. Por exemplo, é proibido aos servidores “incitar greves no serviço público ou a elas aderir”. Em junho de 1964, foi sancionada a lei 4330/64 que proibia os funcionários público de aderirem a qualquer movimento grevista, exceto em caso de atraso de salários. Além da demissão, o servidor grevista poderia ser punido com até 6 anos de prisão, como estabelecia a Lei de Segurança Nacional.

Além disso, os sindicatos do funcionalismo foram todos proibidos. Para manter sua organização, os trabalhadores passaram a impulsionar associações de classe até a redemocratização. O Sintusp, Sindicato dos Trabalhadores da USP, que na época da Ditadura era chamado de Asusp, foi o primeiro sindicato de funcionários públicos do país, com a promulgação da constituição de 1988 que permitia o direito a sindicalização e o direito de greve aos servidores.

Assim, esses dois pontos do vigente Estatuto dos Servidores da USP (ESU), tornaram-se anacrônicos e inconstitucionais, comprometendo todo o conteúdo repressor do estatuto. A reitoria da USP decidiu, portanto, reescrever o estatuto, assegurando sua constitucionalidade, ao mesmo tempo que garantia a legitimidade da repressão e perseguição os trabalhadores da USP.

Vale lembrar que o Sintusp não apenas foi o primeiro sindicato do funcionalismo no país pós ditadura, mas bastante ativo nos anos que antecederam a redemocratização (com o nome de Asusp), tendo um papel decisivo na articulação das greves do funcionalismo no estado no final dos anos 70 e nos processos de luta contra a ditadura.

ESTUDANTES

O Diretório Central dos Estudantes da USP Alexandre Vannucchi Leme, também conhecido como DCE livre da USP, teve um papel importante na organização do movimento estudantil. Nos anos de chumbo, a perseguição aos estudantes contou com a ajuda inquestionável da Universidade, que através do órgão AESI (Assessoria Especial de Segurança e Informação) criado durante a gestão do reitor Miguel Reale, realizava a triagem ideológica de alunos, professores e funcionários. Os relatórios produzidos pela AESI eram enviados para as Forças Armadas e polícia, o que resultou em “prisão, morte, desaparecimento, privação de trabalho, proibição de matrícula e interrupção de pesquisa acadêmica na instituição”, de acordo com o documento elaborado pela Comissão da Verdade da USP.

O Regimento dessa época, assinado por Reale, incluía a proibição “ao DCE e DA referidos no artigo 238 qualquer ação, manifestação ou propaganda de caráter político-partidário, racial ou religioso, bem como incitar, promover ou apoiar ausências coletivas aos trabalhos escolares” (artigo 240). Também determinava que o estatuto do DCE deveria ser aprovado e homologado pelo Conselho Universitário (CO). Os artigos que disciplinam o funcionamento do DCE, bem como o artigo 240 foram retirados da versão de 1990 que está em vigor. No entanto os mecanismos disciplinares de perseguição ao movimento estudantil se mantêm presentes até os dias de hoje, com punições disciplinares e suspenção de matrícula a alunos que se enfrentam contra o autoritarismo e as políticas privatizantes da universidade, como foi o caso da punição aos ativistas que protagonizaram a ocupação da reitoria da USP em 2011.

POR QUE UM NOVO ESTATUTO DE CONFORMIDADES DE CONDUTAS?

É no mínimo estranho que a melhor universidade do país, de acordo com rankings internacionais, tenha um estatuto da época da ditadura militar. No entanto, não podemos afirmar que o objetivo central da reitoria da USP seja varrer da instituição qualquer resquício de autoritarismo do regime militar. Isso seria ingenuidade. O objetivo da atual gestão, hoje comandada por Vahan Agopyan, é tornar legal os mecanismos de repressão e punição a trabalhadores, professores e estudantes, dando uma roupagem democrática para esconder o viés antidemocrático da universidade.

A estrutura de poder

O atual regimento estabelece que o Conselho Universitário (CO) como o órgão máximo de deliberação da universidade, que delibera desde as diretrizes para a universidade até o reajuste salarial dos servidores, políticas orçamentárias etc. Sua estrutura é bastante engessada e antidemocrática. A comunidade acadêmica é majoritariamente formada por estudantes, cerca de 80% de toda a USP. Funcionários representam um total de 14% da comunidade (sem considerar os trabalhadores terceirizados que são excluídos do cômputo geral da universidade). Docentes representam cerca de 6% da comunidade.

No entanto, o CO é composto por todos os diretores das unidades e um representante de cada uma das congregações das unidades de ensino, além dos dirigentes dos museus e institutos especializados e representantes patronais da Federação do Comércio, da Agricultura e da Indústria. Os docentes só podem eleger um representante de cada categoria (Doutor, Associado e Titular). A representação estudantil é proporcional à 10% do número total de docentes (que compõe as diretorias e congregações) para a graduação e 5% para os estudantes de pós-graduação. Ou seja, atualmente tem direito a 15 cadeiras no organismo que define toda a vida acadêmica dos estudantes.

Os funcionários têm direito a apenas 3 representantes no Conselho Universitário. Ou seja, no organismo que define as regras disciplinares, as políticas em relação a trabalho e salários, o número de representantes é ínfimo. Não bastasse isso, são constantemente interrompidos e censurados pelo reitor nas reuniões do órgão. Os trabalhadores terceirizados não tem direito a nenhum tipo de representação, não estão nos anuários da universidade e não participam sequer das consultas públicas, como se fossem invisíveis aos olhos dos burocratas acadêmicos. Enquanto a Fiesp tem uma cadeira e, via de regra, os interesses patronais permeiam as decisões do CO, os trabalhadores mais precarizados sequer são citados nas reuniões, exceto pelos representantes dos funcionários. Ou seja, o órgão máximo de deliberação exclui amplíssima maioria da comunidade universitária .

O novo Estatuto proposto pela reitoria mantém intocada a estrutura de poder da universidade.

Novas regras?

A proposta de estatuto apresentada pela reitoria, tenta dar legitimidade legal à repressão ao movimento de trabalhadores e estudantil. Isso se dá no momento em que governos articulam reformas administrativas e Bolsonaro avança em medidas repressivas e de censura com o apoio dos militares, baseando-se na Lei de Segurança Nacional, mais um resquício da ditadura presente na Constituição de 88.

Assim, ao invés de proibir expressamente o direito de greve, algo inconstitucional, o novo estatuto considera “ infrações gerais de potencial ofensivo elevado praticadas por servidores docentes ou técnico-administrativos” passível de demissão “ insistir em greves após serem elas consideradas abusivas ou a elas aderir, em prejuízo da continuidade da prestação do serviço”. Ou seja, nova redação para o mesmo fim. Quem vai avaliar se a greve é abusiva ou não e sob quais parâmetros? No regime do golpe institucional e diante da crise aprofundada pela pandemia os instrumentos estatais de repressão e o poder judiciário estão dispostos a sufocar qualquer greve que possa comprometer os interesses dos patrões.

Também consta como infrações de potencial ofensivo elevado “agredir moralmente servidor, docente ou não, aluno ou outro membro da comunidade da Universidade, presencialmente, pela mídia ou por redes sociais, mesmo que no âmbito de atividades assembleares ou em sessões dos órgãos colegiados da Universidade”. Isso vale para toda a comunidade acadêmica, sendo passível de punição ou, no caso de estudantes, expulsão. Obviamente, não se pode aceitar agressões morais ou calúnias. No entanto, tal artigo abre um leque de possibilidades de infrações que vão desde criticar um dirigente, chefe ou mesmo o reitor responsável por conduzir uma política desastrosa, ou um docente assediador que se apoia na sua posição para impedir a livre expressão dos estudantes punindo com notas baixas ou constrangimento público.

Aos docentes, o novo estatuto aprofunda a lógica de produtividade sem, no entanto, haver qualquer garantia de contratações que deixem de sobrecarregar os professores. O que tem sido regra da reitoria são contratos precários que dificultam ainda mais o desempenho da pesquisa.

Esses são alguns pontos do novo estatuto que deixam claro a lógica punitivista com a qual foi construído. Portanto, não se trata de tirar um ou outro artigo ou reescrevê-lo. É preciso combater a lógica com a qual se estrutura toda a universidade.

O Sintusp, Sindicato dos Trabalhadores da USP aprovou em assembleia o rechaço ao novo estatuto de conformidade de condutas, se somando às diversas congregações que criticaram o documento. A Adusp (Associação dos Docentes da USP) endossou as críticas feitas pela comissão da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) ao documento da reitoria.

Contra os estatutos herdeiros da ditadura militar, por uma estatuinte livre, soberana e democrática

O governo Bolsonaro tem buscado avançar cada vez mais contra a autonomia universitária. Nas universidades e institutos federais nomeou verdadeiros interventores. Nas universidades estaduais, a maioria dos reitores fazem um discurso demagógico contra os ataques do governo federal à ciência e à educação, mas a estrutura de poder das universidades extremamente restrita, fruto de uma lógica meritocrática elitista, além dos interesses políticos e econômicos que escondem. A composição dos conselhos, congregações e o processo de escolha para reitor colocam todos esses elementos de forma explícita. Uma pequena minoria é quem concentra quase todo o poder de mando e decisão na universidade.

Assim, a luta pela democratização das instâncias decisórias no interior da universidade precisa se enfrentar com essa lógica elitista, lutando pela democratização do acesso, com o fim do vestibular articulado com a estatização dos monopólios do ensino para que todos os que queiram possam ter o direito de estudar. No entanto, mesmo o voto universal, que faz parte até mesmo da nossa degradada democracia burguesa, ainda parece algo distante da realidade dos processos decisórios na USP.

A maioria das nossas reivindicações e processos de luta encontra nas reitorias, conselhos universitários e governos os maiores inimigos. Eles querem manter uma universidade de classe, garantindo que as pesquisas e toda a produção de conhecimento estejam a serviço dos lucros e dos interesses das empresas privadas. É preciso subverter essa lógica privatista e toda a castração da ciência e tecnologia. É preciso uma Universidade que gere e promova as grandes ideias e toda a tecnologia para construção de uma nova sociedade

Estudantes, funcionários e professores têm o direito de participar de todas as tomadas de decisão com sufrágio universal. Mais que isso, em momentos de crise aguda vemos que a burocracia é incapaz de responder aos problemas de trabalhadores e estudantes. As contradições do trabalho remoto, a sobrecarga de trabalho absurda no Hospital Universitário, a terceirização e precarização do trabalho, as precárias aulas de EAD, todos esses problemas a burocracia acadêmica finge não ver. Estudantes, trabalhadores e professores podem governar a universidade a partir de conselhos realmente democráticos, com composição proporcional ao peso de cada categoria na universidade.

A única saída possível diante das sucessivas tentativas da reitoria de reprimir o movimento de trabalhadores e estudantil, é a luta por uma Estatuinte Livre, Soberana e Democrática, onde estudantes, trabalhadores e professores possam definir os rumos da universidade.

Para isso é necessário se enfrentar com essa estrutura de poder totalmente antidemocrática que existe, por meio do fim da reitoria e do Conselho Universitário, e que o controle da universidade esteja nas mãos dos estudantes, funcionários (efetivos e terceirizados) e professores, proporcionalmente ao peso de cada categoria. Só com esse programa é que conseguiremos de fato avançar para uma universidade mais democrática e fazer com que a USP esteja a serviço dos trabalhadores e de toda população pobre.

Em meio a pandemia, a reitoria busca aprovar o texto sem sequer discutir com a comunidade universitária. O debate sobre a estrutura de poder da universidade e esse novo estatuto precisa ser feito profundamente na universidade pelos três setores. O Sintusp, Adusp, DCE e Centros Acadêmicos devem estar articulados nesse combate.




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