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Tribuna aberta | Construir escolas e hospitais é lucrativo?

É possível o capitalismo crescer construindo hospitais e escolas em vez de fazendo guerras? Esta é a pergunta que se busca responder nesse texto, a partir de um vídeo de João Carvalho.

quinta-feira 18 de abril | Edição do dia

Este vídeo curto foi compartilhado comigo recentemente e ilustra um hipotético diálogo entre John Maynard Keynes e Mickey Mouse, sendo este último uma representação alegórica do imperialismo estadunidense. O diálogo parece ocorrer ao final da Segunda Guerra Mundial. Keynes aparece tentando argumentar que a única forma de manter o capitalismo “funcionado” e crescendo, além da guerra, seria a construção de escolas, hospitais etc. pelo Estado. Mas Mickey conclui da argumentação de Keynes que, ao invés de construir escolas e hospitais, é possível gerar crescimento econômico por meio da guerra. Assim, o vídeo contém uma bem-vinda denúncia do complexo industrial-militar estadunidense, que dinamiza a acumulação do capital às custas tanto do atendimento das necessidades e direitos dos trabalhadores quanto do assassinato, da mutilação e das mais diversas formas de violência contra os povos racializados da África, Ásia e América Latina, os mais vitimados por esse perverso complexo. O final do vídeo ainda sugere o quanto os EUA seguem, nesse quesito, o receituário econômico da Alemanha nazista.

Entendo a mensagem que o vídeo pretendia transmitir, e simpatizo com esta mensagem, como qualquer pessoa de esquerda simpatizaria. Mas acho que há, por trás do vídeo, uma premissa problemática – e ainda mais porque o autor desse diálogo hipotético é um influencer que se considera “marxista” e “comunista”. Não entrarei aqui nos meandros teóricos da economia armamentista, que não é um tema trivial. A premissa subjacente é a seguinte: a construção de escolas e hospitais públicos, e o gasto público de maneira geral, podem ser um motor de longo prazo do crescimento de uma economia capitalista e, portanto, o capitalismo “dá certo”, gera emprego, renda, prosperidade, e até lucro para os capitalistas, quando melhora as condições de vida do povo – mesmo que, para isto, o Estado tenha de intervir.

Por que esta premissa é falsa? Porque a produção capitalista é, antes de mais nada, produção de mais-valia. Quantitativamente, a mais-valia é igual a diferença entre o valor do produto do trabalho e o valor da força de trabalho. Os salários são um pagamento não pelo trabalho, mas pela força de trabalho. Em um dia de trabalho, o trabalhador produz uma quantidade de produtos, que têm um valor. Mas o seu salário não tem nada a ver com o valor desses produtos (mesmo quando o trabalhador é pago por comissão, por exemplo, por entrega ou corrida, no caso do iFood e do Uber, respectivamente). O salário corresponde, em princípio, ao valor daquilo que o trabalhador e seus dependentes (familiares etc. sustentados por ele (ou ela!)) precisam consumir para que tal trabalhador possa se manter em condições de trabalhar e gerar descendentes para substituí-lo, no futuro, no trabalho. Isso inclui alimentos, roupas, produtos de higiene e outros relacionados às necessidades físicas, fisiológicas, corpóreas, de sobrevivência, mas também eletrodomésticos, smartphones, internet, serviços de streaming, gastos de lazer em geral, entre outros – ou seja, trata-se da reprodução de um certo nível de vida dos trabalhadores, determinado na luta de classes.

Em troca desse salário, o trabalhador cede ao capitalista o direito de usar a força de trabalho, ou a capacidade do trabalhador de trabalhar, durante uma parte do dia (a jornada de trabalho, quer haja uma definição formal, em contrato, desta jornada, quer não) e de se apropriar daquilo que for produzido pelo trabalhador neste período. Como o processo de trabalho é controlado pelo capitalista, este pode usar – e usa – a força de trabalho de modo a produzir, em um dia de trabalho, um valor maior do que o valor pago, na forma de salário, pela força de trabalho. Por conseguinte, a jornada de trabalho se divide em duas partes: a jornada necessária, na qual o trabalhador produz um valor equivalente ao que receberá de salário por aquele dia de trabalho, e a jornada excedente, na qual é produzida a mais-valia.

Então, a quantidade de riqueza nova produzida na economia como um todo em um período, em um ano, por exemplo, é determinada pelo total de horas trabalhadas em tal ano, e toda a parcela desta riqueza nova que não fica com os próprios trabalhadores é mais-valia. É desta mais-valia que se origina não só os lucros dos vários capitalistas, mas também os juros, as rendas de propriedade, como os aluguéis, e os impostos – mesmo os juros, aluguéis e impostos pagos pelos trabalhadores, que, do ponto de vista da economia como um todo, são riqueza que não fica com os próprios trabalhadores. O ritmo máximo de crescimento da economia capitalista é o ritmo de crescimento que esta economia alcançaria se toda a mais-valia fosse reinvestida como capital. No longo prazo, o crescimento econômico depende, portanto, de quatro fatores: 1º) a quantidade de horas totais trabalhadas; 2º) a forma como o total de horas trabalhadas se reparte entre jornada necessária e jornada excedente, entre produção de salários e produção de mais-valia; 3º) a forma como a mais-valia total se reparte entre lucros, juros, renda de propriedade e impostos; 4º) a proporção dos lucros totais que os capitalistas gastam com seu próprio consumo, com seus iates, mansões, jatinhos particulares e carros de luxo, e com a ampliação do seu capital, com a expansão das suas fábricas e plantas produtivas, a compra de mais máquinas, equipamentos, insumos e matérias-primas e a contratação de mais trabalhadores.

Keynes é celebrado por ter percebido que, em uma crise, o gasto público pode ser muito benéfico para os lucros privados. Se os trabalhadores estão desempregados, eles não geram mais-valia, e não só porque não produzem, mas também porque não recebem salário e, portanto, não consomem. Afinal, os capitalistas não poderão embolsar a mais-valia que extraíram ao explorar a força de trabalho se não puderem vender os produtos em que está contida esta mais-valia. Além de desempregar pessoas, a crise também desemprega máquinas, por assim dizer: como os desempregados não consomem, os capitalistas começam a produzir em quantidades menores do que suas fábricas são tecnicamente capazes – cai o nível de utilização da capacidade instalada. Esta redução da produção significa menos turnos de trabalho e menor demanda por matérias-primas, portanto, novas demissões e uma nova queda do nível de utilização, e assim por diante. É um ciclo vicioso. Ao construir escolas e hospitais públicos, o Estado gera tanto emprego quanto demanda, por material de construção, por exemplo. Os novos empregados, por sua vez, também demandam bens de consumo. A satisfação destas novas demandas motiva contratações e uma ocupação da capacidade produtiva até então ociosa. O ciclo vicioso transforma-se em um ciclo virtuoso.

Mas é evidente que este ciclo virtuoso não pode durar para sempre, pois, quanto mais o gasto público é exitoso no seu próprio intento de gerar demanda e emprego, mais o problema deixa de ser ocupar trabalhadores e máquinas ociosas, e passa a ser acumular capital, produzir mais mais-valia para produzir ainda mais mais-valia. Quanto mais o pior da crise tiver ficado para trás e o desemprego tiver diminuído, mais o gasto público se torna, então, um fardo para os capitalistas, e não só porque níveis baixos de desemprego tendem a pressionar para cima os salários e aumentar o poder de barganha dos trabalhadores, mas, sobretudo, porque o gasto público consome parte da mais-valia que, de outro modo, poderia ser investida como capital. Os capitalistas tratam de limitar os gastos públicos com saúde, educação etc. – por meio de um ““regime fiscal sustentável””, por exemplo – não por pura vileza, nem porque estão cheios demais de preconceitos ideológicos liberais para entenderem que, quando o Estado gasta com saúde e educação e aumenta o emprego e o consumo dos trabalhadores, os próprios capitalistas ganham mais. Se os capitalistas pudessem lucrar mais promovendo a educação e a saúde pública, é óbvio que eles prefeririam fazê-lo, pois isto daria mais legitimidade ao sistema capitalista e ajudaria a conter os conflitos sociais e manter a disciplina no trabalho. Acontece que, pelo contrário, os capitalistas são muito lúcidos em relação aos seus interesses de classe e atacam a educação e a saúde públicas porque, para o capital, é uma questão de vida ou morte livrar-se deste “peso morto” e condicionar o atendimento de todas as necessidades humanas à produção de mais-valia.

Quando a direita diz que esses gastos públicos são “improdutivos”, ela tem razão do ponto de vista do capital. Os gastos do Estado em serviços como saúde, educação, transporte, e em obras de infraestrutura, moradia etc., não produzem mais-valia diretamente, embora possam ter importantes efeitos indiretos sobre a produção de mais-valia, sobretudo, em momentos de crise (empresas estatais, sim, produzem mais-valia, mas este é outro assunto não trivial que não vem ao caso). Portanto, a esquerda – a esquerda revolucionária, pelo menos – não deve defender o gasto em serviços públicos para a população sob a justificativa de que estes gastos contribuem para o crescimento econômico e os lucros. Esta justificativa não só é errôena como também faz o jogo de “quem vai gerir melhor as crises do capitalismo” – para tomar de empréstimo as palavras de Vladimir Safatle, em sua entrevista de 24 de fevereiro para a Folha que tanto repercutiu.

A esquerda revolucionária deve defender a educação, a saúde e os demais serviços públicos, não porque a provisão destes serviços pelo Estado contribua para o crescimento e o lucro, mas apesar de não contribuir e eu diria até porque não contribui! Nesta defesa, o papel da esquerda revolucionária é explicar não como o Estado poderia viabilizar o atendimento das necessidades e direitos do povo trabalhador, e sim como o pleno atendimento destas necessidades e direitos é impossível em uma economia regida pela finalidade do lucro e da acumulação de capital – o que explica, em grande medida, a ofensiva neoliberal contra os Estados de Bem-Estar Social, lançada nos anos 1970 – e como, em suma, é preciso abolir as relações capitalistas de produção.




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