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TEORIA ECONÔMICA
Para onde vai o capitalismo? Thomas Piketty e a desigualdade como destino manifesto
Paula Bach
Buenos Aires

Dois anos depois de figurar como segundo na lista de best-sellers da Amazon e terceiro na lista do The New York Times, o livro de Thomas Piketty sobre o Capital marcou uma geração de economistas e foi muito bem recebido pela imprensa imperialista. Segundo o The Guardian: “Levá-lo debaixo do braço se converteu na nova ferramenta de conexão social em certas latitudes de Manhattan”. O livro que alguns consideram como a contraposição do fenômeno Fukuyama e que é sugestivamente chamado de Capital nos Estados Unidos, abriu uma enxurrada de críticas provenientes de todas as vertentes da teoria econômica.

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Não é por acaso que, em um contexto de vazio ideológico da teoria econômica burguesa aberto pela crise de 2008, o livro de Piketty, concentrado na análise da dinâmica da desigualdade no capitalismo, transformou-se em uma ferramenta política principalmente no mundo anglo-saxão e particularmente nos Estados Unidos.

Uma máquina produtora de desigualdade

Se há algo de surpreendente no trabalho de Piketty, tratando-se de um economista que segue os postulados do mainstream, é a identificação do capitalismo como uma máquina intrinsecamente produtora de desigualdade, constituído por uma exaustiva investigação empírica que abrange desde o século XVIII até o nossos dias.

Depois de mais de um século do famoso debate no interior da Socialdemocracia alemã e ainda que sem querer, Piketty demonstra com dados contundentes que a razão estava ao lado dos marxista que, como Rosa Luxemburgo, enfrentaram duramente o revisionismo de Bernstein¹, que dentre várias questões sustentava que o capitalismo avançava até uma maior distribuição da propriedade e até uma diminuição progressiva das contradições sociais.

A ideia que o autor ressalta insistentemente ao longo de quase mil páginas na edição original em francês é que ao longo de toda sua história o capitalismo demonstra uma tendência aberta a aumentar o patrimônio privado², concentrando a propriedade em um pólo e aumentando recorrentemente as desigualdades sociais. Só grandes choques como as duas guerras mundiais dos século XX, a Revolução Russa de 1917 e a crise dos anos 30 estabeleceram – como exceção histórica – um limite à desigualdade que retomou seu caminho ascendente durante as últimas décadas, tendendo a recuperar no século atual os níveis paradigmáticos da Belle Époque³.

Piketty assinala que entre 1900 e 1910 os patrimônios privados alcançavam um valor médio de cerca de 5 e 7 anos da receita nacional nos principais países europeus e nos Estados Unidos, respectivamente. Em um contexto de crescimento econômico – com a média de crescimento populacional relativamente baixa – que ele vai considerar a norma do capitalismo – se desenvolve um capitalismo patrimonial rentístico em que o aumento da desigualdade provavelmente haveria prosseguido até níveis inimagináveis se não fosse a sucessão de choques de 1914/45. Após este período e como subproduto da destruição provocada pelas guerras, os choques de financeiros e políticos e o baixo nível de preço dos ativos no pós segunda guerra fazem com que os patrimônios diminuam abruptamente passando a representar em média cerca de três anos da receita nacional. Como consequência da destruição dos patrimônios e da instauração de um nível forte de crescimento sem precedentes históricos, a desigualdade diminui abruptamente e se inicia um período de reconstrução com crescimento médio, sobretudo na Europa – excepcionalmente alto para os níveis capitalistas.

Um fato que Piketty define de fundamental importância durante este período, é o surgimento de uma “classe média patrimoniada” (normalmente proprietária de sua casa) que representa 40% no entremeio dos 10% mais ricos e dos 50% mais pobres e que durante os anos do pós-guerra foi dona – tanto na Europa como nos Estados Unidos – de aproximadamente um quarto e um terço do patrimônio nacional. O desenvolvimento desse setor resulta na principal transformação estrutural no que tange a distribuição de riqueza no século XX. Piketty insiste sobre o fato de que a baixa concentração do capital, o alto crescimento econômico populacional e a diminuição das desigualdades que se produzem depois do pós-guerra, constituem uma clara exceção na história do capitalismo. A regra é de crescimento relativamente baixo, de alta acumulação do patrimônios privados e de desigualdade crescente. Somente choques “externos” ao sistema que provém do lado da política, principalmente as guerras e as convulsões sociais – ainda quando essas últimas tem um papel marginal em sua análise – são capazes de reverter as condições ainda que somente por um curto período de tempo.

Desse modo, logo após a segunda guerra a reconstrução dos patrimônios se realiza em alta velocidade e se acelera com a “revolução conservadora” a partir dos anos de 79/80. O crescimento médio diminui, a globalização e a competição entre Estados impulsiona reduções de impostos e sobretudo uma estrutura de crescimento cada vez mais recessiva, a acumulação patrimonial privada e a estrutura das desigualdades se aproximam velozmente dos níveis do início do século. A acumulação de patrimônios privados representa hoje o equivalente a 5 e 6 anos da receita nacional. Não obstante, e como remanescente da excepcionalidade no pós-guerra, ainda se mantém uma classe média patrimonial, atualmente ameaçada de empobrecimento, o que suscitará fortes reações políticas. Piketty destaca que, principalmente a partir de 1990 se observa um processo persistente de crescimento da desigualdade na distribuição das receitas marcado fundamentalmente pelo alto crescimento dos salários dos gerentes, processo que é visto como tendência mundial, e que se destaca nos Estados Unidos (que hoje é claramente mais desigual que os países europeus) onde a estruturas recessivas se transformaram em vultuosos salários gerenciais.

É nesse contexto que o autor alerta que o prognóstico de um crescimento baixo nas próximas décadas indicaria a tendência de um desenvolvimento cada vez maior dos patrimônios privados que caminharia junto com o avanço de uma sociedade cada vez mais rentista, reproduzindo-se sob o andar do século XXI, as tensões insuportáveis da Belle Époque.

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Piketty observa empiricamente o movimento históricos dos patrimônios privados cuja acumulação extrema uma destruição massiva – e ainda pode fazê-lo novamente – na primeira metade do século XX (guerras mundiais e crise dos 30) como precondição para o chamados “Anos Dourados”. Sua investigação – ainda que partindo da interpretação comum dos postulados neoclássicos – aponta elementos sugestivos que – ao menos como guia4 – são muito úteis para pensar e avaliar em termos empíricos, a evolução do que os marxistas conhecem como tendência a superacumulação de capital5 e suas consequências pela história. Mas como Piketty explica o movimento observado? Através do que denomina a mecânica da divergência patrimonial. Um mecanismo que ao longo da história (salvo no período excepcional do pós-guerra) Piketty define que o rendimento do capital é recorrentemente maior que a taxa de crescimento econômico das sociedades. De tal modo que é suficiente que os proprietários de capital invertam uma pequena parte de seus rendimentos – um pouco acima do crescimento econômico – para que a acumulação patrimonial se produz a uma velocidade maior que o crescimento da sociedade em geral.

É nesse contexto que os patrimônios herdados do passado sempre superam aqueles constituídos ao longo da vida das pessoas. A divergência de patrimônios privados e a sociedade de rentistas – que vivem da diferença de rendimento entra o capital e o investimento – são resultado de fatores que se desenvolvem juntos. Desse modo, a brecha entre o rendimento do capital e o crescimento econômico é para Piketty a força motriz da desigualdade no capitalismo. Seu objetivo é demonstrar que o fundamento da desigualdade não se deve originar da essência do capital, nem por tanto da origem de sua rentabilidade, senão na sociedade de rentistas e no peso das heranças, que derivam da distância entre o crescimento econômico e a rentabilidade do capital.

O autor coloca como hipótese teórica extrema a identidade entre crescimento e rentabilidade, que chegará ao ápice no caso que o proprietário deveria reinvestir anualmente a totalidade do rendimento do capital. Em consequência disso se acumularia tanto capital que os rentistas não teriam mais nada para consumir se desejarem que seu capital cresça ao ritmo da economia, questão necessária para manter seu status social. Nesse contextos os patrimônios constituídos ao longo da vida das pessoas seriam compatíveis com os “valores meritocráticos” e os “princípios de justiça social que são a base de nossas sociedades democráticas modernas”.

Em suas palavras “é o ideal socialdemocrata do pós-guerra: os lucros financiam os investimentos e não o ritmo de vida dos acionistas”6. O problema é que a fonte fundamental da desigualdade não se encontra nem nas rendas que não se destinam ao investimento, nem na acumulação de capitais de distintas magnitudes, nem no “condicionamento” do capital herdado. A fonte da desigualdade no sistema capitalista é o próprio capital, que não é um “objeto”, ou seja, algo idêntico ao patrimônio, como trata Piketty, é senão uma relação social na qual o trabalho vivo não pago é o único fator capaz de aumentar os trabalho morto contido no capital inicial, possibilitando sua acumulação ampliada. Não há “valor meritocrático” capaz de gerar capital por mais que se esforce o proprietário dos meios de produção e seus gerentes não tenham forma de acrescentar o capital na ausência de trabalho vivo não pago. A desigualdade “original” frente a propriedade dos meios de produção é a condição necessária para a reprodução do capital. É na acumulação ampliada de capital e não no consumo rentista em que se encontra a fonte da desigualdade. E por outro lado, é a própria dinâmica da acumulação do capital a que gera tanto o “rentista”, como parte da concentração do capital e também a desigualdade na distribuição7. Para ele os “princípios de justiça social de nossas sociedades democráticas modernas” privilegiam o direito a propriedade privada que garanta a existência de uma classe de não proprietários dos meios de produção, obrigando-o a vender no mercado sua força de trabalho, única mercadoria capaz de criar a substância que valoriza o capital. Não habitamos o reino dos mortos (no peso das heranças), que como sugere Piketty, domina o mundo dos vivos, habitamos o reino da propriedade privada do trabalho morto (propriedade dos meios de produção) que domina o mundo do trabalho vivo (trabalho assalariado).

A negativa de Piketty ao tratar do capital em seu caráter histórico limitado o impede de pensar uma teoria da história do capital. Para ele não existe em todo seu trabalho sequer elementos de uma teoria que crie fundamentos da explicação das crises capitalistas nem das condições necessárias de sua superação pelo lado do capital.

Uma guerra, um imposto?

A partir do levantamento do capitalismo durante toda sua história dando conta de dados impactantes como que em mais de 200 anos os 50% mais pobres da sociedade não obtiveram nunca mais de 5% do patrimônio nacional, e que foram necessárias ao menos duas guerras mundiais e uma crise catastrófica para que os 40% que se encontra entre os 10% mais ricos e os 50% mais pobres, se fizessem proprietários de uma casa nos principais países capitalistas; Piketty fundamenta essa regra mediante uma condição empírica – a distância entre o rendimento e o crescimento – sob a qual não oferece explicação nenhuma. Definitivamente Piketty esquece de qualquer lei interna do capitalismo que possa explicar a regularidade que constata; seu objeto é demonstrar que apesar da desigualdade crescente que gera, o capital é a única forma possível, natural, da existência humana. É por isso que sua análise do crescimento econômica aparece como uma espécie de Deus ex machina, independente do rendimento do capital e da vontade dos capitalistas, assim como o rendimento do capital brota por sua vez como uma ficção sem mais explicações que uma identidade contábil. Pelo mesmo motivo, ao identificarmos o capital como patrimonio8 ele não trata o capital como uma relação social, senão como uma coisa que tem a propriedade útil ou natural de geral rendimento. Seguindo a mesma lógica, na exposição relativa ao aumento das desigualdades na distribuição da renda durante os últimos 30 anos, destaca a acumulação em um polo mas nunca a ofensiva sistemática criada pelo capital sobre o trabalho assalariado. Piketty busca gerar força de lei a diferença entre rendimento do capital e o crescimento econômico, opondo-se de início – com uma claramente deficiente que, para além da riqueza do tema, já conta com refutações empíricas9 – a lei tendencial histórica a queda da taxa média de lucro exposta por Marx no livro III de O Capital.

Sua afirmação, de que a fonte do crescimento da desigualdade se deve a divergência significativa e duradoura da taxa de rendimento privado do capital e a taxa de crescimento econômico, tem como objetivo principal fundamentar a política econômica que propõe. Após se perguntar várias vezes se seria necessário outra guerra, assinala que desta vez seria verdadeiramente mundial. Piketty propõe como alternativa reduzir o intervalo entre o rendimento do capital e o crescimento econômica através da criação de um registro internacional dos patrimônios e a aplicação de um imposto anual progressivo moderado sobre as fortunas. Um imposto de 1 ou 2%, segundo o tamanho do patrimônio, que no caso da União Européia equivaleria a cerca de 2% do PIB europeu. Uma política inegavelmente tímida que não vai além de “colocar nos trilhos” os “rentistas”para estimular o desenvolvimento do capital produtivo com um imposto semelhante a taxa Tobin, que além de seu caráter inofensivo já sofreu distintas mudanças e foi aceita pela União Européia a partir de 2016. Pelo menos tem que reconhecer que Keynes, quem também perseguia a utopia recessiva de produzir em condições de paz, os benefícios da guerra foram – para além do extremo conservadorismo – notadamente mais importante. A impossibilidade da intenção de substituir a capacidade destrutiva das guerras mundiais e das próprias crises capitalistas com um simples imposto, faz com que o contraste entre a constatação empírica de Piketty e a saída proposta venha a tona como problema da própria estrutura lógica da obra. Decerto que “A dificuldade surge porque a análise econômica da distribuição das receitas são abordadas desde um enfoque neoclássico que por definição é asocial e ahistórico”10. Fica claro que Piketty não extrai nenhuma conclusão a respeito da relação entre os fatos históricos de grande magnitude do século XX que analisa e os próprios limites do capital. Nem sequer dá importância a verificação entre a destruição massiva de capitais que se confirma na diminuição patrimonial do pós-guerra e o forte acréscimo da taxa de rentabilidade que ele observa. Desse modo, se retomarmos o que Piketty denomina o “ideal socialdemocrata do pós-guerra”, não acharemos em seu livro outro motivo – para além do tempo e do azar – que explique o porque da “divergência patrimonial” se fundiu ao “ideal socialdemocrata” assim que terminado os chamados “Anos Dourados” e aberto o caminho novamente a “regra” do capital.

1. Piketty defende abertamente a política de colaboração de classes de Bernstein.

2. Piketty trata como sinônimos o patrimônio e o capital.

3. Período da história europeia compreendido entra a última década do século XIX e a Primeira Guerra Mundial.

4. Alguns autores criticam metodologicamente a avaliação empírica de Piketty, ver por exemplo Husson, M. “Le capital au XXIème Siècle, Richese des donnés, pauvreté de la théorie”, disponível em hussonet.free.fr.

5. Fator decisivo em última instância, tanto nas guerras mundiais como no atual estancamento da economia capitalista.

6. Piketty, T. Le capital au XXIème Siècle, Paris, Edicion du Seuil, septembre 2013, p. 927, tradução da autora.

7. O aspecto da relação entre concentração e desigualdade é desenvolvido por Astarita, R. “Reflexiones desde el marxismo sobre el libro de Piketty”, disponível em rolandoastarita.wordpress.com.

8. A propóstio disso ver Milanovic, B. citado por Husson, M, op. cit.

9. Ver Michael Roberts Blog, “A world rate of profit revisited with Maito and Piketty”, thenextrecession.wordpress.com.

10. Astarita, R. op. cit.

Tradução: Caio Silva Melo

 
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