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OPINIÃO
Esporte saúde e pra todos: um discurso que contradiz a realidade (parte 1)
Mariana Pereira
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Esses dias em casa, numa dessas conversas que engatam, como bons universitários e militantes, refletimos muito sobre essa temática, o que elevou minhas já existentes reflexões sobre esporte e, como estou nessa de tudo que me é valoroso virar algo material de usufruto coletivo para fomentar debates, eis aqui um texto, também coletivo, como promessa de outros e incentivo para aqueles que se constrangem achando que apenas podemos escrever publicamente se seguirmos por “A mais B” a ABNT e parâmetros acadêmicos.

A cada dois anos nossos olhos se voltam para o fenômeno esporte, durante a Copa do Mundo (especificamente para o futebol) e Olimpíadas, e todo mundo vira, de certa forma, uma espécie de comentarista. Comentarista porque, apesar do esporte fazer parte do nosso cotidiano, sendo televisionado (especialmente uma ou outra modalidade... masculina!) e debatido nas “mesas redondas da vida”, jornais, rádios, pouco faz parte do nosso cotidiano de forma viva, encarnado... Pouco praticamos.
Mesmo o acesso à apreciação do esporte, via televisão é restrito, pois grande parte dos canais esportivos são da TV paga. E ir a um estádio ou ginásio é algo cada vez mais caro, portanto, raro (ainda mais nessas ocasiões de megaeventos esportivos). Praticar uma modalidade esportiva com frequência e sistematicidade, quem tem essa chance ou esse talento?! Os campinhos de várzea tão virando prédios...!Não se trata de uma mera questão de talento ou sorte, muito menos esforço individual...

Ai as Olimpíadas de quatro em quatro anos nos aparecem com seu cardápio extenso de modalidades esportivas, coisas que todos os anos de educação física escolar não puderam sequer apresentar. Pra não falar do fato da educação física escolar está diretamente associada pelo senso comum e prática docente à ideia de esporte quando é a área que estuda e intervém na Cultura Corporal que abarca o conhecimento sobre as práticas do corpo historicamente construídas e sistematizadas, a partir do nome de dança, jogo, luta, ginástica, arte circense... Mas este é assunto para um outro texto.

Assistimos a uma prova da ginástica, uma partida de vôlei de areia, um tiro de 100m e como nos impressionamos com aqueles corpos minuciosamente preparados, com os recordes. Assistimos até esgrima, tênis e hipismo! Quando passa na TV, claro... Na maioria das vezes são apenas flashs de melhores momentos ou algo curioso, mas meio indigesto pro nosso olhar desacostumado, pouco instruído, assim logo mudamos de canal e bora ver o futebol mesmo!

Quanto podemos falar quando esmiuçamos o tema Olimpíadas! Como será que o futebol se tornou o esporte mais popular (milionário e corruptível) do mundo? O que acontece com a maioria desses atletas quando não estão sob a mira da TV que ganhou a disputa midiática pela exibição exclusiva do megaevento? Como chegaram ao alto rendimento?

Espero que estes e tantos outros debates acerca do esporte, dança, luta, etc, se abra e ganhe contornos que somente a esquerda pode dar para entender de forma histórica e não romanceada, portanto profunda e complexa, como a vida prática de quem tá dentro e quem tá fora mostra que é. Ainda é uma área do conhecimento pouco refletido pela esquerda, deixando para a direita o “direito e dever de fala” e, não raramente, por incompreensão, reproduz o discurso vigente e dá espaço para que a ideologia burguesa siga se difundindo como a única possível, também através do esporte. É ou não é um prato cheio para os defensores da meritocracia atletas negros, mulheres, LGBT “nunca terem precisado de cotas e serem medalha de ouro”?!

Nesse momento, grande parte da população (não somente a elite, mas os trabalhadores, mesmo aqueles que nem se reconhecem como tal, reproduzem o discurso que insistentemente se volta contra estes próprios) até discursam em prol desses setores que simbolizam tudo o que sempre odiaram, dizendo “a medalha é de todos os brasileiros” quando na verdade é apenas do negro estereotipado por somente conseguir sucesso pela via do esporte ou arte, porque já nasce com estes talentos, ao contrário da pré disposição à intelectualidade, né (pois é, já li artigos acadêmicos sobre isso)?! Enfrentando tantas barreiras materiais para consegui-la.

Em momentos como esses, em que olhos, ouvidos, bocas e narizes estão abertos à apreciação, nem que seja pelo consumo, é que devemos nos debruçar de modo sério aos grandes temas abertos. Quanta criança não se empolga com a possibilidade (longínqua e abstrata) de tornar-se atleta de ponta? Quanto adulto não vê o que poderia ter sido de seu futuro, seu grande sonho, se esvair novamente por entre as mãos. Convivi com muitos desses durante minha graduação em Educação Física.

Lembro-me de uma amiga que estudou educação física comigo e, não gostando de esporte, certa vez justificou que não entendia por qual razão tantos deveriam perder para um ou poucos ganharem (qualquer semelhança com a sociedade de modo geral não é mera coincidência). Os senhores doutores dessa área recém reverenciada “acadêmica” riram, obviamente. Mas aquilo ficou martelando na minha cabeça e teve diversas reverberações: fazia sentido.

Falar disso me lembra que o esporte (moderno, este que vivenciamos e que surge concomitante, intrincado e não paralelamente ao desenvolvimento da sociedade capitalista) não foi sempre assim e nem precisa ser. Não o sendo mais, será que seria, então, esporte?

Lembro de dar aulas na escola em que eu e meus alunos procurássemos definir o que é esporte, por que sabem que é diferente de dança quando observam, mas não sabiam explicar. Elencar os elementos que aparecem em todas as modalidades e que as amarra para serem “esportivas” ajudou. Esporte tem que ter adversário, regras universais, instituições que regulamentam, normatizam e organizam suas regras e campeonatos (como FIFA, CBF, etc)... Necessariamente implica no alto rendimento. Esse é o primeiro ponto que gostaria de refletir.

Aquela famosa frase “Esporte é saúde” ou a reivindicação “Esporte para todos” se opõe pelo vértice à definição e realidade do alto rendimento. Visando o pódio, a máquina do esporte (lê-se empresários, patrocinadores e, na ânsia de bater alguns recordes, também treinadores e atletas) não vêm limites para a elevação ao extremo das capacidades físicas, o que leva, inevitavelmente, ao desgaste acelerado do material biológico (lê-se corpo humano) e à curtíssima “vida útil” da mercadoria denominada atleta. Muitas meninas, devido à baixa taxa de gordura corporal (que é a base da composição hormonal) não menstruam e há vários casos de atletas que percebem que estão grávidas no fim da gestação, quando sentem as contrações, por exemplo. Quantos atletas relâmpagos surgem e desaparecem na mesma velocidade? Todo mundo que já viveu o alto rendimento sabe o que é ser perseguido pelo medo de uma lesão, pois esta significa, via de regra, a aposentadoria precoce. E a outra regra dessa pequeníssima parcela de pessoas atletas para além das dores e perdas funcionais do corpo, é a dificuldade financeira para continuar vivendo, já que sobram poucos postos de trabalho na mídia esportiva quando se encerra a carreira.

Patrocínios pontuais, bolsa atleta insuficiente, espaços de treinamento e materiais insalubres e obsoletos, pouco espaço na mídia são a realidade de 90% dos atletas de alto rendimento, sendo estes já tão minoritários na sociedade de conjunto.
E se o esporte não é saúde, é muito menos pra todos. O primeiro filtro, já é, justamente, o acesso a espaços de iniciação esportiva. A educação escolar pública (que podemos dizer que foi universalizada) não tem um projeto esportivo sério e nem se tivesse, como veremos mais adiante, garantiria acesso democrático de todos ao esporte. Desde as categorias de base, quando uma criança adentra um clube projetando tornar-se um grande atleta, tem que passar por vários outros filtros: à primeira vista o biótipo adequado e mais detalhadamente, os aspectos e proporções fisiológicas e bioquímicas descobertas pela “ciência” como favoráveis. Isso, se tiver a sorte de não se lesionar no percurso; caso aconteça, fica pelo meio do caminho. Sem falar de toda preparação “suporte”, como fisioterapia, acompanhamento nutricional e psicológico, dentre outros. Assim, apenas uma elite apta biologicamente se forja atleta.

Parece que a universidade chegou a determinados conhecimentos sobre o treinamento esportivo, determinados padrões técnicos e movimento eficiente para corpos específicos, então isso basta, não tem sentido buscar um conhecimento que capacite corpos diferentes ao alto rendimento, possibilitando assim uma diversidade maior, ainda que se trate de uma pequena parcela a tornar-se atleta.

A depender da modalidade, o fator econômico é ainda mais decisivo, pois são poucos espaços apropriados que existem, de acesso privado, com materiais e professores caros. É o caso do hipismo, tênis, esgrima mencionados acima.
Eventos como as Olimpíadas, são também marcos históricos do aprimoramento técnico. Cada recorde, cada novo movimento e desenvoltura encerram fases e abrem outras com novo nível de exigência técnica, obrigando treinadores e atletas se renovarem para continuarem parte desse meio.

Ao passo que questionam, o esporte também cria regras e padrões normatizadores de beleza, sexualidade, feminilidade e masculinidade, mas este será o assunto de um próximo texto, por enquanto paro por aqui.

 
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