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HISTÓRIA
Notas (incompletas) sobre um país
Daniel Alfonso
São Paulo
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No último dia 21 de abril, comemorou-se mais um feriado nacional, relembrando o assassinato de José Joaquim Xavier, conhecido pejorativamente como Tiradentes, pelas forças coloniais. A devassa (espécie de investigação da época colonial) acabou fazendo de exemplo somente aquele de posição social mais baixa entre os inconfidentes. Não é nossa intenção aqui examinar em traços largos o processo da Inconfidência Mineira, nem suas consequências diretas. Ao contrário deste 1º de maio, o feriado em homenagem a Inconfidência recebeu bem menos atenção dos meios de comunicação. Não é para menos; este 1º de maio mexe com uma série de aspectos da conjuntura nacional. Mas como o que aconteceu nas Minas no fim do século XVIII é parte constitutiva daquilo que vem à mente quando se pensa em Brasil, vale a pena explorar esse terreno – até para atualizar ainda mais a importância dos trabalhadores e do povo pobre e negro na construção de algo novo que certamente não será o Brasil que conhecemos hoje.

Não é demais (re)lembrar que a valorização da figura de Tiradentes como herói nacional é resultado da perspectiva nacional dominante que surgira no final século XIX com a queda da Monarquia e o surgimento da República. Até então, a Inconfidência Mineira – e o próprio Xavier – tinham pouco espaço na memória política. Foram resgatados como uma espécie de precursores dos interesses de um país soberano, independente e, no caso de Xavier, republicano.

Muito tempo se passou desde então e símbolos políticos são sempre tributários de movimentos, mais explícitos ou mais subterrâneos, mas sempre da luta entre as classes. Sendo que, em de menos de um mês antes do feriado nacional, milhares de pessoas foram às ruas com camisetas da seleção canarinho, vale a pena tentar alçar um voo mais longo também.

Talvez seja mais claro traçar um caminho daquilo que a Metrópole portuguesa não queria que entrasse no rol de possibilidades de sua Colônia. Em primeiro lugar, não deveria ser indígena. Essencialmente, havia dois caminhos para os indígenas: a aniquilação física ou cultural (através da catequização). Uma vez catequisados, os indígenas seriam servos da Coroa e partes do Reino – na parte de baixo, naturalmente. Uma vez que a ocupação do amplo território se tornou um desafio também de grandes proporções, e a escravidão dos povos africanos se consolidou como força de trabalho central, então a colônia deveria ser, acima de tudo, não-negra. Branca, temente a Deus e respeitosa às leis e à vontade do rei e seus súditos; em última instância, a perspectiva dominante que norteou a ação política e ideológica metropolitana. Apesar de genérica e passível de ser aplicada à enorme maioria dos países europeus entre os séculos XV e XVIII, essa configuração ganha uma série de especificidades claramente portuguesas, que seriam tema para outra nota.

Na colônia, àquela altura, para ser branca, temente a Deus e respeitar às leis e vontades da Coroa portuguesa, era necessário ser escravagista, latifundiária e desenvolver uma cultura dominante profundamente patriarcal e que tratasse, a todo momento, de amenizar a influência cultural negra, já que eliminar era impossível (a existência de inúmeras associações religiosas negras, como as Irmandades, por exemplo, só exemplificam a complexidade da relação entre opressão e resistência cultural). Ao mesmo tempo, seria impossível manter a ordem no território que mais escravizou negros sem uma tensão constante em busca de aperfeiçoamento de métodos repressivos. Isso não dizia respeito somente à repressão física e ao espetáculo do exemplo (como os pelourinhos em praça pública), mas também a várias formas de incentivos à delação. De qualquer maneira, os inimigos tinham cor e esta era negra. Algumas décadas antes da elaboração do plano dos inconfidentes, (...) os oficiais da Câmara de São João del-Rei, em documento interessantíssimo, resumiam a situação das várias comarcas no tocante às incursões e atos criminosos ‘dos únicos inimigos que temos nestes país’: os quilombolas”[1].

Aquilo que os inconfidentes tinham planejado para as Minas, em momento algum colocou em risco o que as características essenciais que a Metrópole impôs a Colônia. A elite colonial e os inconfidentes eram funcionários de alto escalão (menos Tiradentes, de patente média na Companhia dos Dragões), que enraizaram seus interesses políticos e pessoais através de um sistema de acumulação de riquezas que dependia do arranjo originado pela relação com Portugal, o que incluía uma dinâmica mais estreita com a Inglaterra e, quem diria, de altas taxas de contrabando (ou, em outras palavras, de evasão fiscal). Dessa perspectiva, dos pontos de contatos com a Metrópole, grande dose do que havia de mais conservador no arcabouço político europeu encontrou terreno fértil para se enraizar naquilo que estava, no final do século XVIII e começo do XIX, se transformando em algo mais parecido com o que hoje conhecemos como o nosso país.

Seria completamente absurdo imaginar que ideias e programas absolutamente novos brotariam do chão, somente pelo fato desse chão ser as Américas, território desconhecido dos novos dominantes. A singularidade de como o rico processo pela qual passava a Europa nesses séculos, a partir da expansão marítima no século XIV, se plasmou em cada território se deve justamente à combinação de uma série de fatores, entre os quais a luta pela manutenção da ordem e da acumulação de riqueza está no topo da lista. E nada sustentava mais essa ordem do que a escravidão e a grande propriedade de terras.

Apesar de referir-se às guerras revolucionárias dos Estados Unidos e da América Espanhola pela Independência – o que não é o caso da Inconfidência Mineira, nem tampouco houve guerra de independência no Brasil – é muito ilustrativo o que Benedict Anderson chamou, não sem forte tom irônico, de vínculo familiar entre Colônias (ou ex-Colônias) e Metrópoles: “As guerras revolucionárias, por mais duras que fossem, ainda assim eram tranquilizadoras, na medida em que eram guerras entre parentes. Esse vínculo familiar garantia que, após um certo período de ressentimento, fosse possível reatar intimamente laços culturais e, às vezes, políticos e econômicos, entre ex-metrópoles e as novas nações.”[2]

O documento citado acima da Câmara de São João Del-Rei sobre o medo dos quilombolas ganha uma nova camada de sentido, pois o medo dos oficiais não era somente contra a desorganização material da vida colonial (o que em si já seria uma catástrofe), mas uma profunda ruptura com tudo aquilo que representava sua herança cultural e moral. Negros e negras andando livremente pelas ruas, de cabeça erguida, cuidando de seus assuntos, tomando as fazendas, usando-as como quisessem, enfim... Seria uma ruptura drástica e radical com o velho continente. Por isso, mesmo imbuído do arsenal das ideias da Revolução Francesa, Toussaint L’ouverture se viu obrigado a lutar pela independência da ilha de São Domingos para garantir o fim da escravidão. E o fez contra o exército de Napoleão, que, ao mesmo tempo em que demolia resquícios feudais pela Europa, não subestimava a importância daquela pequena ilha do outro lado do Atlântico. Vivenciar a sua própria maneira a experiência de São Domingos era o medo mais agudo da elite local (ou protonacional) mineira. Junto com a alta taxa de concentração de terra, foram os fundamentos essenciais que limitaram o horizonte das perspectivas políticas e ideológicas da elite brasileira.

Muitos anos se passaram desde então. Mais importante ainda: o mundo passou por transformações profundas. Não há mais escravidão (pelo menos não legalizada). O capitalismo imperialista se consolidou como o modo de produção dominante. Mas em cada movimento sentimos o peso desse passado. Felizmente, vivemos em um momento no qual o que era um limite intransponível para as elites coloniais (escravidão e grande concentração de terras) e ainda é para a burguesia nacional (grande concentração de terras e dependência do imperialismo), não é para a classe trabalhadora. Ela, junto com o povo pobre e oprimido pode sim acabar com a alta concentração de terras, a dependência em relação ao imperialismo e combater de frente todas as profundas consequências, como a baixíssima qualidade de vida dos brasileiros. A Inconfidência Mineira tem um significado histórico profundo e é essencial para compreender o que somos hoje. Mas vai empalidecer frente à ação das massas dos dias de hoje tomando em suas próprias mãos seus destinos.

[1] Liana Maria Reis, Crimes e Escravos na Capitania de Todos os Negros (Minas Gerais, 1720-1800), p.211. O “país” a que se refere o documento são as Minas, não o que hoje conhecemos como Brasil. Mas isso não diminui a força do medo e da repulsa dos oficiais e dos responsáveis pela ordem em relação aos quilombolas, que eram muitos e tinham uma relação fluida com a cidade. Não é exagero algum dizer que em vários momentos esse medo chegou ao ponto de pânico.

[2] Benedict Anderson, Comunidades Imaginadas, p. 62

 
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