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INDÍGENA MURA SE DOUTORA NA USP
Uma defesa de tese histórica na USP
Fernando Pardal

Nessa quinta-feira ocorreu na USP a defesa da tese de doutorado em história de Márcia Mura, militante da causa indígena. Compondo a banca estava o professor Casé Angatu Xukuru Tupinambá. Um momento histórico pras universidades.

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A USP é um símbolo do que é a tradição da universidade brasileira: uma instituição elitista, racista, excludente, um local onde se produz um conhecimento voltado quase exclusivamente às necessidades da burguesia e da elite paulistana e brasileira. É uma universidade que se orgulha de sua meritocracia, e cujo Conselho Universitário já rejeitou até mesmo a implementação de cotas para negros e indígenas com base em argumentos racistas dignos do século XIX. Não é à toa: ela foi fundada em 1934, após o fracassado levante da burguesia paulistana contra o governo Vargas, mal chamado de “Revolução de 1932”, com o objetivo de formar quadros para essa elite que queria dirigir o país para garantir seus próprios privilégios. Ali se propaga até hoje teorias racistas como a da "democracia racial" de Gilberto Freire, que ajudam a perpetuar a política racista de estado sob um manto de "país democrático"; sobre os povos indígenas então, nem se fale do racismo institucional da USP...

E hoje esse projeto de universidade avança cada vez mais, com a tentativa do governo e da reitoria de acabar com as conquistas democráticas que as mobilizações de estudantes, trabalhadores e (outrora) professores conseguiram garantir, como o Hospital Universitário, que vem sendo precarizado a cada dia, as creches, a sede do Sindicato dos Trabalhadores da USP, o ataque às pesquisas, entre tantos outros.

Mas, em meio a esse cenário de ataques, sempre encontramos a luta e a resistência. E ontem ocorreu um momento expressivo dessa luta daqueles que lutam contra o que essa universidade representa, que produzem um pensamento crítico na contracorrente da academia. Foi a defesa da tese de doutorado de Márcia Mura, historiadora de Rondônia, pertencente ao povo Mura, cujo trabalho defendido ontem traz, em 820 páginas, 28 narrativas que apresentam os modos de vida, as tradições, o pensamento e a vida do povo Mura.

Márcia é dessas guerreiras que conquistou, ao custo de muita luta e esforço, um espaço nessa academia branca e burguesa que não quer os indígenas dentro dela. E esse espaço que ela conquistou não é um espaço destinado a seu próprio prestígio ou enriquecimento, mas é um espaço para a luta, a história e o conhecimento que a tradição da história oral de seu povo tem pra dizer. E sua tese é uma arma para essa luta, é um ponto de apoio para a vida e a resistência dessa memória em uma sociedade capitalista que segue, há mais de 500 anos, cometendo um cotidiano genocídio e etnocídio dos povos indígenas nativos do Brasil.

Além das narrativas, a tese de Márcia apreende um momento histórico em que as usinas hidrelétricas do PAC representaram mais um ataque imenso às populações indígenas, que tiveram suas casas, suas terras, seu plantio, seu sustento, alagados e destruídos pelo “progresso” desse estado genocida. As páginas de Márcia são um documento desse massacre, mas também da luta, da resistência desses povos. Assim como são um documento do que é o apagamento da identidade indígena, pois o que Márcia faz é retratar como nas comunidades ribeirinhas do Rio Madeira – que não são considerados pelo estado como comunidades indígenas – estão vivos e presentes os modos de ser, pensar, viver dos Mura. Em meio a cada pequeno gesto cotidiano vivem as tradições Mura.

A banca, como apontou Márcia, foi escolhida para expressar pessoas que contribuíram com o processo dela de elaboração dessa luta dentro da academia, constituindo assim, também uma narrativa da trajetória de luta de Márcia, e portanto dos Mura, dentro desse campo de batalha inimigo onde ela ousou colocar seus pés. A história de luta dos Mura é longa, e uma das professoras da banca fez uma analogia dizendo que a resistência Mura ao processo de colonização foi como “um Palmares do século XVIII”. Sua luta aguerrida contra a devastação, a escravização e o genocídio dos brancos é um exemplo de resistência que deveria ser ensinado em cada escola, e que lhes rendeu a fama de “selvagens”, “violentos”, e outras características que os brancos lhes atribuíram e que até hoje geram sua estigmatização.

Márcia mostrou que a luta dos Mura está bem viva em seu sangue, e isso ficou bem claro com o encerramento feito por seu orientador, o professor José Carlos Sebe Bom Meihy. Ele falou sobre as “impertinências” de Márcia, de sua resistência a se adaptar a certas “exigências acadêmicas” e manter sua tese tal qual ela julgava que deveria ser. Entre as objeções que foram feitas ao seu trabalho estavam o seu tamanho, já que Márcia fez questão de incluir na íntegra as 28 narrativas das entrevistas que fez, vendo isso como parte fundamental do seu trabalho; ou ainda o ponto de vista, já que seu orientador insistia que se entrevistasse também “o outro lado” da história, como parte da velha tradição de isenção e neutralidade da academia. Segundo Sebe, no entanto, Márcia disse que não era esse o trabalho que queria fazer e se recusava a entrevistar seus inimigos. E, apesar de toda a pressão que a academia e os orientadores podem exercer em qualquer orientando, ainda mais em alguém que, como Márcia, está sujeita a todo tipo de barreiras discriminatórias e preconceitos por ser Mura, ela venceu e provou a sua capacidade de resistir em solo inimigo: apresentou a tese tal qual queria. Sebe ainda comentou sobre as vestimentas tradicionais do povo de Márcia, as quais ela fez questão de usar em sua defesa e em diversos outros momentos. Ele disse como a academia foi obrigada a “engolir” o fato de que ela utilizava as vestimentas de seu povo em diversos momentos que dificilmente seriam considerados “apropriados”.

Como apontou outra professora da banca, a luta de Márcia dentro da academia não esteve apenas na construção de sua tese. Durante sua estadia em São Paulo e na USP participou ativamente na organização das lutas indígenas dentro e fora da universidade. Organizou saraus, rituais dos povos indígenas dentro dos espaços da universidade, e teve um papel fundamental num legado que ficará agora que Márcia retorna para Rondônia: a criação do Movimento Levante Indígena na USP, cujo manifesto será entregue hoje à reitoria em um ato simbólico da resistência dos indígenas dentro dessa universidade e da organização e luta por suas demandas.

Casé Angatu, professor universitário e importante ativista da causa indígena, chamou a atenção durante sua fala para o caráter histórico daquele momento, em que uma defesa de doutorado na USP reunia dois indígenas e lutadores da causa indígena, um feito certamente inédito em uma universidade racista como essa. O público que foi presenciar esse momento histórico também surpreendeu a banca: foram cerca de 50 pessoas que ocuparam todas as cadeiras e tiveram que se espalhar em pé pela sala para poder participar das mais de quatro horas de defesa da tese de Márcia. Um momento que certamente não será esquecido e que será semente de muitas outras lutas e resistências.

Abaixo, deixamos um vídeo da fala que Márcia Mura fez na abertura da defesa, um trecho da arguição de Casé Angatu, e o texto que esse postou em sua página do Facebook comentando a defesa de Márcia.

Márcia Mura na abertura da defesa

Trecho da arguição de Casé Angatu

Casé Angatu em sua página do Facebook:

RETOMANDO NOSSAS ANGAS E SABEDORIAS!
(não foi somente uma banca de doutorado)
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Banca de Doutorado em História (FFLCH-USP) da Cunhã Gwarini Atã Poranga Márcia Mura com a participação do Aba Gwarini Atã Casé Angatu Xukuru Tupinambá. Foi ontem um dia bem especial mesmo: 06/05/2016. Mas não foi somente uma Banca de Doutorado, como também tem ocorrido com outras bancas que tenho participado com pessoas que são da luta pela vida.
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No caso da banca de Márcia teve um feitiço ainda especial porque foi um momento histórico. Não sei muitos perceberam: talvez seja a primeira vez na USP, quem sabe nas universidades brasileiras, que dois indígenas da Luta por seus Povos participam numa mesma banca de doutorado. Dois Indígenas que não se iludem e deslumbram com a academia, mesmo sendo a USP.
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Um Indígena já Doutor pela FAU-USP com o membro da Banca e outra Indígena Doutoranda (agora Doutora) pela FFLCH-USP na mesma Banca. Mais o importante não é porque somos doutores pela USP, mas o sentido disto.
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É assim mesmo, acho que nos parecemos muito em nossos sentidos. Nascemos, cada um ao seu modo, pra quebrar tabus e retomar aquilo que somos parte. Queremos de volta e pra sempre:
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  •  nossos Territórios e Natureza ... não como propriedades e sim porque somos partes .
  •  nossos Saberes/Memórias Ancestrais...não como propriedades intelectuais e sim porque somos partes .
  •  nossas Tekohas . Precisamos como ritual retomar conhecimentos e histórias que partem de nossas sabedorias e memórias ancestrais e naturais. Não queremos retomar para sermos apenas acadêmicos e sim para devolvermos aos nossos Povos Originários. . Queremos Doutores em Índios, mas queremos, acima de tudo, Índios Doutores. . Mais continuamos sentindo no profundo de nossas angas: .
  •  entre a sabedoria e o conhecimento ... ficamos com a Sabedoria .
  •  entre a memória e a história ... ficamos com a Memória .
  •  entre a academia e a natureza ... ficamos com a Natureza Sagrada e Encantada
    .
    Salve nossas Anciãs, Anciões, Cunhatãs e Curmumins ...
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    Reparem que na imagem estamos sorrindo ... sinto que sorriamos porque sabemos que a academia é passageira, mas a sabedoria de nossos ancetrais e encantadas é perene.
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    DEMARCAÇÃO JÁ !
    .
    GARANTIAS AOS TERRITÓRIOS JÁ DEMARCADOS !
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    RESPEITO AS DIFERENTES ALTERIDADES DOS POVOS INDÍGENAS !
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    LIBERDADE ÀS NOSSAS PRESAS E AOS NOSSOS PRESOS!
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    "Todo Índio tem ciência
    Todo Índio tem ciência
    Oh, Tupã porque será
    Oh, Tupã porque será
    Tem a ciência divina
    Tem a ciência divina
    No tronco do Jurema
    No tronco do Jurema"
    .
    Awerê!
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