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ENTREVISTA
Pesquisadora da Unicamp denuncia a superexploração do trabalho dos cortadores de cana em novo estudo
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A pesquisadora Juliana Guanais defendeu recentemente sua tese de doutorado no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da UNICAMP tratando do tema da superexploração do trabalho dos cortadores de cana. Nessa entrevista, ela aponta como se dá a (super)exploração do trabalho, denunciando a estratégia das empresas e apontando formas para pensar a luta contra a exploração e a importância estratégica desse setor (e os trabalhadores rurais em seu conjunto) para pensar um projeto de transformação social para além dos limites do capital.

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Entrevista realizada por Iuri Tonelo

1) Poderia nos dar um panorama sobre a situação dos cortadores de cana no país? Como se configuram as condições de trabalho de um modo geral?

Não apenas os cortadores de cana, mas os assalariados rurais em geral são completamente invisíveis para a sociedade brasileira, e isso se reflete até mesmo dentro das universidades, no pequeno número de pesquisas que envolvem essa categoria.

Os cortadores de cana existem desde que essa atividade foi introduzida no Brasil, no século XVI, e de lá para cá muito pouca coisa mudou, a começar pelo próprio instrumento de trabalho desses trabalhadores, o podão (um tipo de facão), que é o mesmo desde aquela época. As condições de trabalho continuam sendo as piores possíveis: jornadas de trabalho extensas e intensas, salários baixíssimos, metas de produtividade a serem alcançadas diariamente, condições precárias de comida e alojamento, etc.

Contudo, a partir dos anos 2000, após começarem a se tornar frequentes as notícias sobre as mortes de cortadores de cana no meio de sua jornada de trabalho e as denúncias sobre trabalho escravo, o Ministério Público do Trabalho passou a dar uma maior atenção ao setor, e foi a partir daí que a fiscalização aumentou em algumas usinas. Isso trouxe alguns avanços, como por exemplo, a formalização do emprego (traduzido no aumento do número de registros em carteira) e a abolição do trabalho infantil.

Infelizmente esse movimento acabou se concentrando mais no Sudeste, pela maior visibilidade dessa região, fazendo com que as usinas de outras regiões, como por exemplo, nordeste e centro-oeste, continuassem descumprindo a legislação trabalhista e submetendo os cortadores de cana a condições de trabalho desumanas e degradantes.

2) Quais as estratégias as empresas utilizam para manter um alto grau de exploração desses trabalhadores?

As estratégias utilizadas pelas usinas são as mais variadas possíveis. Além do pagamento por produção, que abordarei adiante, citarei as duas mais importantes.

Um exemplo de estratégia é a imposição da “média”, isto é, uma produtividade diária mínima (medida em toneladas de cana) que deve ser atingida pelos trabalhadores para conseguirem manter seus postos de trabalho. Ao não conseguirem alcançar a “média” diária estipulada pela usina para qual trabalham – que atualmente gira em torno de 10 ou 12 toneladas/dia por trabalhador - os cortadores de cana são demitidos. Com isso percebemos que esta imposição da “média” diária de produção é extremamente importante para as empresas, que a utilizam como uma forma de selecionar somente os trabalhadores mais produtivos, que são aqueles que realmente as interessam.

O aspecto que mais merece destaque é que com o passar dos anos a “média” teve um aumento muito expressivo. Se na década de 1980 os trabalhadores tinham que cortar entre 5 e 8 toneladas por dia para manter seu emprego, hoje em dia são obrigados a cortar entre 10 e 12 toneladas. E foi nesse contexto de aumento das cobranças e das metas de produtividade que começaram a se tornar frequentes os acidentes, os adoecimentos e até mesmo as mortes de trabalhadores rurais no meio de sua jornada.

Outra estratégia são as competições/premiações, tais como o “Prêmio do final da safra”, que são possíveis justamente porque os cortadores de cana ganham por produção. Ao longo de toda a safra os cortadores de cana têm seus índices de produção registrados pelas usinas e ao final do ano as empresas distribuem alguns prêmios (tais como celulares, eletrodomésticos, bicicletas, etc.) para aqueles que obtiveram os maiores índices de produtividade. O prêmio máximo – normalmente uma moto ou um carro – geralmente é dado somente a um trabalhador, justamente aquele que cortou a maior quantidade de cana dentre todos os demais, e que não teve faltas no serviço. O vencedor de tal competição normalmente é conhecido como “Podão de ouro”.

Não é difícil perceber que essa prática acaba por incitar ainda mais a competição entre os trabalhadores, que muitas vezes passam a se empenhar além do suportável para cortar mais cana do que aguentariam em condições normais com vistas a ganhar os prêmios oferecidos pelas usinas. E mais. Da mesma forma como a imposição da “média”, essas premiações também são utilizadas pelas usinas com o intuito de aumentar ainda mais a intensidade do trabalho e, portanto, a produção dos cortadores de cana.

3) Entre essas estratégias, as empresas buscam se utilizar do "pagamento por produção", no caso, o volume do corte de cana, como forma de atingir um maior grau de exploração. Como se dá esse mecanismo? Ele realmente potencializa a exploração? Como os trabalhadores enxergam essa forma de pagamento?

O pagamento por produção é uma forma específica de remuneração que está presente não apenas no meio rural, mas também no urbano, e possui ampla base legal, já que é previsto na Consolidação das Leis de Trabalho (CLT). De acordo com a lógica dessa modalidade salarial, a remuneração de um trabalhador é equivalente à quantidade de mercadorias produzida pelo mesmo. Isto é, o salário a ser recebido não terá como base as horas por ele trabalhadas, mas sim a quantidade de produtos que serão produzidos no decorrer de sua jornada de trabalho. No caso específico dos cortadores de cana, essa lógica pode ser resumida pela seguinte expressão “quanto mais de corta, mais se ganha”.

No caso da agroindústria canavieira, além de impedir que os cortadores de cana tenham o controle de seu processo de trabalho e de seu salário e possibilitar os mais diversos tipos de roubos por parte das usinas, o pagamento por produção também traz muitas outras vantagens para os capitalistas. Por exemplo: ao ter seu salário atrelado à quantidade de cana que é capaz de cortar em sua jornada de trabalho, é compreensível que os trabalhadores invistam o máximo possível de suas forças e de suas energias para produzirem cada vez mais, atitude extremamente importante para os usineiros. Neste contexto o aumento da intensidade do trabalho acaba surgindo por parte dos próprios trabalhadores, interessados em receber um salário um pouco melhor. E mais. Quando recebem por produção os trabalhadores também demonstram maior disponibilidade para o prolongamento de sua jornada de trabalho – seja via horas extras ou trabalho aos domingos e feriados - para que assim possam trabalhar por mais tempo e aumentar sua produção diária. E isso porque, como já disse, de acordo com a lógica do pagamento por produção, ao produzirem mais, recebem mais.

Com esses e outros exemplos que infelizmente não poderei citar aqui porque são muitos, fica evidente que por meio do pagamento por produção o capital consegue potencializar, e muito, a exploração do trabalho.

Já a questão sobre qual a opinião dos trabalhadores sobre o pagamento por produção é bastante complexa. A partir das minhas entrevistas com os cortadores de cana pude verificar que a maioria deles prefere o pagamento por produção por ser essa uma modalidade salarial que lhes proporciona a possibilidade de receber um salário um pouco melhor do que ganhariam caso recebessem por intermédio de outra forma de remuneração. Mas, como fiz questão de destacar em meu trabalho, aquilo que pode aparecer como um “desejo” dos trabalhadores de ganhar cada vez mais, na realidade deve ser entendido como uma necessidade imanente às suas condições materiais de vida.

Além disso, seria ingenuidade pensar que os trabalhadores rurais preferem o pagamento por produção sem levar em consideração as reais opções que possuem. Como deixo claro em meu trabalho, a todo momento os assalariados avaliam sua forma de remuneração em relação às outras formas de pagamento existentes: a diária e o salário fixo.

Quando recebem por diária, os trabalhadores recebem um valor fixo por dia - que não varia em função da produtividade atingida por cada um - e isso acaba fazendo com que eles recebam um salário muito menor do que aquele recebido por aqueles trabalhadores que ganham por produção. Além da diária, outra opção seria as usinas deixarem de pagar por produção e passarem a pagar um salário mensal fixo aos cortadores de cana. Mas, caso isso ocorresse de verdade, muito provavelmente o valor pago seria definido de antemão pelas empresas, sem qualquer participação ou interferência dos trabalhadores e sindicatos, e muito possivelmente seria uma quantia muito baixa, parecida com o piso da categoria - que não tem um reajuste significativo há décadas - ou com o salário mínimo, valores irrisórios.

Em um contexto tão adverso como esse, o pagamento por produção acaba sendo a única opção real que os trabalhadores têm para tentar ganhar um salário um pouco melhor; ainda que extremamente baixo e insuficiente para assegurar de forma digna e satisfatória a reprodução social dos trabalhadores e suas famílias, como fiz questão de destacar em meu trabalho.

O que poderia mudar esse cenário é o crescimento do grau de organização e as lutas de trabalhadores e sindicatos para a elevação do piso salarial da categoria, que é o que fornece a base para o salário fixo. Com um piso elevado, minimamente condizente com o aumento brutal de produtividade que passou a ser exigido dos cortadores de cana nas últimas décadas, os trabalhadores poderiam vislumbrar a possibilidade de não mais receber por produção.

4) Sua pesquisa buscou jogar luz na especificidade da (super)exploração dos trabalhadores da cana? Qual contribuição buscou oferecer relacionando a superexploração, a intensificação do trabalho e o pagamento por produção?

Minha pesquisa teve como objetivo principal analisar a relação entre pagamento por produção, intensificação do trabalho e superexploração na agroindústria canavieira brasileira e demonstrar as conexões indesatáveis entre esses fatores. O referencial teórico foram os trabalhos de Ruy Mauro Marini e de outros representantes da vertente marxista da Teoria da Dependência. Partindo disso, tentei responder a algumas perguntas, como “é possível se falar em superexploração do trabalho no caso específico dos cortadores de cana brasileiros?”; “existe relação entre pagamento por produção e superexploração do trabalho?”.

Como conclusão geral consegui comprovar que existe superexploração no caso específico que estudei porque ao mesmo tempo em que os cortadores de cana estão tendo uma elevação no valor de sua força de trabalho – em função da combinação entre intensificação do trabalho e prolongamento de jornada laboral - essa elevação não é acompanhada por um aumento proporcional dos salários, o que significa que esses trabalhadores estão sendo pagos por debaixo de seu valor.

Mas, quais são as consequências disso para os trabalhadores? Como deixei claro, nas situações em que a elevação no valor da força de trabalho não é acompanhada por um aumento proporcional dos salários, o padrão de vida dos trabalhadores e suas famílias piora muito, já que nessas circunstâncias os mesmos terão cada vez mais dificuldade para conservar sua força de trabalho em estado normal e só conseguirão se manter e se reproduzir de forma precária e parcial.

Ao reduzir o consumo dos trabalhadores mais além de seu limite normal os mesmos passam a ser privados até mesmo do consumo daqueles meios de subsistência imprescindíveis à conservação de sua força de trabalho em estado normal, o que também traz consequências nefastas à saúde e à reprodução dos mesmos. Ao trabalharem cada vez mais e/ou por mais tempo, e ao não conseguirem repor todo o gasto adicional que tiveram, os assalariados rurais acabam arcando não apenas com o esgotamento precoce de sua força de trabalho, mas também com transtornos psicofísicos provocados pelo excesso de fadiga.

Os acidentes de trabalho, as doenças ocupacionais, os casos de aposentadoria por invalidez, e até mesmo a morte prematura, são outras mazelas que também acabam surgindo como decorrência deste processo em que não somente a força de trabalho é consumida, mas a própria vida dos assalariados. São também a materialização da superexploração.

Daí fica a pergunta: mas como é possível se acabar com a superexploração do trabalho? Como deixei claro, a despeito da abolição do pagamento por produção e sua substituição por um salário mensal fixo ser de certa forma benéfica aos trabalhadores – sobretudo quando pensamos em suas condições de trabalho e em sua saúde – ela não é suficiente. Isso porque a superexploração do trabalho só acaba com o próprio modo de produção capitalista. Apenas com uma transformação radical deste modo de produção é possível acabarmos de fato com a superexploração do trabalho.

5) Tomando mais de conjunto a questão dos assalariados agrícolas e rurais, você acredita que é estratégico para a luta dos trabalhadores urbanos buscar uma aliança com este setor na perspectiva de uma transformação social? 

Essa é uma questão interessante. Não podemos perder de vista que os assalariados rurais também são proletários, são os proletários do campo. Da mesma forma que os trabalhadores urbanos, os trabalhadores rurais também são obrigados a vender sua força de trabalho todos os dias para poder sobreviver. E se são proletários, por que não pensar numa aliança entre eles e os demais proletários?

Infelizmente a maioria dos partidos de esquerda tradicionais não dá muita atenção a essa categoria, seja por desconhecimento da história agrária de nosso país, seja por pensar que todos os trabalhadores do campo são camponeses. É claro que no campo brasileiro há inúmeras nuances que temos que levar em consideração. Por exemplo, dentre os milhares homens e mulheres que fazem parte do MST, há aqueles que vivem em áreas rurais mas que são obrigados a se assalariar – no campo ou na cidade –; por outro lado, também existem aqueles que conseguem sobreviver apenas do que produzem em seus lotes de terra.

Não podemos nos esquecer que juntamente com os outros trabalhadores do primeiro setor, sobre os assalariados rurais recaem as piores mazelas deste nosso capitalismo dependente. Além dos cortadores de cana, basta lembrar dos trabalhadores da mineração e do garimpo, por exemplo, que também sofrem com condições degradantes de trabalho. Por conta de tudo isso, acredito ser extremamente urgente e necessário para os partidos e organizações de esquerda, dar a devida importância para os proletários do campo. Da mesma forma que os trabalhadores urbanos, os assalariados rurais também são sujeitos revolucionários, e sem o apoio deles, a revolução perderia muita força.

Se as montadoras de carros já têm um prejuízo enorme quando os trabalhadores resolvem parar a produção e entrar em greve, o que não aconteceria se os cortadores de cana, os trabalhadores da soja e os da mineração cruzassem os braços? O que aconteceria com as exportações de nossas commodities agrícolas, que são o que dão sustento à nossa economia? A partir desse exemplo percebemos a importância estratégica dessa categoria.

 
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