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Frente de Esquerda na Argentina
"Os exemplos da FIT-U argentina devem ser tomados atentamente por quem busca enfrentar a conciliação no Brasil", diz Marcello Pablito
Marcello Pablito
Trabalhador da USP e membro da Secretaria de Negras, Negros e Combate ao Racismo do Sintusp.

As lições e os exemplos da esquerda argentina, a partir da Frente de Esquerda e dos Trabalhadores-Unidade (FIT-U, pela sigla em espanhol), devem ser analisados atentamente por todos que querem pensar a tarefa de construção e fortalecimento de uma esquerda com independência de classe no Brasil para enfrentar Bolsonaro, a extrema direita e os ataques do regime, em um momento marcado pela diluição do PSOL na chapa Lula-Alckmin e sua federação com a Rede de Marina Silva, uma crise histórica desse setor da esquerda brasileira.

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A FIT é um bloco político-eleitoral que se conformou em 2011, com a participação do PTS (organização-irmã do MRT no Brasil), PO e IS (organização-irmã da CST, corrente do PSOL no Brasil), contando posteriormente com a incorporação do MST e se tornando FIT-Unidad. Unindo organizações de tradição trotskista, trata-se da experiência mais avançada em todo o mundo de uma esquerda com independência de classe para que os capitalistas paguem pela crise, tendo, nas últimas eleições, consolidado sua posição como terceira força nacional na Argentina. Sua experiência merece ser analisada atentamente por todos os setores que buscam construir uma força independente da conciliação petista com a chapa Lula-Alckmin, para enfrentar a extrema direita de Bolsonaro no Brasil.

A FIT-U obteve os melhores resultados em 2021 desde sua fundação, sendo mais de 1,3 milhão de votos em todo o país e elegendo 4 deputados federais no Congresso. Entre eles, elegeu a primeira deputada federal da esquerda há 20 anos pela Cidade de Buenos Aires, com Myriam Bregman, sendo que, no conurbano bonaerense, coração do proletariado argentino e bastião do peronismo, a Frente de Esquerda conquistou cerca de 10% dos votos, justamente nos distritos mais pobres (La Matanza, Merlo, Morón, Moreno, José C Paz, etc.), arrancando influência do kirchnerismo. Já o gari indígena Alejandro Vilca se elegeu obtendo 25% dos votos em Jujuy, com destaque para bairros populares e cidades como Alto Comedero, Caimancito, El Carmen, Palpalá e Humahuaca, onde os votos chegavam a 30%, acima do peronismo.

A FIT-U alcançou isso mediante a agitação de um programa anticapitalista e socialista dirigido especialmente aos setores que começam a fazer experiência e a se desiludir com as promessas do peronismo e do reformismo burguês kirchnerista, que por sua vez também veio abrindo espaço à extrema direita dos liberais na Argentina. A esquerda argentina mostra, portanto, que é possível conquistar expressivos resultados eleitorais utilizando a bancada parlamentar para apresentar às massas ideias revolucionárias, que sirvam para fazer avançar a consciência dos trabalhadores, da juventude e de todos os setores oprimidos, impulsionando a luta extraparlamentar.

Mas essa frente política eleitoral só foi possível porque, desde sua fundação, o que marca a união entre os partidos que compõem a FIT-U é um programa comum contra todas as variantes burguesas, patronais e de centro-esquerda do regime argentino, que culmina na defesa de um governo de trabalhadores em ruptura com o capitalismo. Como afirma, "a Frente de Esquerda se valerá da campanha eleitoral para mobilizar politicamente as franjas conscientes de trabalhadores e lutadores populares em todo o país, para impulsionar sobre a base de um programa um polo político independente, claramente delimitado das frações capitalistas, incluídas as de centro-esquerda, tornando os trabalhadores um fator político decisivo capaz de dirigir o conjunto da nação explorada contra o capitalismo e o imperialismo. A luta eleitoral da Frente de Esquerda está a serviço de organizar e elevar os trabalhadores à luta por seu próprio governo".

Um programa para que os capitalistas paguem pela crise por uma saída dos trabalhadores

Neste momento, dois terços dos votantes da Frente de Todos, a coalizão no governo, avaliam negativamente o presente econômico na Argentina, uma vez que os capitalistas vieram lucrando mais e o povo trabalhador vem aprofundando sua miséria. Já nas eleições de 2019, marcadas pela ilusão de massas no mal menor com o peronismo e no retorno utópico às condições dos chamados “governos pós-neoliberais” dos anos 2000, a FIT-U utilizou sua participação nas eleições para batalhar pacientemente contra essas ilusões e fincar a ideia de que, sob o jugo dos ajustes do FMI imperialista, era impossível uma saída da crise a serviço das maiorias populares. Isso se mostrou na prática.

Novamente em 2021, a FIT agitou desde medidas imediatas, em defesa dos salários e aposentadorias contra a inflação, para que ninguém ganhe menos do que a cesta básica necessária para sustentar uma família, com reajuste automático para que a classe trabalhadora não pague os custos da crise, à ruptura com o regime do FMI e o não pagamento da dívida pública. Isso pode ser visto neste e neste spot de campanha, em defesa dos salários, contra os ajustes e pela ruptura com o FMI a serviço de uma saída da classe trabalhadora. Ligado a isso, a FIT-U defende a nacionalização do sistema bancário e financeiro, sem indenizações, preservando as poupanças dos setores populares, e a formação de um banco único, público, sob gestão dos trabalhadores, que financie também obras públicas, como escolas, hospitais e habitação. Ao mesmo tempo, levanta o controle sobre o comércio exterior sobre bases nacionais, ou seja, que todos os exportadores entreguem o que vai ser exportado para uma instituição criada pelo Estado que comercializa e administra o relacionamento com outros países. Um programa como esse não pode ser encontrado hoje na esquerda brasileira, que tem abdicado de agitar até mesmo o programa limitado e reformista da auditoria da dívida pública.

Além disso, o lema “trabalhar menos, trabalhar todos”, por 6 horas em 5 dias na semana, tornou-se uma marca da FIT-U nas últimas eleições, com vídeo de campanha, em resposta aos altos índices de precarização do trabalho, com longas jornadas e desemprego, e propostas burguesas como uma reforma trabalhista argentina. Assim como no Brasil, o regime político argentino diz que é preciso perder direitos para ter empregos. Já a FIT-U defende que, reduzindo a jornada de trabalho, com a divisão das horas entre empregados e desempregados, garantindo direitos a todos, é possível responder ao desemprego. Essa medida enfrenta os lucros e a irracionalidade capitalista e só poderia ser conquistada por meio do combate, auto-organização e unificação dos setores da classe trabalhadora.

Por fim, enquanto o governo argentino veio abrindo espaço para os “celestes”, isto é, políticos do regime que são contrários ao direito ao aborto e à separação da Igreja e Estado, como Mansur, no Brasil, as feministas do PSOL abdicam definitivamente da defesa séria desse direito elementar colocando-se ao lado de figuras anti-aborto como Marina Silva e Heloísa Helena. A FIT-U, por sua vez, foi a única bancada que esteve integralmente em defesa do direito ao aborto e reafirma que foi a luta das mulheres que arrancou o aborto legal e que as mulheres não podem confiar nos governos, já que é necessário seguirem organizadas pela garantia do acesso a seus direitos, mas também contra os feminicídios e para que a crise não recaia ainda mais duramente sobre seus ombros.

Sempre do mesmo lado, uma expressão eleitoral ancorada na luta de classes

Desde seu surgimento, enfrentando medidas restritivas do regime eleitoral anti-democrático pela via do fortalecimento da esquerda, ao contrário do que faz o PSOL em federação com a golpista e burguesa Rede, os representantes da FIT, especialmente com o PTS, têm participado das principais lutas do país, sempre lado a lado aos setores oprimidos e explorados. Por isso, é impossível compreender os resultados eleitorais da FIT em 2021 por fora das mudanças ocorridas na própria subjetividade da classe trabalhadora argentina, com alguns importantes focos de luta inclusive em setores mais precários da classe trabalhadora, e a intervenção decidida de representantes da FIT, na linha de frente do apoio e participação nesses processos, impulsionando cortes de rodovia e enfrentando as medidas de repressão lado a lado. Já que as eleições expressaram votações majoritárias nos partidos tradicionais do regime mas decepção, isso foi o que permitiu, em meio a uma polarização latente à esquerda e à direita, com o fortalecimento também de Milei e sua corja, a capitalização à esquerda pela FIT-U.

O conflito de 2020 com a ocupação de Guernica foi um símbolo disso. Milhares de famílias desabrigadas foram despejadas, a pedido dos proprietários dos countries, pelo governo no qual elas haviam votado, à base de repressão, enquanto a esquerda resistia ao seu lado. Não à toa, alguns dos chamados "vizinhos" da Assembleia Permanente, que são parte da luta por terra e moradia, organizaram comitê de campanha pela FIT-U nas eleições. Da luta das trabalhadoras "elefantes" dos auto-convocados da saúde de Neuquén, às fábricas sob gestão operária de Madygraf e Zanon, passando pelos conflitos dos vitivinícolas de Mendonza, citricultores de Tucumán e portuários de Buenos Aires, a esquerda tomou parte.

Do mesmo modo, essa expressão eleitoral pode ser encarada também como preparatória para os embates na luta de classes subsequentes, em um momento de crescentes crises do peronismo no governo, e a aposta da FIT de que a decepção de amplos setores se transforme em luta, rompendo a passividade imposta pelas burocracias sindicais. Por isso, logo após as eleições, já em 11 de Dezembro, a FIT-U, junto a mais de 100 organizações sociais, impulsionou uma marcha contra os acordos de Fernández com o FMI que mobilizou milhares, com colunas de trabalhadores e jovens de diversos locais de estudos e trabalho, que foi noticiada na mídia argentina, como aqui e aqui e diversas outras.

O mesmo voltou a se repetir no dia 8 de Fevereiro, quando, diante de novas marchas expressivas, alguns meios deram destaque também ao rechaço ao pagamento da dívida, com cobertura de reivindicações da esquerda como "que a dívida a paguem os que a geraram", como aqui e aqui.

Tudo isso vem acompanhado de um rechaço contundente a partir da bancada parlamentar, em que os deputados da FIT são porta-vozes contra os acordos e ajustes do governo com o FMI. Já no dia 24 de Março, há 46 anos do golpe militar argentino, a mídia destacou, a partir das ruas, a declaração dos parlamentares da FIT-U: "neste 24, voltamos a marchar junto ao Encontro Memória, Verdade e Justiça de forma independente, porque repudiamos que essa data história seja ultilizada para apagar as internas de um governo que administrou a herança macrista e agora se propõe a co-governar com o FMI". Como se noticiou aqui, a esquerda marchou neste dia de forma independente do governo.

Em um cenário de passividade das direções burocráticas do movimento de massas, essa combinação entre uma posição firme no Congresso e o impulso à luta extraparlamentar, nas ruas e locais de trabalho e estudo, colabora para que mais setores populares façam experiência com o governo e avancem contra suas medidas ajustadoras.

Debates permanentes e abertos na FIT-U, como forma de batalhar para reagrupar a vanguarda

Ao mesmo tempo, partindo desse papel extremamente progressista que a FIT-U tem cumprido, as organizações que dela fazem parte não se furtam de sustentar permanentemente os debates que marcam as diferenças entre essas organizações, tanto no terreno nacional, como internacional. O MST, que é parte da FIT-U, saiu no país inteiro com uma chapa própria nas eleições prévias do ano passado, contra as outras três forças (PTS, PO e IS); ademais, levanta com insistência a ampliação da FIT-U a forças que não defendem a independência de classe, algo com que o PTS se diferencia abertamente.

Além disso, há exemplos como o debate em torno da administração dos planos estatais por parte do PO e o papel da auto-organização e da unidade das fileiras operárias, como aqui, aqui e aqui, além de diferenças de caracterização da situação nacional e das dinâmicas da crise capitalisa.

A FIT conflui em pontos importantes da situação internacional, contribuindo para demarcar a importância do internacionalismo para a vanguarda. Isso se mostrou diante da pandemia, exigindo vacinas a todos e quebra das patentes, mas também com a posição de independência de classe de repudiar a intervenção imperialista na Venezuela, sem prestar apoio político a Maduro, além de se mobilizando contra a violência policial em apoio à rebelião contra a violência policial nos Estados Unidos. Mas há vários debates internacionais fundamentais, como diante da guerra na Ucrânia, expressos aqui, aqui e aqui, contra posições que cedem à OTAN por parte da IS. Alguns dos principais debates internacionais, que se ligam à França, ao Brasil, ao Peru, estão sintetizados aqui.

O próprio golpe no Brasil marcou diferenças fundamentais dentro da FIT-U, já que, no 1º de Maio de 2016 na Argentina, o PTS realizou um ato internacionalista em frente à embaixada do Brasil em Buenos Aires, com eixo fundamental contra o golpe institucional em curso no Brasil. Essa ação não foi aceita pelo PO (ainda com Altamira) e pela IS, já que a UIT (Unidade Internacional dos Trabalhadores, que impulsiona a CST e a IS) terminou capitulando à posição golpista no Brasil, assim como o PSTU.

Ainda assim, consideramos que esse método de debates abertos e permanentes é fundamental para avançar na reagrupação da vanguarda com bases programáticas, estratégicas e de organização mais sólidas, também deixando claro quais são as diferenças e os empecilhos para a construção de um partido unificado. Somente assim é possível avançar para formas de organização superiores em um sentido revolucionário.

A esquerda brasileira precisa incorporar as lições e exemplos da FIT

Por tudo isso, em um momento em que se coloca a grande tarefa de unir todos os setores que querem enfrentar a política levada adiante pela chapa de Lula com o espancador de professores e inimigo da juventude Geraldo Alckmin e pela união com programa e estatutos comuns do PSOL nos próximos 4 anos com Marina Silva do Banco Itaú, esses exemplos devem servir de inspiração para a vanguarda brasileira, com a firme defesa da perspectiva da independência de classe e de uma saída programática a serviço da classe trabalhadora, sem deixar de fazer abertamente todos os debates necessários para avançar. Inclusive é importante apontar justamente que ter resistido à onda "mal-menorista" em 2019 na eleição Argentina entre Alberto Fernandez e Maurício Macri, retrocedendo em votos e em representação parlamentar em um ano em que a FIT não conquistou novos deputados, foi o que permitiu que, diante da decepção com o governo Fernandez-Kirchner, a FIT pudesse alcançar uma nova localização a partir dessas eleições em 2021, conquistando então 4 deputados federais e um salto na presença política nacional como esquerda classista.

É reivindicando essa tradição que dispomos o meu nome, dentre outras possibilidades, à vice da companheira Vera do PSTU na pré-candidatura presidencial pelo Polo Socialista e Revolucionário, para fortalecer essa perspectiva de um programa de independência de classe, que seja fruto da intervenção unitária nos processos de luta, e também nas eleições no Brasil.

Artigo escrito com a colaboração de Vitória Camargo.

 
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