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4 poemas de guerra ucranianos por Serhiy Zhadan
Luno P.
Professor de Teatro e estudante de História da UFRGS
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Serhiy Viktorovych Zhadan é um poeta, romancista, ensaísta e tradutor ucraniano. Nascido em 1974 perto de Luhansk, Zhadan publicou grandes coleções de poesia, peças de teatro e vários romances curtos. Ele é, por formação, um filólogo, e ao longo de sua escrita é possível encontrar uma compreensão complexa de como as línguas funcionam e se entrecruzam, tornando seus poemas como facas afiadas que retratam uma Ucrânia em convulsão e afogada em guerra. Poemas usados como armas contra as guerras imperialistas, e que se baseiam na experiência própria de Zhadan e no seu ativismo político.

Zhadan teve forte presença durante os protestos em sua cidade natal, Kharkiv, contra o governo de Viktor Yanukovich, em 2013, onde também se tornou um dos poetas mais conhecidos e admirados na Ucrânia, tendo suas obras traduzidas em diversas línguas, mas com uma grande lacuna em traduções para o português. O envolvimento ativo de Zhadan na independência da Ucrânia começou quando era estudante e continuou durante as várias crises políticas na Ucrânia. Em 1992, ele foi um dos organizadores do grupo literário neo-futurista de Kharkiv "The Red Thistle".

Nesse texto, apresentamos 4 textos de guerra deste autor que se tornam ainda mais atuais frente à operação militar russa na Ucrânia que acontece hoje em 2022. Nós do MRT, que impulsionamos o Esquerda Diário e o Seminário de Arte e Cultura “Carcará” lutamos em solidariedade ao lado dos trabalhadores e do povo ucraniano e defendemos: Não à guerra na Ucrânia: fora as tropas russas de Putin, abaixo a OTAN e o imperialismo! Por uma Ucrânia independente, operária e socialista.

  • "Eles enterraram seu filho no inverno passado"

Eles enterraram seu filho no inverno passado.
Um tempo estranho para o inverno — chuva, trovão.
Eles o enterraram silenciosamente — todos estavam ocupados.
Por quem ele lutou? Eu perguntei. Não sabemos, eles dizem.
Ele lutou por alguém, dizem eles, mas quem — quem sabe?
Vai mudar alguma coisa, dizem eles, qual é o ponto agora?
Eu mesmo o teria perguntado, mas agora — já não há necessidade.
E ele não responderia — ele foi enterrado sem a cabeça.

É o terceiro ano de guerra; estão consertando as pontes.
Sei tantas coisas sobre você, mas quem ouviria?
Eu sei, por exemplo, a música que você costumava cantar.
Conheço sua irmã. Sempre tive uma queda por ela.
Eu sei do que você estava com medo, e até mesmo, o porquê.
Quem você encontrou naquele inverno, o que você disse a ele.
O céu brilha, cheio de cinzas, todas as noites agora.
Você sempre jogou para uma escola vizinha.
Mas por quem você lutou?

Por vir aqui todo ano, para a grama seca.
Por cavar a terra todos os anos — pesado, sem vida.
Por ver a calma após a tragédia todos os anos.
Por insistir que você não atirou em nós, no seu povo.
Os pássaros desaparecem atrás de ondas de chuva.
Por pedir perdão por seus pecados.
Mas o que eu sei sobre seus pecados?
Por implorar para que a chuva finalmente pare.
É mais fácil para os pássaros, que não sabem nada de salvação, sobre alma.

  • “Uma ponte costumava estar lá, alguém lembrou”

Uma ponte costumava estar lá, alguém lembrou,
antes da guerra:
uma velha ponte de pedestres.
A patrulha passa a cada cinco horas.
A noite será seca e agradável.

Dois caras mais velhos e um jovem.
Ele leu o crepúsculo como um livro,
alegrar-se, ele repetiu para si mesmo, ser alegre:
você ainda vai dormir
em sua cama hoje.

Hoje você ainda vai acordar em um quarto
ouvindo atentamente seu corpo.
Hoje você ainda estará olhando para a siderúrgica
ficar ocioso durante todo o verão.

Casa que está sempre com você como um pecado.
Pais que nunca envelhecerão.
Hoje você ainda verá um dos seus,
quem quer que seja que você chama de um dos seus.

Ele lembrou da cidade de onde tinha escapado.
o terreno queimado que ele procurou à mão.
Ele lembrou de um homem chorando
salvo pelo esquadrão.

A vida será tranquila, não aterrorizante.
Ele deveria ter voltado há algum tempo.
O que poderia acontecer com ele, exatamente?
O que poderia acontecer?

A patrulha vai deixá-lo passar,
e deus perdoará.
Deus tem outras coisas para fazer.

Todos foram mortos ao mesmo tempo — ambos os caras mais velhos,
e o que era jovem.
Silêncio entre as margens do rio.
Você não vai explicar nada a ninguém.

A bomba caiu entre eles —
naquela margem do rio
mais perto de casa.

A lua apareceu entre nuvens,
ouviu a melodia dos insetos.
Um médico calmo e sonolento
carregou os corpos em um caminhão militar.

Ele brigou com seu câmbio manual.
Procurou o veneno que sobrou em um kit de primeiros socorros.
E um observador que falava inglês
habilmente olhou para os cadáveres.

Até bronzeado.
Boca nervosa.
Ele fechou os olhos do jovem.
Ele pensou consigo mesmo: um povo estranho,
os moradores locais.

  • Quatro Poemas

Imagino como os pássaros vêem:
o ramo negro de um rio,
telhados no inverno,
pedestres perplexos na calçada.

Imagino que seja assustador para os pássaros voarem sobre o rio.

Ainda assim, eles olham para a cidade de cima.
Ao depósito além da estação,
os quintais,
a biblioteca do outro lado do rio,
as páginas cheias das ruas.

Eles repetem este poema de fevereiro,
sabendo-o dos portões a sótãos,
sabendo onde finalmente ele irá parar,
e eles sabem, a propósito, como vai acabar.

O solo emerge
da forma como as características faciais se tornam claras,
os peixes chegarão nas planícies alagadas do rio Donets,
um pouco de escuridão aparecerá no horizonte,
haverá felicidade,
haverão taboas.

A questão é se aquecer entre as pessoas,
amar esse trabalho artel do inverno,
esse sopro inaudível de solo,
seu selo.

Você tem que gritar sobre isso.
E então eles gritam.

* * *

Então eu falarei sobre isso:
sobre o olho verde de um demônio no céu colorido.
Um olho que observa do lado de fora do sono de uma criança.
O olho de um desajustado cuja excitação substitui o medo.

Tudo começou com música,
com cicatrizes deixadas por canções
ouvidas em casamentos de outono com outras crianças da minha idade.

Os adultos que fizeram música.
A idade adulta é definida por isso — a capacidade de tocar música.
Como se alguma nota nova, responsável pela felicidade,
aparecesse na voz,
como se esse dom fosse inato aos homens:
ser ambos caçador e cantor.

Música é o hálito de caramelo das mulheres,
cabelos com cheiro de tabaco de homens que melancolicamente
se preparam para uma luta de facas com o demônio
que acabou de invadir o casamento.

Música além do muro do cemitério.
Flores que crescem dos bolsos das mulheres,
alunos que espiam nas câmaras da morte.

Os caminhos mais batidos levam ao cemitério e à água.
Você esconde apenas as coisas mais preciosas no solo —
a arma que amadurece com ira,
corações de porcelana dos pais que tocarão
como as canções de um coro escolar.

Falarei sobre isso —
sobre os instrumentos de sopro da ansiedade,
sobre a cerimônia de casamento tão memorável
como entrar em Jerusalém.

Defina o ritmo psamítico quebrado de chuva
abaixo do seu coração.
Homens que dançam do jeito que apagam
o fogo com suas botas.
Mulheres que se agarram aos seus homens na dança
como se não quisessem deixá-los ir para a guerra.

Leste da Ucrânia, o fim do segundo milênio.
O mundo está repleto de música e fogo.
Na escuridão, peixes voadores e animais cantores dão voz.

Enquanto isso, quase todos que se casaram morreram.
Enquanto isso, os pais de pessoas da minha idade morreram.
Enquanto isso, a maioria dos heróis morreram.
O céu se desenrola, amargo como nas novelas de Gogol.
Ecoando, o canto de pessoas que reúnem a colheita.
Ecoando, a música daqueles que transportam pedras do campo.
Ecoando, não para.

* * *

Como se este inverno nunca tivesse acontecido,
como se não tivéssemos expectativas, sem preocupações,
não tivéssemos escutado atentamente
os alto-falantes de dezembro,
não tivéssemos hesitado imóveis
antes da verdade orquestral das nevascas.

Como se não fôssemos nós que nos preparamos
para o poder do gelo
nascido da falta de amor.

Tão logo a umidade cursiva do degelo
aparece no ar,
o mundo explode
como uma multidão que mostra
a cabeça decepada de um tirano.

Eterno o fogo sobre os prados.
Eterna nossa devoção ao
coração aberto do rio.

E os primeiros a acordar são sempre
os livreiros nos mercados de rua,
e eles colocam seus tesouros ao longo
da ponte da cidade.

E poetas já estão olhando ao vento
de suas velhas antologias molhadas
inchadas como travesseiros, expulsos das escolas,
mas não banidos da vida,

eles reagem ao riso,
ao farfalhar
de neve sob botas,

eles ajustam suas gravatas,
se aquecem entre
coberturas.

Poetas em quem ninguém confia,
poetas da história da literatura.

Traídos por advogados,
deixados por esposas,
aqueles que se afogaram, se enforcaram, suicidas:

eles contam suas biografias,
cultivam em nós o amor
da vida.

***

Os peixes neste lago são estranhos: não importa quantos peguemos,
não importa quanto tempo nós pescamos — eles não desaparecem.
Não importa quantas vezes os retiramos de suas velhas tocas,
queimando a escuridão com fogo, forçando-os
às profundezas — eles voltam. Não importa quantas crianças
e posses nós arrebatamos de suas mãos — eles continuam vivendo.
Eles cantam sob a lua cheia.
Apaixonam-se sob o sol de verão.
Eles nos lembram de nossa morte —
medida,
implacável,
silenciosa,
cruel.

Os pescadores deste lago têm medo de sair para pegar pães
e queijos — eles continuam pescando, sempre olhando através da água:
uma sombra sem peso aparecerá por um momento, a areia
se moverá sob as barbatanas de ferro pretas.
As sombras assassinas são tão pesadas que nenhuma água resistirá
ao seu peso. O sol pula atrás de suas
queimaduras como um esquilo em um parque da cidade.
Eles permanecem como a morte:
também silenciosa,
persistente,
autoconfiante,
terna.

O lago é redondo.
O lago é profundo.
Você não vai chegar ao fundo.
Não pode pular além de seus limites.
Você só toca no frio cristalino.
Você fica com os bancos.
Tudo está entre eles.
Nada está entre eles.

  • “Pegue apenas o que é mais importante”

Pegue apenas o que é mais importante. Pegue as cartas.
Pegue apenas o que puder carregar.
Pegue os ícones e os bordados, pegue a prata,
pegue o crucifixo de madeira e as réplicas douradas.

Pegue um pouco de pão, os legumes do jardim, e depois vá embora.
Nunca mais voltaremos.
Nunca mais veremos nossa cidade.
Pegue as cartas, todas elas, até a última notícia ruim.

Nunca mais veremos nossa loja de esquina.
Nunca mais beberemos daquele poço seco.
Nunca mais veremos rostos familiares.
Somos refugiados. Vamos correr a noite toda.

Passaremos por campos de girassóis.
Vamos fugir dos cachorros, descansar com as vacas.
Vamos pegar água com nossas próprias mãos,
sentar esperando em campos, irritando os dragões da guerra.

Você não vai voltar e amigos nunca mais voltarão.
Não haverá cozinhas esfumaçadas, nem empregos habituais,
não haverá luzes sonhadoras em cidades sonolentas,
nem vales verdes, nem desertos suburbanos.

O sol será uma mancha na janela de um trem barato,
passando correndo por poços de cólera cobertos de cal.
Haverá sangue em seus calcanhares,
guardas cansados em terras fronteiriças cobertas de neve,

um carteiro com sacos vazios abatidos,
um padre com um sorriso infeliz pendurado sob suas costelas,
o silêncio de um cemitério, o barulho de um posto de comando,
e listas não editadas dos mortos,

tanto tempo que não haverá tempo
para checá-los pelo o seu próprio nome.

Tradução livre de todos os poemas por Luno


Veja também: Qual deve ser a posição da esquerda revolucionária sobre a Ucrânia?

 
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