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Argentina
O governo argentino de joelhos frente ao FMI, a esquerda e os trabalhadores de pé
Caio Reis

O governo de Alberto Fernández e Cristina Kirchner vem fechando um acordo com o FMI que implica em aprofundar os ataques capitalistas em curso desde o macrismo, abrindo uma série de crises políticas dentro de um governo que se elegeu com promessas sociais e discurso progressista. Porém, trabalhadores e setores populares começam a formar a força social capaz de derrubar esse novo pacto colonial. A Frente de Esquerda Unidade (FITU) e mais de 200 organizações políticas, sindicais, estudantis, ambientais e movimentos sociais voltaram a tomar as ruas da Argentina.

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O acordo que o governo de Alberto Fernández e Cristina Kirchner vem buscando firmar com o Fundo Monetário Internacional (FMI) significa não só validar a fraude que foi a dívida contraída pelo neoliberal Macri - US$44 bilhões que ele negociou com Trump em outubro de 2018 e que financiaram sua campanha eleitoral - e aplicar um programa econômico de austeridade, como também vai ampliar a submissão aos mandamentos do Fundo e do imperialismo norte-americano, que terão o direito de realizar inspeções trimestrais na economia argentina durante os próximos anos. “Realista, pragmático e crível” foi como o porta-voz do FMI, Gerry Rice, disse que deve ser o programa proposto pelo governo da Frente de Todos. Um palavreado tecnocrata típico que, embora o governo queira negar, antecipa maiores ajustes sobre os trabalhadores e o avanço do extrativismo para pagar a dívida.

Por isso, no dia 8 de fevereiro, a Frente de Esquerda Unidade (FITU) e sua bancada de parlamentares revolucionários no Congresso argentino impulsionou, ao lado de mais de 200 organizações, um novo dia de luta contra essa dívida ilegal, ilegítima e fraudulenta que vem acabando com as condições de vida de milhões e jogando o país em um índice de pobreza que já atinge os 43%.

A FITU é uma coalizão composta pelo Partido de Trabajadores Socialistas (PTS, irmão do MRT), o Partido Obrero (PO), o Izquierda Socialista (IS) e o Movimiento Socialista de los Trabajadores (MST). No processo das eleições de 2021, ela se alçou como terceira força política no país, elegendo com mais de 1.100.000 de votos 4 deputados nacionais - Nicolás del Caño (PTS) e Romina del Plá (PO) pela província de Buenos Aires, Myriam Bregman (PTS) pela Cidade de Buenos Aires e Alejandro Vilca (PTS) por Jujuy - que colocam suas legislaturas à serviço da luta de classes e já levantavam o não pagamento da dívida em suas campanhas.

A FITU é a maior frente política de independência de classe da esquerda internacional, uma frente trotskista argentina que levanta o programa de um governo de trabalhadores de ruptura com o capitalismo. Essa frente vem conseguindo articular ao seu redor setores amplos que querem se enfrentar com o acordo, o pagamento da dívida e os ataques do governo e da oposição de direita. Aos gritos de "Não ao pacto do governo com o FMI! Basta de ajuste, aumento de contas e extrativismo. Não ao pagamento da dívida externa. As fraudes não se pagam” e “não à impunidade dos responsáveis e a entrega da soberania”, milhares de pessoas marcharam em Buenos Aires e outras cidades. Pode muito bem ser que estejamos acompanhando o desenvolvimento da força social capaz de derrubar esse ataque colonial e erguer desde a Argentina um exemplo para esquerda, a classe trabalhadora e os oprimidos do mundo todo.

O significado do acordo do peronismo com o Fundo

Cada detalhe torna claro que se trata de um pacto de submissão colonial. A Argentina já passou por outros acordos com o FMI e, em cada um deles, a dominação do imperialismo (em especial o estadunidense) se ampliou no país, onde o capital extrangeiro já controla 62% das grandes empresas. O imperialismo e suas multinacionais exploram os recursos minerais e petrolíferos argentinos, controlam portos e o agronegócio, empresas de telecomunicações, alimentos e muitas outras. Nesse parasitismo lucrativo, o governo argentino e os provinciais atuam como facilitadores, abrindo o país para o roubo (altamente contaminante) dos recursos naturais - lítio, petróleo, fracking, florestas e bacias hidrográficas - sob o discurso de que “é preciso arrecadar dólares e botar as contas em dia para pagar a dívida”, a versão argentina do mesmo discurso político que no Brasil fala em manter a “responsabilidade fiscal” (o pagamento da nossa dívida, defendido religiosamente pelo conjunto da política burguesa e pelo PT) enquanto privatiza e estrangula os orçamentos de saúde e educação. .

Economia: Entenda por que não pagar a dívida pública em 8 pontos

Desde que assumiu, a Frente de Todos já pagou US$7,6 bilhões somente ao FMI, além de credores privados e outras instituições internacionais. Segundo o Banco Central argentino, porém, o total da dívida externa ainda gira em torno de US$80 bilhões!

Há poucas semanas, o ministro da Economia, Martín Guzmán, anunciou um novo entendimento do governo com o FMI, que envolveria três aspectos centrais: projetos de redução do déficit fiscal; acumulação de reservas; e redução do financiamento do déficit através do Banco Central. Guzmán também anunciou que o governo irá tomar uma nova dívida para pagar a dívida de Macri com o FMI, e que os enviados de Washington farão revisões trimestrais para avaliar a economia argentina de acordo com seus parâmetros e sugerir medidas para manter os pagamentos. Ou seja, se desenha um co-governo com o FMI (e os Estados Unidos, consequentemente), sem data marcada para terminar.

Enquanto desde a centro-esquerda da Frente de Todos, passando pela oposição de direita do Juntos por el Cambio, até os liberfachos do tipo Javier Milei debatem como aprovar no Congresso essa dívida, envoltos em suas próprias disputas internas e pressões eleitorais, trabalhadores e setores populares veem seus bolsos e pratos mais vazios a cada mês.

Quem pagará pela dívida?

Muito distante da promessa de retorno à possibilidade de fazer um churrasco ou encher a geladeira, o atual governo de conciliação de classes na Argentina vem oferecendo o que o imperialismo e a reacionária burguesia nacional exigem diante de uma economia capitalista mundial em crise: ajuste em cima de ajuste. Um fenômeno que antecipa essa tendência do que pode vir a ser um novo governo Lula no Brasil, diante de uma economia que já não tem mais as mesmas características do ápice das décadas lulistas, quando jorravam dólares para uma América Latina exportadora de commodities.

Leia também: Lula na Argentina e a decadência dos reformismos latino-americanos

O anúncio por parte do ministro do Trabalho, Claudio Moroni, de que os salários serão reajustados até 40%, dá de cara com projeções de inflação que beiram 54,8%. Alberto Fernández subiu ao poder prometendo que os salários iriam recuperar o que foi perdido com Macri, mas a realidade é de queda real dos salários pelo quarto ano consecutivo. O poder aquisitivo do salário argentino caiu 19% no setor privado e 26% desde outubro de 2015 a novembro de 2021. Entre trabalhadores informais, a queda é de 29% desde outubro de 2016.

O pedido do FMI para reduzir os subsídios ao setor de energia vai se traduzir em aumento das tarifas, alavancando a inflação que já brutaliza as condições de vida. Essa semana, por exemplo, foi anunciado que o preço do pão na Argentina subirá 25% e dados do Instituto Nacional de Estatísticas e Censos (INDEC) mostram que a participação do trabalho na renda total do país em 2021 caiu de 46,5% para 42,7%, aumentando a parcela dos empresários.

A busca pela redução do déficit fiscal toca o solo da realidade em sucessivos cortes nos orçamentos de saúde, educação, programas sociais, políticas de gênero e meio ambiente. O orçamento da previdência social foi reduzido em 4,3% em termos reais, enquanto o extrativismo das multinacionais contaminantes é promovido pelo próprio ministro do Ambiente, Juan Cabandié, sob a justificativa de pagar o FMI. Almejando os dólares para pagar a dívida, o governo aposta no extrativismo exportador de hidrocarbonetos, recursos minerais e soja, aprofundando o caráter primário e dependente da economia argentina e ignorando as consequências ambientais e sociais dessas atividades.

O que os capitalistas propositalmente ignoram sobre as contas do país é o tema da fuga de capitais, em que empresas e milionários escondem suas riquezas em paraísos fiscais no exterior, evadindo impostos e mascarando negócios ilegais. Como a empresa de energia Edenor, que enriqueceu com os aumentos de tarifa durante o macrismo e com os subsídios do kirchnerismo, enquanto a precarização do serviço ainda deixa milhares de famílias sem luz todos os anos, os capitalistas não investem nada e embolsam todo o lucro.

No início da pandemia, em 2020, o governo nacional quis se localizar à esquerda por aumentar o gasto público com medidas emergenciais. O La Izquierda Diario, jornal da mesma rede do Esquerda Diário e que é impulsionado na Argentina pelo PTS da Frente de Esquerda, apontava na época que “o gasto primário quase duplicou em maio em relação ao mesmo mês de 2019 (aumentou $579,5 bilhões)”, a maior parte, na verdade, indo diretamente para benefícios e subsídios recebidos por empresas como Clarín, Ledesma, Swiss Medical e multinacionais como Volkswagen, Mercedes Benz, McDonald’s e Burger King, que possuem lucros milionários.

Se, por um lado, cumprir com as demandas do FMI é algo inviável sem roubar ainda mais as condições de vida dos trabalhadores e das massas através da inflação, do aumento das contas dos serviços essenciais, da devastação ambiental e de mais precarização dos serviços públicos e do trabalho, por outro, a dívida é francamente impagável, visto que é um mecanismo de rapina imperialista em que se contrai novas dívidas para pagar as anteriores e financiar um motor de ajustes e fuga de capitais.

Diante dessa situação, se colocam duas alternativas: a continuidade da aposta no mesmo reformismo das promessas não cumpridas, da colaboração com os ataques e da adaptação ao regime e à direita, ou o caminho da mobilização dos trabalhadores e setores populares contra os ataques e a submissão ao FMI, levantando um programa pró-operário de ruptura com o capitalismo.

Mobilização massiva | Na Argentina, multidão lotou a Plaza de Mayo contra o FMI e o ajuste

Esse segundo caminho de unidade na luta de classes contra os ataques é o que vem sendo desenvolvido pela Frente de Esquerda Unidade em mobilizações como a de 11 de dezembro e a do recente 8 de fevereiro, onde as organizações que compõem a FITU estiveram ao lado de outras 200, tomando as ruas do país contra o acordo, pelo não pagamento da dívida e por um programa para que a crise seja paga pelos verdadeiros responsáveis por ela.

O papel da luta de classes e o exemplo da FITU

Os grandes capitalistas que estão sedentos pelo acordo do governo com o FMI possuem seus próprios agentes nas direções burocráticas no interior do movimento operário, estudantil e nos movimentos sociais, em geral ligadas ao próprio peronismo. Os dirigentes da CGT e da CTA, duas das maiores centrais sindicais da Argentina, vem de uma longa trégua desde o governo Macri, quando deixaram de se enfrentar com os ataques e colocaram as esperanças nas eleições de 2019 que levaram Alberto ao poder. Semelhanças com a passividade das direções sindicais de estratégia eleitoral petista no Brasil? Todas. Hoje a CGT chega inclusive a reivindicar o acordo com o Fundo.

Esses são os freios de segurança do capital, que através da passividade e resignação garantem o retrocesso das condições de vida e a fartura dos empresários. Não se encontram só no movimento operário. Dividem essa tarefa com burocratas dirigentes de movimentos sociais clientelistas, que, por exemplo, administram auxílios estatais e dividem as lutas de trabalhadores empregados e desempregados. Ou com burocratas do movimento estudantil, que buscam barrar todo questionamento e organização da juventude que busque enfrentar a crise nas universidades e, principalmente, se unir à classe trabalhadora.

É no enfrentamento dessas burocracias antidemocráticas em cada local de trabalho, estudo ou nos movimentos sociais como o de luta por moradia ou o ambiental, impulsionando a auto-organização, a solidariedade, se colocando lado a lado com os explorados e oprimidos em cada batalha pontual - bem como levantando um programa que busque apresentar saídas profundas para cada problema da vida quotidiana gerado pelo capitalismo - que foi se construindo na trincheira da luta de classes o grande e potente arco de alianças que hoje enfrenta coletivamente o acordo com o FMI e o pagamento da dívida.

Central nesse processo foram as importantes experiências de luta contra os ataques do governo peronista por parte de setores da classe trabalhadora e do ambientalismo que ocorreram no último período. Em 2021, para citar um exemplo emblemático, no Porto de Buenos Aires, após se enfrentar com a resistência de 600 trabalhadores e suas famílias, o governo nacional conseguiu, com o apoio da burocracia sindical, avançar com um projeto de terceirização do trabalho em um dos terminais (T5). Foi uma dura luta onde portuários e seus apoiadores, muitos dos quais votaram em Alberto e Cristina, fizeram sua experiência com o peronismo e romperam à esquerda.

E a política do governo nacional de permitir o roubo dos recursos naturais em troca de dólares para o FMI não vem se dando sem luta. Na província de Chubut, em dezembro do ano passado, com o apoio de setores estratégicos como portuários e marinheiros, seis dias de mobilizações massivas em defesa da água e contra o rezoneamento da megamineração fizeram o governador peronista recuar do projeto.

A vitória em Chubut abriu caminho para o combate ao extrativismo em todo o país, como a mobilização que ocorreu nos primeiros dias do ano em rechaço à medida do governo de Fernández e Kirchner de autorizar a exploração sísmica e a extração de petróleo no mar argentino. Milhares de jovens, famílias, ativistas ambientais e forças políticas da esquerda como a FITU disseram “Não às petroleiras!" e exigiram a revogação da medida que autoriza a exploração de petróleo próximo a Costa Atlântica a cargo da empresa norueguesa Equinor.

No recente 8 de fevereiro, marcharam organizações de direitos humanos, ambientalistas, movimentos sociais, sindicatos, organizações estudantis, trabalhadoras e trabalhadores da educação, saúde, indústria, transporte, setores terceirizados, uberizados, organizações por terra e moradia, organizações de desempregados, o movimento de mulheres e muitos outros. Esse tipo de ação unitária, que é um grande exemplo internacional, mostra que existe um caminho alternativo à resignação das direções burocráticas das entidades de massas. Essa via, que aposta na organização da classe trabalhadora e da juventude para multiplicar ações em comum, é o que pode impor que as burocracias sindicais na direção das centrais convoquem uma greve geral capaz de parar o país e expulsar o FMI.

Longe de estar propondo com o não pagamento um novo calote da dívida - como o de 2001, que aprofundou a situação de crise - o programa da Frente de Esquerda Unidade busca enfrentar as medidas que os capitalistas certamente tomariam para garantir seus lucros. Por isso, por exemplo, levanta o congelamento dos preços dos alimentos e bens essenciais que são cada vez mais inacessíveis diante da inflação, ou o monopólio do comércio exterior, que permitiria controlar desde o Estado todos os dólares provenientes das exportações, decidindo o que exportar e o que importar, enfrentando o extrativismo que lucra com a destruição do planeta e também redistribuindo a renda do agronegócio e dos recursos naturais para atender as necessidades sociais. Para evitar a fuga de capitais e planificar o investimento e conceder crédito para os pequenos produtores, os aposentados e os trabalhadores, é preciso impor a nacionalização do sistema bancário em um banco estatal único, controlado pelos trabalhadores.

Aqui no Brasil, Lula deixa claro que não pretende revogar as reformas e privatizações aprovadas em nosso regime degradado desde o golpe institucional e que avançaram no governo Bolsonaro. Pelo contrário, Lula sempre se coloca como um dos mais responsáveis gestores do bárbaro capitalismo brasileiro, reafirmando seu compromisso com o centrão e setores reacionários da burguesia nacional como o agronegócio, bem como com o próprio FMI (algo que reafirmou logo após visita à Argentina), o mercado financeiro e o imperialismo. Seu apoio à uma chapa tendo como vice com uma figura como Alckmin, um dos rostos do neoliberalismo no país, deixam claro que, apesar das ilusões que o petismo busca disseminar, com a ajuda de parte da esquerda, se aproxima mais um governo de ataques ao povo trabalhador diante da crise econômica.

A luta contra o acordo com o FMI e o pagamento da dívida é parte da luta pela expulsão do imperialismo da Argentina e de toda América Latina. Desde o Brasil, é preciso dar todo o apoio e se inspirar no exemplo de independência e unidade de classe que vem se desenvolvendo, impulsionado pela FITU e o PTS, para que os trabalhadores, a juventude e a esquerda brasileira possam se preparar desde já para os ataques que os capitalistas buscarão descarregar independente do resultado das eleições ao final do ano. É preciso lutar pela auto-organização em cada local de trabalho e estudo, pela solidariedade e a unidade na ação por parte das fileiras dos explorados e oprimidos, levantando a necessidade de debater um programa que, fazendo com que os capitalistas nacionais e as multinacionais imperialistas paguem pela crise, possa apresentar respostas às necessidades mais urgentes dos trabalhadores, do povo pobre e dos setores oprimidos.

 
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