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Ásia Central
Preço do combustível: a faísca da revolta geral no Cazaquistão
Philippe Alcoy

A repressão é lançada contra os manifestantes em meio a um apagão total de internet no país. Uma revolta que preocupa a Rússia, mas que tampouco convém às potências ocidentais. Uma revolta contra o capitalismo “de transição” do país da Ásia Central

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Desta vez, foi o preço do combustível a faísca de uma profunda explosão social. Se tudo começou com a alta exponencial do preço do gás líquido (com o fim dos subsídios e do controle de preços decretado alguns anos atrás), o mal estar social já era profundo. E parece ter se desenvolvido durante anos e décadas.

Frente aos protestos no Oeste do país, uma região rica em recursos de gás e petróleo, e que rapidamente se expandiram nacionalmente, o presidente cazaque, Kassym-Jomart Tokayev, tentou acalmar a situação com concessões aos manifestantes. Assim, dissolveu o governo, “suspendeu” o aumento do combustível e reintroduziu temporariamente o controle de preços. Tokayev até mesmo demitiu Nursultan Nazarbayev, figura que governou o país de 1990 a 2019 em seu posto no Conselho de Segurança, e seguiu exercendo poder real no Cazaquistão. Mas isto em nada ajudou, e os protestos seguiram.

Se o presidente Tokayev tomou tais medidas é porque a situação ganhou contornos dramáticos. Os protestos ganharam o caráter de revolta. Vários edifícios estatais foram invadidos e, em alguns casos, incendiados, principalmente em Almaty, a capital econômica do país. Os manifestantes tomaram o aeroporto da cidade durante várias horas, antes de serem expulsos pelas forças repressivas. Em uma cidade próxima a Almaty, uma estátua do líder Nazarbayev foi derrubada.

O governo se apressou em lançar mão da repressão. O país afundou completamente em um apagão de internet e até mesmo as comunicações telefônicas foram debilitadas. Os confrontos entre as forças repressivas e os manifestantes foram duríssimos, deixando vários mortos e feridos, de ambos os lados. Como resposta, o presidente cazaque apelou à Organização do Tratado de Segurança Coletiva (OTSC), formada por várias ex repúblicas soviéticas, incluindo a Rússia.

Assim que foi feito o chamado, tropas russas e de outros países desembarcaram no Cazaquistão com a missão específica de proteger a infraestrutura, deixando o campo aberto para a repressão das forças de segurança locais.

No entanto, alguns analistas consideram que o apelo às forças da OTSC foi motivado, em parte, pela desconfiança das autoridades na lealdade de certos setores das Forças Armadas. Mesmo com a dificuldade de se obter dados confiáveis, estamos falando de “dezenas” de mortos e mil manifestantes feridos, e ao menos 18 policiais mortos e outros 750 feridos. Também houve cerca de 2 mil pessoas detidas.

Não é possível afirmar com certeza até onde chegará esta revolta. Muitas hipóteses sobre suas motivações inundam os jornais: de uma conspiração ocidental, de disputas internas entre facções da oligarquia... Para além destas considerações sobre quem poderia se beneficiar da situação, uma coisa parece ser unânime: o movimento está expressando as frustrações e o profundo descontentamento social instalados durante as últimas décadas, que ficaram conhecidas como “transição” desde a queda da União Soviética, no começo dos anos 1990.

Uma revolta contra o regime capitalista “de transição”

Como explica Aynur Kurmanov, do Movimento Socialista do Cazaquistão: “Os trabalhadores de Janaozen foram os primeiros a se levantar. O aumento do preço do combustível serviu como gatilho das mobilizações populares. Depois de tudo, a montanha de problemas sociais vem se acumulando há anos. No último outono, o Cazaquistão atravessou uma onda de inflação. É preciso considerar que os produtos são importados à região de Mangistau, e que ali sempre custaram duas a três vezes mais caro. Mas na alta dos preços no final de 2021, o custo dos alimentos aumentou ainda mais substancialmente. Também se deve levar em conta que a parte ocidental do país é uma região onde o desemprego é alto. Durante as reformas neoliberais e as privatizações, a maioria das empresas fechou. O único setor que ainda funciona aqui é o de produtores de petróleo. Mas, em sua maioria, está nas mãos do capital estrangeiro. Até 70% do petróleo cazaque é exportado aos mercados ocidentais, e a maioria dos lucros também é destinada aos proprietários estrangeiros.

Um manifestante entrevistado pelo The Guardian também apontou os motivos que vão para além do aumento do combustível, como a corrupção, o nepotismo e a desigualdade social. “Nazarbayev e sua família monopolizaram todos os setores, desde os bancos até as estradas e o combustível. Estas manifestações têm a ver com a corrupção. (...) Tudo começou com o aumento no preço do combustível, mas a verdadeira causa dos protestos é a mediocridade das condições de vida do povo, os preços altos, o desemprego, a corrupção”, explica.

De fato, em muitos aspectos, o Cazaquistão é um caso exemplar dos “países em transição” da União Soviética. Nestes países, a restauração do capitalismo e a “estabilidade” foram asseguradas por regimes ditatoriais, profunda e diretamente corrompidos pela burocracia stalinista do Partido Comunista na ex URSS. É, talvez, um dos países onde a transformação de burocratas em burgueses foi mais explícita. O presidente do país durante este período de reintrodução do capitalismo, Nursultan Nazarbayev, foi o primeiro-ministro em 1984 e logo se converteu em Primeiro Secretário do Partido Comunista do Cazaquistão no fim da década de 1980. Depois da queda da URSS, não apenas tornou-se o “homem forte” do país, como também sua família converteu-se em uma das mais ricas do país, onde a média dos salários era de apenas 7 mil dólares ao ano. Além disso, cabe apontar que Nazarbayev conservou o estilo arrogante e o culto à personalidade, típicos do stalinismo. Assim, a antiga capital do país, Astana, foi renomeada em referência ao primeiro nome de Nazarbayev: “Nursultan”.

Neste contexto, não é de se estranhar que o ódio popular também se dirige a este personagem, com manifestantes entoando diversas palavras de ordem contra o ex presidente, que até hoje segue exercendo grande influência na política nacional. No entanto, o que é amplamente denunciado pelos jovens e trabalhadores é o regime de conjunto, este capitalismo “transicional” que não é nada além de um modelo capitalista dependente da exportação de hidrocarbonetos, um regime duríssimo com os explorados do país, mas muito amigável com os grandes capitalistas cazaques e as grandes multinacionais.

Um regime amigo da Rússia, mas também das multinacionais ocidentais

Se bem pode-se ter a impressão de que o Cazaquistão é um destes países que formam parte da “zona de influência” da Rússia, a realidade é muito mais complexa. O país certamente foi um sócio privilegiado da Rússia durante todos estes anos, mas seu governo sempre atuou para manter boas relações com a China e com as potências imperialistas ocidentais. Também é uma forma de contrariar a influência russa.

Para atestar esta proximidade com o capital ocidental, podemos citar um artigo muito elogioso da Forbes de julho de 2021, onde se lia: “As empresas ocidentais, lideradas por grandes nomes dos EUA, começaram a investir primeiro no setor de petróleo e gás, e logo em várias indústrias. Vão desde a General Electric, que tem interesses nas ferrovias e energias alternativas, até o gigante da engenharia Fluoride, passando por empresas de bens de consumo como a PepsiCo e Procter&Gamble. O investimento estrangeiro direto total subiu para 161 bilhões de dólares em 2020, incluindo 30 bilhões dos EUA”. Da sua parte, a Euronews, em dezembro do ano passado, mencionou as multinacionais que receberam um prêmio por sua “grande colaboração” com o Cazaquistão durante um fórum de investimentos: “Entre estas empresas, se encontram o grupo energético Chevron, a multinacional francesa Total Energies, o grupo Hevel Energy, o grupo industrial georgiano Goldbeck Solar, a empresa parisiense Danone, o gestor de ativos INOKS Capital (da Suíça), a empresa farmacêutica polaca Polpharma, a multinacional láctea francesa Lactalis, e muitas outras”. Nota-se o grande número de multinacionais francesas.

De fato, o Cazaquistão é um país muito importante a nível regional, mas também mundial. E justamente por isso, a situação está sendo observada com muita atenção por Moscou e pelas capitais ocidentais. Como aponta Emma Ashford para o grupo de especialistas pró imperialistas Atlantic Council: “O Cazaquistão é surpreendentemente importante para as economias dos Estados europeus e, em menor medida, da Ásia, já que sua estabilidade política lhe permitiu converter-se em um importante exportador de petróleo, gás natural e carbono. O Cazaquistão é também um país importante de trânsito energético para os Estados vizinhos da Ásia Central que são ricos em recursos. Os protestos já atingiram os trabalhadores do campo petroleiro de Tengiz, embora a produção não tenha sido ainda afetada. Se estes protestos tornarem-se suficientemente grandes para interromper a produção ou o trânsito de energia, poderiam ter repercussões econômicas desproporcionais à importância política do Cazaquistão”.

Para a Rússia, finalmente, o que está acontecendo no Cazaquistão é de particular importância. O país da Ásia Central é fundamental para a estratégia de defesa da Rússia. Sua desestabilização preocupa as autoridades russas, que dedicam grande parte de seus esforços para preservar de qualquer ataque possível toda uma rede de países que protegem a Rússia. E isto é ainda mais importante uma vez que Moscou se encontra em uma situação de grande tensão com a Ucrânia e com as potências ocidentais em sua fronteira ao Oeste.

A crise no Cazaquistão não estava nos planos de ninguém, nem dos analistas russos e nem dos analistas ocidentais. É uma má surpresa para Moscou. Não é de se estranhar que os jornais pró Rússia venham protestando contra a “conspiração” ocidental, sem apresentar nenhuma prova, obviamente. No entanto, a realidade é que Putin e seu regime são profundamente contrarrevolucionários, opostos a qualquer ação direta das massas. Um “instinto de sobrevivência” ensinado, sem dúvida alguma, na escola da KGB stalinista de onde procede Vladimir Putin.

Em um mundo onde a competição entre os poderes é cada vez mais dura e direta, com atritos constantes e ameaças de conflitos interestatais, os conflitos de classe a larga escala, que, por vezes, parecem desaparecer dos cálculos das classes dominantes, serão acrescentados.

Não podemos saber como se desenvolverá a situação no Cazaquistão. Talvez o regime consiga salvar-se, reprimindo com a ajuda de seus aliados e canalizando as mobilizações.

Mas esta é uma advertência. Não apenas às lideranças cazaques, como também para toda uma série de regimes autoritários na região e em todo o mundo. A classe operária e a luta de classes não deixarão de convidar-se mutuamente durante o próximo período.

 
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