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Hercules Gomes e as pianeiras brasileiras
Gabriela De Laurentiis
artista, pesquisadora e professora

Conheça o trabalho de Hercules Gomes, músico brasileiro nascido em Vitória (ES), cuja produção é riquíssima em referências do piano popular/música afro-brasileira, como Amélia Brandão, Chiquinha Gonzaga e Marcello Tupynambá. Leia abaixo a entrevista realizada por Gabriela De Laurentiis com o artista para o Esquerda Diário:

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Hercules Gomes. Foto: Paulo Rapoport

Uma quinta-feira, ao fim da tarde, vejo Hercules Gomes (Vitória, 1980) em apresentação na Sala São Paulo. O concerto de piano é parte das homenagens aos 100 anos do bandoneonista e compositor argentino Astor Piazzola (Mar del Plata, 1921 – Buenos Aires, 1992). O tango de Piazzola é ponto de partida para construção do repertório que “percorre a espinha dorsal – para usar um termo do próprio Hercules Gomes – do tango brasileiro trazendo paralelos com o tango argentino de Astor Piazzola”.¹

No programa a compositora e pianista Júlia Tygel explica que a palavra “tango” tem prováveis matrizes africanas, nomeado algo como “local de encontro em um espaço fechado”. Nos subúrbios de Buenos Aires, ao final do século XIX, formula-se como um gênero, em composição com matrizes híbridas. No Brasil, mais precisamente no Rio de Janeiro, naquele mesmo momento, a mistura de maxixe, polca e lundu, surge como um tango brasileiro, termo referido pela primeira vez em 1890, como título da música de Alexandre Levy (1864-92).

Hercules Gomes entre uma música e outra, conta para a plateia essas e outras histórias até que se detém sobre a figura de Amélia Brandão Nery ou Tia Amélia, compositora e pianeira nascida em 1887, em Jaboatão dos Guararapes, PE e falecida em 1983, na cidade de Goiânia, GO. A música de Tia Amélia pelas mãos e palavras de Hercules Gomes ganham dimensões potentes para a construção de histórias da música produzida a partir do Brasil.

A entrevista que realizei com o músico parte dessa experiência comovente diante do seu piano e, também, de suas contações históricas. As aproximações que Hercules Gomes faz da obra de Tia Amélia são múltiplas, como está evidente durante nossa conversa. No seu trabalho de composição a procura por correspondências com a pianeira, Tia Amélia, podem ser ouvidas em Três Estudos de Choro em Moto-Contínuo, em que Gomes — diz ele próprio — tenta imitar a mão esquerda da pianeira, num movimento ininterrupto, “a ideia de moto-contínuo é de um movimento incessante da mão esquerda”.

Hercules Gomes em show Museu da Casa Brasileira. 2018

O pianista tem as suas primeiras experiências com a música com aproximação autodidata ao teclado, quando tinha 13 anos. Posteriormente a Escola de Música do Espírito Santo (EMES, 1999), gradua-se como bacharel em Música Popular na UNICAMP (2000 – 2005, onde conheceu mais intimamente o piano. Hercules Gomes participa de uma série de festivais no território nacional — Savassi Festival em Belo Horizonte (2015) e Festival de Inverno de Campos do Jordão (2017 e 2021), bem como internacional — Festival Internacional Jazz Plaza, Havana, Cuba (2007); Brazilian Music Institute, Miami, EUA (2018). Em 2020, recebe o Prêmio Cidadão São Paulo.

O primeiro álbum do artista, Pianismo, é lançado em 2013, traz uma série de composições autorais, trabalhando com as referências do piano popular/música afro-brasileira. “Eu sempre gostei muito de tocar piano solo”, Hercules Gomes explica, “porque é uma situação que é você e o piano, e você precisa tirar o máximo do instrumento possível, porque não tem bateria, não tem baixo, não tem ninguém para te ajudar”.

As parcerias não são menos frutíferas, valendo destaque para a participação no projeto Goma Laca — Afrobrasilidades em 78 RPM, ao lado do músico, compositor e arranjador Letieres Leite (Salvador, 1959 – 2021), da cantora e professora Juçara Marçal (Duque de Caxias, 1962), entre outros. Vale destaque, ainda, para as suas parcerias com a Banda Mantiqueira e com o músico Arismar do Espírito Santo.

Nas próximas linhas apresento a transcrição da entrevista que realizei com Hercules Gomes para o Esquerda Diário, na qual falamos sobre Tia Amélia, trajetórias de pesquisa, Chiquinha Gonzaga, projetos atuais, Marcello Tupynambá e outros assuntos, numa viagem pelas histórias da música.

Hércules Gomes com a Orquestra Sinfônica Municipal de Campinas. Foto: Lucas Mercadante. 2017


G: Você poderia contar como aconteceu a pesquisa sobre Amélia Brandão? Como surgiu o interesse pelo trabalho dela?

HG: O interesse pela música da Tia Amélia veio quando eu ouvi a música dela pela primeira vez. Eu até lembro que eu estava em Curitiba, em 2014, dando aula no Festival de Música de Curitiba e conversando com um amigo meu, o Rodrigo Castro, ele me falou da Tia Amélia, assim como me falou de outros pianistas também. Alguns eu conhecia, outros não, os que eu não conhecia, eu fui procurar na Internet e descobri coisas maravilhosas, mas a que mais me impactou foi a Tia Amélia. Então, como as gravações são raras, não tinha ainda ‘streaming’ naquela época ou pelo menos não estava tão consolidado como hoje no Brasil, os discos da Tia Amélia não foram relançados mais.

Eu lembro que eu procurei na Internet e comprei vários LPs, porque só encontrei as gravações neste formato. Comecei a ouvir dali para a frente, nunca mais parei. Desde aquela época, eu comecei a tirar algumas músicas de ouvido já. Eu não encontrava as partituras das músicas dela. Então eu comecei a tirar de ouvido e aprender um pouco aquele jeito de tocar, que é tão original. Então, o interesse e a descoberta da Tia Amélia vieram dessa forma.

Saracoteando (Tia Amélia por Hercules Gomes), parte do projeto Tia Amélia para Sempre

G: Poderia falar a respeito da história de Amélia Brandão? Qual o contexto da produção musical dela? As obras dela tiveram qual recepção à época?

HG: A Tia Amélia contava que ela teve duas fases na vida: a primeira desde quando ela começou a estudar piano, que era como várias sinhazinhas da época, que assim como aprendiam a falar outras línguas, aprendiam também artes, pintura, crochê. E aprendiam a tocar piano. Então, ela era uma dessas sinhazinhas e aprendeu a tocar piano, só que, assim como as outras mulheres da época, ela não podia viver profissionalmente disso. Sinhazinha nesse sentido de famílias de classe média para classe média alta. Eram famílias que conseguiam dar uma educação para as filhas, educação de um certo valor para a época: que as filhas conseguiam falar outras línguas, aprender outras línguas, que as filhas conseguiam aprender a tocar um instrumento, geralmente era o piano, o instrumento das mulheres naquela época.

Ela chegou a estudar na Europa, quando tinha entre 10 e 15 anos, não lembro bem, creio que entre essa faixa etária. Quando voltou, ela contava, que o pai não a deixava tocar em lugar nenhum: só na casa e na igreja. Então ela ficava muito frustrada. E depois que ela se casou, foi a mesma coisa, o marido não a deixava tocar em lugar nenhum. Eu costumo brincar que, a diferença entre a Tia Amélia e a Chiquinha Gonzaga, é que a Tia Amélia ficou viúva muito cedo, com 25 anos ela já ficou viúva.

A Chiquinha Gonzaga, ao contrário, precisou enfrentar a sociedade, enfrentar todo o sistema patriarcal e machista da época para conseguir seguir a carreira que ela tanto sonhava. E a Tia Amélia contava que ela tinha ficado viúva. Depois a gente descobriu que não foi bem isso, o marido dela faleceu muito tempo depois e ela simplesmente abandonou o marido quando tinha 25 anos. E falava para todo mundo que o marido tinha morrido, porque uma mulher falar àquela época que abandonou o marido, mesmo sendo 50 anos mais nova que a Chiquinha Gonzaga, a história ainda não tinha mudado muito. Pegava muito mal. Para não ter esse tipo de problema, falava que morreu, fugiu de casa com as crianças, enfim. E essa foi a história.

Tia Amélia, em foto de 1959. Foto: Agência O Globo

Bom, mas aí, nessa primeira fase ainda, que aconteceu tudo isso, ela dizia que não compunha choro ainda. Ela trabalhava como folclorista, pesquisava músicas de toda a América do Sul. Então, ela tocava música folclórica de outros países da América do Sul. Não só do Brasil, mas como de outros países. Ela era uma espécie de pesquisadora nessa primeira fase e isso durou até o final da década de 30, mais ou menos, pertinho ali do início da década de 40. E foi quando ela parou. Como folclorista, nessa primeira fase dela, ela excursionou, morou vários meses nos Estados Unidos, inclusive, excursionou por muito tempo nos Estados Unidos com a filha dela, com a Silene, que era cantora. Ela teve programa de rádio nos Estados Unidos. Excursionou pelo Brasil inteiro. Então foi uma fase bastante produtiva. Infelizmente, a gente não conhece absolutamente nada dessa primeira fase dela, porque nem partituras dessa fase a gente tem, e ela não conta isso em entrevistas também.

Mas ela teve essa primeira fase, e depois ela simplesmente parou porque a Silene se casou, teve filhos e elas se mudaram para Goiânia e ficaram morando em Goiânia por uma década, ou até um pouco mais. As datas não são muito precisas, mesmo ela mesma se contradiz um pouco quando ela fala das datas. Durante essa época, ela viajava muito, também conhecia muita gente, vários estados, ela encontrou o Ernesto Nazareth, uma época no Rio de Janeiro. Quando ela tocou para o Ernesto Nazareth, isso ela contava em entrevistas, o Ernesto Nazareth pediu para ela não deixar o choro morrer quando ele não tivesse mais aqui, para que ela continuasse com o choro. A partir desse momento ela começou só a compor choros, que é a música que a gente conhece dela hoje. Então, sabendo que a Tia Amélia estava parada, que ela tinha se afastado dos palcos, teve dois grandes artistas brasileiros, um foi o Ary Barroso e a outra foi a Carmélia Alves, que segundo ela, incentivaram-na a voltar ao palco.

Foi aí que surgiu a Tia Amélia, porque antes não era Tia Amélia, antes era Amélia Brandão Nery. A partir da década de 50, por incentivo do Ary Barroso e da Carmélia Alves, ela voltou aos palcos, voltou a gravar e virou Tia Amélia, assinou esse nome artístico de Tia Amélia. Então, todas essas gravações que a gente conhece hoje já são dessa segunda fase, depois da influência do Ernesto Nazareth e depois dela voltar aos palcos por influência do Ary Barroso e da Carmélia Alves. São choros, são valsas, são algumas polcas também e essa é a música que a gente conhece: essa é a Tia Amélia. Quer dizer, da Amélia Brandão Nery a gente não sabe praticamente nada, a gente não conhece nada da música dela, ela não deixou nada registrado.

Mas a Tia Amélia, felizmente, ela deixou muita coisa, muitas gravações… Nessa segunda fase ela ficou muito conhecida mesmo, principalmente porque ela teve programa de televisão. Você imagina: uma pianista que teve o programa dela de televisão. Ela teve vários programas em várias emissoras, na verdade. Que eu tenha notícia, pelo menos uns três programas. Um que ficou muito famoso foi na TV Tupi no Rio de Janeiro, que ela contava histórias da época e tocava piano e tinha atores que encenavam as histórias. Então era um negócio que eu gostaria muito de assistir, mas na época não existia videotape, então era igual programação de rádio: passava ali ao vivo e quem assistiu, assistiu; quem não assistiu, não tinha replay. Essa foi a fase que ela ficou mais famosa, tanto pelos programas de televisão, quanto pelas gravações. Ela gravou discos que se tornaram emblemáticos, como “Velhas Estampas”, o último disco que ela gravou que se chamava “A benção, Tia Amélia” pelo selo Marcus Pereira, gravou “As Músicas da Vovó no Piano da Titia”, “Tia Amélia para você”, enfim várias gravações que ela deixou aí nessa segunda fase da vida dela.

O contexto da produção musical dela era o contexto da música brasileira que acontecia nessa época. Ela nasceu em 1897, ela viveu essa virada do século e quando ela tocou piano já começou no século XX, quando a música brasileira ainda estava buscando uma identidade, ainda estava criando uma identidade. Então ela viveu tudo isso. Essa fase era uma fase que ela estava ainda como folclorista. Já na década de 50, ela trouxe por influência do Ernesto Nazareth, ela começou a compor choros, com base nessa herança, nessa passagem de bastão que veio de Chiquinha Gonzaga, Ernesto Nazareth, Zequinha de Abreu para a Tia Amélia. Ela se considerava uma continuadora da música popular brasileira, especialmente do choro, do piano no choro e é por isso que ela começou a compor apenas choros.

Sobre a recepção, da primeira fase, como eu disse, a gente não tem muita notícia. Mas com certeza ela fez muito sucesso, porque, até o Juscelino Kubitschek chegou a convidá-la para fazer uma turnê pelo Brasil e uma turnê internacional, inclusive. Isso que eu falei que ela foi morar nos Estados Unidos, ficou por meses lá, foi uma época muito produtiva, então, se a recepção não fosse tão boa, isso não teria acontecido, com certeza. Mas a gente realmente não tem muita informação sobre essa época. Na segunda fase, foi assim: um sucesso, simplesmente um sucesso! Tem um dos discos dela, o “Velhas Estampas”, que chegou a superar vendas dos discos do Nat King Cole, que fazia campanha no Brasil de lançamento de um dos discos dele e que era um artista muito famoso, um cantor e pianista de jazz desta época. Os discos da Tia Amélia chegaram a superar a venda dos discos dele no Brasil. Então, ela era muito famosa, era muito querida, porque era uma pessoa muito carismática. Inclusive, essa coisa do programa de televisão ajudava muito na aceitação da música dela pelo povo brasileiro.

G: Você poderia explicar o processo de recuperação da obra dela? Houve partituras que você escreveu, certo? Poderia detalhar um pouco como ocorre um processo desses. Quais as dificuldades e os cuidados necessários? Qual a importância dessa escrita para as histórias da música no Brasil?

HG: Desde a primeira vez que eu ouvi a Tia Amélia, eu queria aprender a tocar daquele jeito e já pensei que eu queria gravar um disco em homenagem a ela. Esse disco veio seis anos depois, o “Tia Amélia Para Sempre”. A gente fez um lançamento desse disco, foi maravilhoso, foi um sucesso, o disco recebeu uma ótima aceitação tanto de público, quanto de crítica, mas todo o trabalho foi interrompido por causa da pandemia que começou logo depois desse show, dois meses depois. Então eu não fiz mais shows, só que o trabalho tinha tudo para ir pra frente, tinha muita coisa para acontecer com esse lançamento. E eu tive que parar tudo. Para não parar essa pesquisa e esse trabalho com a obra da Tia Amélia. O que eu fiz? Eu fiz uma campanha de financiamento coletivo, em que eu prometia resgatar as obras dela que são raras, tanto de gravações – tem muitas gravações perdidas, as gravações não comerciais, quanto de partitura, as partituras são raríssimas. Se eu conheço 4 ou 5 partituras originais da Tia Amélia editadas é muito. Então, todas as partituras que eu tenho, eu mesmo transcrevi a partir das gravações. Foi isso que aconteceu.

Então, a dificuldade é que dá muito trabalho. Tirar música assim de ouvido dá muito trabalho. Então eu precisei tirar um mês ou dois para fazer isso. E por isso eu tive que fazer uma campanha de financiamento coletivo, felizmente teve muito interesse das pessoas. Com a campanha, as pessoas acabaram se engajando muito, muitas pessoas que não conheciam a Tia Amélia passaram a conhecer.

A importância dessa escrita para a história da música do Brasil é que, essa é a nossa identidade, essa é uma peça ali do quebra-cabeça da história do Brasil, lógico. Se a gente for falar do piano, é uma peça muito importante do piano brasileiro, dos compositores brasileiros. Ela é uma compositora que estava completamente no limbo, estava completamente esquecida. Se a gente procurasse vídeos da Tia Amélia anos atrás, não tinha nenhum. Apareceu um amigo meu, o Marco Aurélio Xavier que gravou o “Bordões ao Luar”, mas não tinha nada no YouTube da Tia Amélia, a gente não encontrava nada. Então a importância é isso.

Falando diretamente das partituras, o Mozart, o Chopin, só está aí até hoje, o Villa-Lobos inclusive, porque eles escreveram partituras — tudo bem que eles não tinham muita opção naquela época, não existia gravação. Mas, enfim, os músicos só continuaram tocando as músicas deles, só gravaram as músicas deles porque tem partitura, senão teriam sido esquecidos também. Então, a importância de se ter registros em partituras é muito grande porque assim os músicos tocam, se os músicos tocam as pessoas ouvem, se as pessoas ouvem, mais pessoas podem tocar, mais pessoas podem gravar esses artistas compositores e mais pessoas podem conhecer. Logo, esses artistas vão se eternizar, eles vão continuar existindo. Agora se você não tem partitura, os músicos não tocam, aí se ninguém toca ninguém conhece, ninguém ouve, então se ninguém ouve aí a coisa passa simplesmente a não existir, a coisa simplesmente desaparece, ou seja, uma parte da nossa identidade cultural — a gente está falando de uma identidade musical — logo, é a nossa identidade cultural, nós como brasileiros, uma parte disso acaba desaparecendo também, daí a importância.

Partitura de Tia Amélia com transcrição e adaptação de Hercules Gomes

G: Antes de gravar o álbum “Tia Amélia Para Sempre” (2020) você gravou “No tempo de Chiquinha” (2018), uma homenagem à Chiquinha Gonzaga. Você vê relações entre as trajetórias das duas artistas?

Gaúcho – O corta-jaca (Chiquinha Gonzaga por Hercules Gomes, parte do projeto No Tempo de Chiquinha)

HG: Gravei “No Tempo da Chiquinha” em 2018, é meu segundo disco inclusive, e “Tia Amélia Para Sempre” foi o meu terceiro disco. Relações tem muitas, primeiro, deixa eu falar uma coisa que é o seguinte: muitas pessoas perguntam se eu tenho alguma relação com o movimento feminista por gravar compositoras, muitas pessoas me agradecem, a gente acaba criando uma relação, mas o objetivo de gravar não foi exatamente buscando esse tipo de engajamento, foi porque essas mulheres, de forma impressionante, elas deixaram um legado tão importante na música brasileira quanto aos homens. A mulher compositora, especialmente no choro que é o contexto que eu estou discutindo agora, elas têm uma importância tão grande quanto os homens. Chiquinha Gonzaga, como Zequinha de Abreu, Tia Amélia como Ernesto Nazareth, Carolina Cardoso de Menezes como Radamés Gnattali.

É ali então que eu vou, na busca disso tudo, sempre para aprender a tocar piano brasileira, para aprender um pouco mais da nossa própria identidade musical, porque a questão do piano no choro é uma coisa que a gente não tem um método ainda, um método nesse sentido de livro mesmo, a gente não tem isso ainda consolidado, mas a gente tem uma escola consolidada que foi criada por esses grandes pianistas, então a resposta está exatamente nesses pianistas. Então, nas mulheres, eu encontrei respostas tão importantes quanto nos homens, mesmo elas sendo em número infinitamente menor que os pianistas homens. Pelo menos as mulheres que ficaram mais famosas, que deixaram mais registros... Apesar de toda a dificuldade, elas conseguiram deixar essa marca e foi uma marca muito forte, por exemplo, no caso da Tia Amélia, Chiquinha Gonzaga também e muitas outras.

Relações entre as trajetórias das duas artistas tem muitas: a começar pela questão da sinhazinha que eu falei, as meninas – claro tinha que ter dinheiro para fazer isso – para educar bem uma filha, não era simples assim, não era todo mundo que tinha piano. Mas as famílias que tinham condições, tinham piano e as filhas estudavam piano, era uma coisa que tinha muito valor para a família aristocrática, para as famílias que tinham um pouco mais de dinheiro. Então, a primeira relação está nisso, mesmo a Tia Amélia sendo exatamente 50 anos mais jovem que a Chiquinha Gonzaga, mesmo ela tendo sido 50 anos mais jovem, a sociedade continuava a mesma, patriarcal e machista, tanto que, basta ouvir os depoimentos da própria Tia Amélia.

Chiquinha Gonzaga em 1932, em sua casa, em seu aniversário de 85 anos. Foto: Acervo Edinha Diniz

Ela tocava piano, mas só podia tocar em casa, na igreja, mesmo depois de ter ido estudar na Europa. Ela via Guiomar Novaes, por exemplo, que era uma grande pianista brasileira, não podia seguir carreira como a Guiomar Novaes, porquê? Porque o pai não deixava. Casou-se, não podia seguir carreira, não podia tocar, porquê? Porque o marido não deixava. Teve que enfrentar da mesma forma a família, só que ela não contava isso para ninguém. Ela simplesmente mentia, falava que o marido tinha morrido, mas ela abandonou o marido. A Chiquinha Gonzaga foi de outra época e enfrentou as mesmas dificuldades. Essas são as principais relações de trajetória, digamos quanto à sociedade.

Agora, em termos de música também muita semelhança, não no jeito de tocar APAGAR, no jeito de compor, enfim. Mas naquela carga de identidade musical brasileira que estava sendo criado aquela época, cada uma em sua época. Chiquinha Gonzaga 50 anos antes, Tia Amélia 50 anos depois, mas ambas carregavam isso na sua música. A primeira Música Popular Brasileira, a primeira identidade da música brasileira que está muito relacionada ao choro. Então, elas eram também uma espécie de guardiã, inclusive Tinhorão falava que a música dessas mulheres carregava muito da identidade musical brasileira. Essas são as principais relações das duas.

G: Poderia contar um pouco sobre projetos em andamento e futuros?

Hercules Gomes, Igreja N.S. da Boa Morte (SESC-CARMO)

HG: O projeto mais recente que está em andamento, que inclusive eu já fui ao estúdio, já gravei, é em homenagem a outro pianeiro. Lembrando, pianeiros são esses pianistas que viveram essa época, que tiveram essa relação principalmente com a música brasileira, especialmente com o choro, hoje a gente chama carinhosamente esses pianistas de “pianeiros brasileiros”. Esse último trabalho foi com o Marcello Tupynambá, que é um compositor paulista aqui do interior de São Paulo, da cidade de Tietê. Alguns arranjos que eu fiz muito tempo atrás em homenagem a ele, numa homenagem que a gente fez ao Marcello Tupynambá em Embu das Artes, pertinho de São Paulo, em comemoração aos 125 anos de nascimento do Tupynambá. Eu fiz esses arranjos, mas nunca tinha gravado. Então eu resolvi gravar esses arranjos e é o projeto mais recente. Desses arranjos, são quatro arranjos, eu vou lançar um EP, que vai ser o meu próximo lançamento. Eu estou correndo para lançar ainda este ano, não sei se vai dar tempo, mas de qualquer forma, vou lançar, e, gravei também vários singles que não têm diretamente a ver com os pianeiros e com o choro, quer dizer, tem a ver sim, porque eu fiz três composições, três músicas, uma série de três músicas pequenas, três estudos em homenagem à Tia Amélia, que chama “Estudo de Choro em Moto-Contínuo” e gravei também nessa mesma sessão de estúdio.

Gravei uma música que faz muito sucesso no meu canal do YouTube, um arranjo meu que é o “Sururu na Cidade” do Zequinha de Abreu, também compositor paulista. Mas também gravei algumas coisas que não tem nada a ver, gravei João Bosco, gravei outras composições minhas que nem são choro. Então essas gravações, do Marcello Tupynambá, creio que ainda sai esse ano, provavelmente em dezembro. Se eu não conseguir lançar em dezembro, provavelmente vai sair em janeiro essas gravações e as outras gravações serão singles que eu vou lançar durante o ano de 2022. Eu quero manter uma constância maior, em relação a lançamentos e gravações assim e essa foi uma forma que eu encontrei: grava várias coisas em uma sessão só de estúdio e vai lançando aos poucos durante o ano.

Hercules Gomes — Platônica — YouTube
Interpretação de Platônica composta por Hercules Gomes.
Ele conta: “compus a valsa Platônica em 2008 em uma única noite inspiradora, apaixonada e, ao mesmo tempo triste… Apresentei uma vez e depois nunca mais toquei… Em 2012 resolvi gravar e então voltei a ela e fiz uma revisão. É a música que mais me pedem hoje em dia.”

Revisão e transcrição da Beatriz Ayres.

Notas de rodapé:
1. Júlia Tygel é pianista, compositora, doutoranda em Musicologia (USP).

Para acompanhar o trabalho de Hercules Gomes:

  •  site
  •  youtube
  •  instagram

    Para ver:

    Defesa da dissertação de mestrado A tradição pianeira de Hercules Gomes, de Thiago Marconato transmitida ao vivo no dia 25/10/2021 pelo canal da Universidade Estadual de Maringá (UEM).

    Para saber mais sobre Tia Amélia, Hercules Gomes recomenda o documentário Tia Amélia (Amélia Brandão Nery, 1887 – 1983).

    Para ler:
    Considerações sobre a tradição musical pianeira no álbum No Tempo da Chiquinha, de Hercules Gomes, de Thiago Marconato

    Interpretações da música de Ernesto Nazareth: pianistas, pianeiros e chorões.
    Dissertação de Mestrado André Repizo Marques apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Música do Instituto de Artes da UNESP-SP, 2017.

    Gabriela De Laurentiis | @gabilaurentiis | trabalha como artista, pesquisadora e professora. Doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação da FAU-USP, é autora de artigos e do livro Louise Bourgeois e modos feministas de criar (Annablume, 2017), editado em espanhol pela NoLibros (2020). E desde fevereiro (2021) colabora como autora independente com artigos de opinião, divulgação de exposições etc, na sessão de cultura do Esquerda Diário.

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