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Partido e soviete: a dialética da vitória da Revolução Russa
Simone Ishibashi
Rio de Janeiro

Quando completam-se 104 anos da Revolução Russa de 1917, republicamos texto de Simone Ishibashi escrito em virtude do centenário da Revolução.

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Uma das mais importantes tentativas de negar a importância e a vigência da Revolução Russa reside na operação ideológica de confundir a própria revolução com os efeitos da burocratização sob o stalinismo, após 1924. Passados cem anos do Outubro de 1917, ainda segue vigente a caricatura elaborada tanto por liberais, quanto por outras vertentes políticas e teóricas de que a ditadura do partido único seria uma consequência natural da revolução. De acordo com essa interpretação, haveria uma relação de identidade absoluta entre a classe e o partido, isto é, entre o sujeito social da revolução e a sua representação política, legitimando-se assim a ditadura do partido único.

Outros ainda pretendem supor que o próprio partido bolchevique concebia a relação de identidade entre classe e partido dessa forma. Ignora-se, assim, não apenas a rica teorização que Lênin e Trótski oferecem sobre as frações no interior de cada classe, mas ainda que o processo de burocratização do partido bolchevique foi um combate político e físico de Stálin que culmina nos Processos de Moscou [1] contra os próprios dirigentes bolcheviques. Que por sua vez seria a correspondência da burocratização da própria URSS [2]. Mas somente um profundo desconhecimento teórico e histórico, involuntário ou consciente, pode argumentar que a ditadura de partido único estaria contida na estratégia do partido bolchevique elaborada por Lênin e Trótski.

Partindo de Marx

A história do desenvolvimento teórico e prático do marxismo é a do desenvolvimento da relação dialética entre partido e classe. Karl Marx apontou as noções fundamentais que expressam essa relação como condição essencial para a elaboração de uma estratégia que possibilitasse a vitória dos trabalhadores. Definiu a diferença entre “classe em si” e “classe para si”, qualificando como a classe em si é um sujeito revolucionário apenas em potencial, que pode se realizar ou não.

Disso deriva a importância de sua transformação de “classe em si” em “classe para si”, processo em que seguramente tem importância sua experiência na luta de classes em seu nível mais elementar, como as greves salariais, mas que adquire uma importância superior na medida em que a classe passa a atuar pela transformação do conjunto da sociedade capitalista, tendo à frente de si os setores mais conscientes organizados em partido. Em outras palavras, a luta de classes deve se transformar em luta política, ou seja, a atividade das massas trabalhadoras constitui-se politicamente sob a forma de partido revolucionário.

Dessa maneira, a continuidade dessa perspectiva se apresenta como outra definição fundamental feita por Marx, a de que a emancipação dos trabalhadores será obra dos próprios trabalhadores. Essa máxima torna patente que a revolução só pode advir da ação das amplas massas trabalhadoras, envolvendo todos os seus estratos e frações de classe. No entanto, isso nada tem a ver com qualquer tipo de espontaneísmo, que nega a importância estratégica da organização da ação das massas tendo à frente seu partido revolucionário, mas, pelo contrário, aponta a noção de que deve haver uma combinação entre a ação do partido e a das massas. Ao partido revolucionário cabe organizar o setor mais consciente dos trabalhadores, que deve atuar no sentido de dotar a classe de um programa adequado a cada momento histórico e às tarefas concretas que se colocam. No entanto, crer que o partido possa substituir a ação das massas seria um equívoco, não menos importante que crer que as massas possam prescindir de um partido.

Lênin em Que Fazer? e a revolução de 1905

Lênin em sua célebre obra Que Fazer?, de 1902, apontava que não havia uma continuidade mecânica entre a luta econômica da classe trabalhadora e o partido como sua representação na esfera política. Em luta política resoluta contra as tendências economicistas, Lênin apontava como a ideologia que derivava da consciência média dos trabalhadores seria fundamentalmente sindicalista, isso é, expressaria os interesses econômicos mais imediatos, portanto sem romper a ordem capitalista. Para a luta pelo poder político e o triunfo da insurreição haveria que organizar o setor mais consciente da classe trabalhadora e da intelectualidade ligada a ela, para que, dessa forma, se dedicassem integralmente ao partido.

Que Fazer? é uma obra fundamental pelo acerto inquestionável da luta política contra as tendências economicistas e a defesa e desenvolvimento das concepções de Lenin sobre a necessidade de profissionalismo nas ações do partido. O fetichismo do sindicalismo entre os economicistas trazia como correspondência concepções demasiado laxas para as formas da organização partidária e sua ação, cujo “trabalho artesanal” Lênin combateu como parte do entendimento de que isso era fundamental para a construção de um instrumento político efetivamente revolucionário, à altura de suas tarefas históricas. No entanto, a justa equação entre a relação da auto-organização das massas e o partido se revelaria a partir da experiência de 1905.

A revolução de 1905 legou ao marxismo uma das mais importantes conquistas estratégicas, sintetizada no surgimento dos sovietes. Os sovietes, ou conselhos em russo, surgiram do calor da própria luta, das necessidades de organização das amplas massas envolvidas na greve geral de 1905, e posteriormente na revolução de outubro de 1917. Foram a resposta que os trabalhadores encontraram para fazer frente aos desafios postos pelo desenvolvimento da própria greve geral que assolava a Rússia. Os sovietes organizados através da eleição de delegados de base, que representavam as fábricas, unidades de produção e locais de trabalho e tinham mandatos revogáveis, não foram construídos a partir de uma palavra de ordem forjada pelo partido social-democrata russo. Tomando decisões sobre como organizar sua luta contra o tsarismo e sendo composto pelos trabalhadores que tinham o poder de produzir e controlar a circulação de todas as mercadorias, os sovietes se constituíram como verdadeiros organismos de poder que se contrapunham às instituições do Estado tsarista.

Nas palavras de Trótski, que ocupou em 1905 a posição de presidente do soviete de Petrogrado:

O soviete organizou as massas trabalhadoras, dirigiu as greves e manifestações políticas, armou os trabalhadores e protegeu a população contra os pogroms [3]. Também realizaram tarefas similares a outras organizações revolucionárias antes que se criasse o soviete, durante sua existência e depois. No entanto, essa tarefa não dotou essas organizações da influência que se concentrou nas mãos do soviete. O segredo dessa influência repousa no fato de que o soviete cresceu como o órgão natural do proletariado em sua luta imediata pelo poder, tal como o determinou o curso real dos acontecimentos. O nome de “governo dos trabalhadores” que por um lado deram ao soviete os próprios operários e por outro a imprensa reacionária, era expressão do fato de que o soviete era verdadeiramente um governo dos trabalhadores em embrião. O soviete representava poder na medida em que o poder estava assegurado pela potência revolucionária dos distritos da classe operária; lutava pelo poder na medida em que o poder ainda permanecia nas mãos da monarquia político-militar [4].

Essa situação de duplo poder não poderia se consolidar. Expressava uma correlação de forças transitória em que a classe trabalhadora ainda não havia se apoderado do poder, mas os limites impostos pela legalidade burguesa já haviam sido rompidos. Como expressões da auto-organização das massas e o organismo que expressa a mais elevada frente única de todas as frações de classe em luta revolucionária, os sovietes eram a manifestação embrionária da nova sociedade que deveria nascer da revolução. A democracia burguesa representativa, uma das formas sob as quais se mantém a dominação dos capitalistas, defendida pelos mencheviques durante o ano de 1917, se demonstraria na Rússia revolucionária como algo já obsoleto, na medida em que os sovietes seriam o embrião da democracia direta das amplas massas de trabalhadores.

Para Lênin, o surgimento dos sovietes foi fundamental para que se expressasse de uma nova forma a relação entre partido e auto-organização das massas. Lênin escreve: “Creio que o camarada Radine não tem razão quando (...) coloca o problema do seguinte modo: Soviete de deputados operários ou partido? (...) Eu penso que não é assim que se deve colocar a questão, e que a resposta deve ser forçosamente: ‘Soviete de deputados operários e partido’ [5]. Dessa maneira, pelo caráter de expressar a mais ampla frente única das massas trabalhadoras, os sovietes não eram idênticos a um único partido dentre os que se colocavam como parte da revolução na Rússia. Portanto, para Lenin, a ditadura do proletariado passa a ser exercida pelos trabalhadores a partir dos sovietes e dirigida pelo partido.

Trótski, o combate à burocracia e o pluripartidarismo soviético

Partindo da concepção clara de que a classe trabalhadora e os camponeses russos em 1905 e 1917, bem como a classe trabalhadora em qualquer momento histórico, são formados por frações em seu interior, Lênin e Trótski sabiam que só era possível se adotar uma orientação comum como produto da luta de tendências, que se elevava à forma de luta de partidos. O soviete era o maior organismo de frente única entre todas as organizações revolucionárias existentes, sendo o espaço para o desenvolvimento da luta de tendências. Era natural e correto que essas frações e suas posições políticas correspondentes se expressassem nos sovietes. Dessa forma, a luta de tendências que tanto enriqueceu o marxismo russo era parte indissolúvel do pluripartidarismo soviético.

O pluripartidarismo soviético, entendido como a luta de tendências no interior dos sovietes para dotar as massas trabalhadoras ali reunidas de uma estratégia, era a via através da qual a dialética entre sovietes e partidos se desenvolveu na Revolução Russa. E como bem se sabe, quando antes de outubro de 1917 os bolcheviques eram minoria no interior dos sovietes, estes não expressavam seu caráter de duplo poder, mas estavam sendo transformados pelos mencheviques [6] e pelas alas da direita dos Socialistas Revolucionários [7] em um órgão auxiliar do governo provisório burguês. A vitória dos bolcheviques nos sovietes, e, por consequência, sua recuperação como organismo que expressava a auto-atividade revolucionária das massas, foram decisivas para a vitória da insurreição de outubro de 1917.

A política contrária à tomada do poder em 1917 por parte dos mencheviques e SRs de direita esteve na base da ruptura daqueles no II Congresso Pan-Russo dos Sovietes. Mas foi com as duras condições da guerra civil, que se abateram sobre o recém-nascido Estado operário, que o partido bolchevique foi obrigado a adotar duras medidas de exceção no campo econômico, político e militar. Atentados, como o sofrido por Lenin pelas mãos dos Socialistas Revolucionários, também contribuíram para isso.

Essas medidas excepcionais, correspondentes à necessidade do centralismo exigido contra a intervenção da burguesia local e estrangeira, foram transformadas em norma por Stalin, que tratou de justificar seu aprofundamento após o fim da guerra civil, com o regime de partido único e a perseguição à oposição no interior do próprio partido bolchevique, intensificada após 1924. Antes de falecer, Lênin realiza em seus discursos várias indicações do problema da burocratização e da relação entre partido e Estado. No XI Congresso afirma que “Se estabeleceram relações errôneas entre o partido e as organizações soviéticas (...) Formalmente resulta muito difícil remediar esses problemas, pois nos governa um partido único [8].

Stálin passou a propagar que a URSS sob seu domínio não seria um Estado de transição em uma etapa ainda profundamente inicial. Alegava que o socialismo já estaria vigente na URSS em “nove de décimas partes”, e que, portanto, as classes já teriam desaparecido, o que por sua vez eliminava automaticamente a existência de partidos.

Trótski, em vários de seus escritos, combaterá essa propaganda de Stalin demonstrando como era falso que a política já não teria lugar na URSS, e que, pelo contrário, era o momento de reverter todas as medidas de exceção adotadas durante a guerra civil. Dessa forma, Trótski defendeu em seu escrito O Programa de Transição que o pluripartidarismo soviético era uma norma programática:

A burocracia tem substituído os sovietes, como organismos de classe, pela ficção dos direitos eleitorais universais, ao estilo de Hitler e Goebbels. É preciso devolver aos sovietes não apenas sua livre forma democrática, como também o seu conteúdo de classe. Assim como em outro tempo não se permitia à burguesia e aos kulaks [9] ingressar nos sovietes, agora é necessário expulsar a burocracia e a nova aristocracia (...) A democratização dos sovietes é impossível sem a legalização dos partidos soviéticos. Os próprios operários e camponeses, com seus votos livres, apontarão os partidos que reconhecem como partidos soviéticos [10]”.

Tornava-se claro como a legalização dos partidos soviéticos era algo vital, pois a democracia direta exercida através do pluripartidarismo soviético era entendida como a própria base do Estado que deveria perecer. Essa noção de um Estado que cria as condições para deixar de existir havia sido a base das reflexões de Lênin em sua obra O Estado e a Revolução, que pressupunha a existência e o desenvolvimento dos sovietes inclusive após a tomada do poder, devendo estes expressar as decisões sobre os rumos da economia e da construção de uma nova sociedade embasada na mais ampla democracia direta.

Essa perspectiva retomada por Trótski após o falecimento de Lênin em 1924 seria fundamental para a estratégia de combate à burocratização da URSS, ao lado da grande atuação em defesa do internacionalismo que Stalin substituiria pelo “socialismo num só país”. Resgatar esse legado serve não apenas para debater os aspectos mais cruciais que envolveram a realização da maior revolução que a humanidade já viu, como para desmistificar o senso comum que tantas vezes marca a própria intelectualidade de que o marxismo revolucionário equivale à ditadura de um partido único.

A relação entre partidos e sovietes expressa a fina estratégia para a conquista de hegemonia da classe trabalhadora sobre todos os setores oprimidos e explorados, e dessa maneira levar adiante a concretização de que a emancipação da classe trabalhadora só pode ser obra dos próprios trabalhadores, que passam a ser dotados de uma estratégia que prepare a arte da insurreição. Tal lição é tão urgente de ser retomada quanto é ainda hoje pouco debatida. Mais do que nunca, em tempos de grandes cataclismos e em que a esquerda muitas vezes se contenta em manter posições em sindicatos ou se restringe a buscar postos eleitorais, é que a tradição expressa na relação entre a autodeterminação das massas e o partido revolucionário deve ser revivida.

 
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