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Geopolítica
Barril de pólvora no Indo-Pacífico: pacto contra China reúne EUA, Reino Unido e Austrália
André Barbieri
São Paulo | @AcierAndy

Depois do fracasso no Afeganistão, Washington rapidamente fez as malas para tratar de negócios na nova área de concentração estratégica: o Indo-Pacífico. O objetivo, como não poderia deixar de ser, é concluir o “Pivô para a Ásia”, iniciado por Barack Obama, e buscar conter a ascensão da China.

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O fracasso dos Estados Unidos no Afeganistão, tendo como epílogo a retirada desesperada de seus funcionários do aeroporto de Cabul, golpeou de maneira provavelmente indelével a imagem do governo Biden. Muito mais do que alusões ao “momento Vietnã” do ex-presidente Gerald Ford, a derrota no Afeganistão deu seguimento ao panorama de decadência histórica, em ritmo cadenciado pela ausência de competidores, da hegemonia norte-americana. Mas a razão da estabanada saída do Oriente Médio estava clara nos mapas do Pentágono. Como disse Mark Atwood Lawrence, do Foreign Affairs, desembaraçar-se no Oriente Médio abria muitas possibilidades para que os EUA estendesse sua atenção e energia para teatros geopolíticos mais vitais, como o Indo-Pacífico. Polemizava com a definição mais “pessimista” de Henry Kissinger, que ao The Economist escrevia que nenhum movimento alternativo dos EUA para outra zona de importância global faria superar a catástrofe no Afeganistão e o arranhão na confiança dos aliados.

O certo é que Washington rapidamente fez as malas para tratar de negócios na nova área de concentração estratégica: o Indo-Pacífico. O objetivo, como não poderia deixar de ser, é concluir o “Pivô para a Ásia”, iniciado por Barack Obama, e buscar conter a ascensão da China.

Um dos primeiro movimentos se realizou essa semana. Os EUA lançaram uma nova parceria trilateral de segurança com o Reino Unido e a Austrália que permitirá a Camberra construir uma frota de submarinos movidos a energia nuclear, um movimento que busca fortalecer a capacidade combativa dos aliados de Washington para enfrentar a China.

Esse acordo surge a modo de "alerta" a Pequim, dias depois de uma ligação telefônica de Joe Biden a Xi Jinping, sugerindo realizar uma reunião de cúpula cara a cara com o presidente chinês, sem conseguir obter uma resposta positiva de Xi, levando algumas autoridades americanas a concluir que Pequim continua a jogar duro com Washington. Biden propôs a Xi que os líderes realizassem a cúpula em um esforço para quebrar o impasse nas relações EUA-China, mas várias pessoas informadas sobre a chamada disseram que o líder chinês não aceitou a oferta e, em vez disso, insistiu que Washington adotasse um tom menos estridente em relação a Pequim.

Reações contrárias entre as potências

Joe Biden anunciou o acordo, que se destina a reforçar as alianças em meio a tensões crescentes com Pequim sobre disputas que vão desde o Mar do Sul da China até Taiwan, em um evento virtual na quarta-feira com o Primeiro Ministro britânico Boris Johnson e seu homólogo australiano Scott Morrison.

A iniciativa da parceira foi cognominada AUKUS – um acrônimo que unifica as siglas em inglês da Austrália, Reino Unido e Estados Unidos. É notável como importantes parceiros transatlânticos de Washington, como a França e a Alemanha, não são parte do acordo. O Reino Unido já não é parte da União Europeia, pelos efeitos do Brexit. A Austrália já era parte do chamado “Quad”, que reúne também EUA, Índia e Japão, surgido em 2004 quando os países envolvidos lidaram em comum contra os efeitos devastadores do tsunami na Indonésia, e que desde então se ateve à contenção da China na Ásia.

Biden disse que a iniciativa, incluindo o plano do submarino nuclear, era necessária para garantir que os países tivessem a melhor tecnologia disponível para “defender-se contra ameaças em rápida evolução”, em retórica dirigida a Pequim. “Nossas nações . . têm estado lado a lado por literalmente mais de 100 anos”, disse Biden. “Hoje estamos dando outro passo histórico para aprofundar e formalizar a cooperação . . . porque todos reconhecemos o imperativo de garantir a paz e a estabilidade no Indo-Pacífico”. Scott Morrison disse que os aliados tinham que elevar sua parceria a um “novo nível” devido ao ambiente cada vez mais complexo na Ásia, outra referência velada à China. Boris Johnson disse que eles estavam “abrindo um novo capítulo” e que trabalhariam “de mãos dadas para preservar a segurança e a estabilidade” na Ásia.

Segundo o Financial Times, um alto funcionário norte-americano disse que enquanto a Austrália adquiriria tecnologia de propulsão nuclear - que os EUA só compartilharam com o Reino Unido - Camberra não desenvolveria armas nucleares. Biden também destacou que os submarinos não estariam armados com armas nucleares. Afirmou também que os navios iriam aumentar a capacidade naval australiana porque eram mais rápidos e mais furtivos do que os submarinos convencionais. Os submarinos de propulsão nuclear podem operar mais longe da Austrália, inclusive no Mar do Sul da China, e não precisam emergir com tanta freqüência.

O acordo dividiu reações nas grandes potências. Do teatro asiático, Japão e Taiwan exaltaram a confecção do novo pacto. Os governos de Tóquio e Taipei vinham tecendo relações mais próximas, inclusive no nível militar, para contrapor o avanço de Pequim nos mares Meridional e Oriental da China. Em abril, parlamentares do Partido Democrático Liberal, do Japão, e do Partido Democrático Progressista, de Taiwan, mantiveram conversas sobre defesa, segurança regional e diplomacia na Ásia. “Manter o Indo-Pacífico livre e aberto não é apenas importante para a segurança de países vizinhos como Taiwan, é essencial para a atual economia global interconectada”, disse Kolas Yotaka, porta-voz da presidente de Taiwan, Tsai Ing-wen.

Taro Kono, ex-ministro japonês de Defesa e das Relações Exteriores, e candidato principal para suceder Yoshihide Suga como primeiro-ministro, disse que Tóquio também deseja parceria com aliados para abordar a expansão militar da China. “Aplaudimos muito que o Reino Unido esteja mais uma vez voltando seus olhos para a região do Pacífico”, disse Kono. “É extremamente importante para o Japão trabalhar em estreita colaboração com estes três países”. Japão, e especialmente Taiwan, não poderiam estar inclusos no pacto, a fim de não irritar demasiado a China, que tomaria a inclusão como uma inaceitável declaração de hostilidade aberta por parte dos EUA.

A China modernizou rapidamente suas forças armadas nas últimas duas décadas e utilizou as capacidades do Exército de Libertação Popular (ELP) para reivindicações territoriais, especialmente no Mar do Sul da China. Aviões militares chineses voam quase diariamente sobre a zona de identificação de defesa aérea de Taiwan, que Pequim reivindica como parte de seu território e ameaça invadir a ilha se Taipei recusar a unificação indefinidamente.

De outro lado, China e França castigaram o acordo, por motivos diferentes. Zhao Lijian, porta-voz do Ministério das Relações Exteriores da China, acusou EUA, Reino Unido e Austrália de “dois pesos e duas medidas” e de uma “mentalidade antiquada da Guerra Fria, de soma zero”. A embaixada chinesa em Washington também criticou o movimento, dizendo que EUA, Reino Unido e Austrália não deveriam construir “blocos excludentes visando interesses de terceiros”. “Eles deveriam se livrar de sua mentalidade de Guerra Fria e preconceito ideológico”, acrescentou Liu Pengyu, o porta-voz da embaixada, deixando claro que o AUKUS "prejudicaria seriamente a paz e estabilidade regionais e intensificaria a corrida armamentista".

A França se enfureceu por ser uma perdedora comercial e geopolítica. O AUKUS poria fim a um programa de US$90 bilhões existente em que a Austrália compraria 12 submarinos convencionais de design francês. Esse acordo comercial com Paris foi cancelado em nome da aquisição de submarinos nucleares. Camberra também pretende comprar mísseis de cruzeiro Tomahawk para sua marinha, e mísseis de cruzeiro lançados no ar para a Real Força Aérea Australiana, disse Morrison.

Jean-Yves Le Drian, ministro francês das Relações Exteriores, e Florence Parly, ministra da Defesa, atacaram a Austrália por agir “contrariamente à letra e ao espírito da cooperação” entre os dois países. Le Drian e Parly também acusaram os EUA de excluir “um aliado europeu e parceiro de uma parceria estruturante com a Austrália, num momento em que estamos enfrentando desafios sem precedentes na região Indo-Pacífico”.

“A lamentável decisão ... apenas reforça a necessidade de tornar a questão da autonomia estratégica européia mais clara e clara. Não há outra maneira confiável de defender nossos interesses e nossos valores no mundo, inclusive na região indo-pacífico”, acrescentou Le Drian, retomando as posições de Emmanuel Macron sobre a construção de uma força própria da Europa que não dependa de Washington.

Philippe Etienne, oficial do governo francês, twitou sugestivamente que "Há 240 anos, a Marinha francesa derrotou a Marinha britânica em Chesapeake Bay, abrindo caminho para a vitória em Yorktown e para a independência dos Estados Unidos".

Biden, Morrison e Johnson disseram que, além de ajudar a Austrália a construir uma força submarina movida a energia nuclear, eles também impulsionariam a cooperação em áreas como segurança cibernética, inteligência artificial e computação quântica. Um funcionário britânico disse que a aliança se concentraria na tecnologia marítima e de defesa, em contraste com o acordo de compartilhamento de inteligência conhecido como Five Eyes que reúne EUA, Reino Unido, Austrália, Nova Zelândia e Canadá.

Jacinda Ardern, primeira-ministra da Nova Zelândia, confessou que não foi comunicada do acordo AUKUS. "Este não é um acordo que possui nível de tratado. Não muda nossas relações existentes, incluindo o Five Eyes ou nossa estreita parceria com a Austrália em questões de defesa". De acordo com a lei neozelandesa, acrescentou, os submarinos australianos movidos a energia nuclear não seriam autorizados a entrar nas águas da Nova Zelândia.

Biden não contou ao Xi Jinping da China sobre a iniciativa quando os dois líderes falaram ao telefone na semana passada. O AUKUS foi formado uma semana antes de Biden receber os líderes do Japão, Índia e Austrália para a primeira cúpula do Quad, descrito por Pequim como uma "OTAN asiática". Todos os três países possuem disputas com Pequim. O Japão disputa com a China a posse das ilhas Senkaku/Diaoyutai; a Índia tem escaramuças frequentes com a China para definir as linhas fronteiriças no Himalaia. Já a Austrália foi punida pela China, em suas exportações de materias-primas, por acusar Pequim de esconder as causas de origem da COVID-19 em Wuhan.

Barril de pólvora no Indo-Pacífico

Biden aproveita o momento para tentar demonstrar compromisso com a segurança de seus aliados após o desastre da retirada dos EUA do Afeganistão.

Richard Fontaine, chefe do Center for a New American Security, um think-tank, disse que os submarinos eram um "grande negócio" que não só daria à Austrália melhores capacidades, mas ajudaria Washington, particularmente em meio às críticas de que a China está superando os EUA na construção de navios e submarinos da marinha. "A verdadeira medida de comparação não é a China de um lado e os EUA do outro. É a China de um lado, com os EUA e seus aliados do outro", disse Fontaine.

O acordo não chega a permitir que a Austrália "projete poder" na região do Indo-Pacífico. Esse não é o objetivo dos EUA. Washington deseja que a Austrália se converta em uma "dor de cabeça adicional" à China, dentro do tabuleiro de alianças que monta numa região que controla desde o final da Segunda Guerra Mundial. Ninguém quer ter aliados impotentes; tomados de maneira isolada, nem a Austrália, nem a Índia, poderiam postar desafio suficiente à assertividade do governo bonapartista autocrático de Xi Jinping. Em conjunto, entretanto, podem obrigar a China a abrir demasiado o leque de opções de defesa, o que não é recomendável para uma potência em ascensão.

Em seus cálculos anteriores, os militares chineses previam enfrentamentos apenas contra a interferência das marinhas dos EUA e do Japão. Submarinos nucleares australianos não estavam na conta. Xi Jinping disse repetidamente que a unificação com Taiwan era uma "missão histórica e um compromisso inabalável" que não podia "ser passado de geração em geração". Pequim prometeu tomar o controle de Taiwan pela força, se necessário. A peça australiana entra nesse xadrez. O Almirante Lee Hsi-ming, ex-chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas de Taiwan, disse sobre o AUKUS: "Os submarinos nucleares dão à Austrália, pela primeira vez, capacidade estratégica de dissuasão e ataque, serão capazes não apenas de proteger suas próprias vias marítimas de comunicação, mas também de se posicionar longe de casa".

Isso está para se ver, já que os oito submarinos de propulsão nuclear ainda devem ser construídos, comissionados e postos em funcionamento. Já a China desenvolveu seu novo submarino nuclear da classe Jin, o Tipo 094A, que ao contrário dos submarinos australianos (que não teriam mísseis nucleares), está equipado com ogivas nucleares, e mísseis balísticos capazes de atingir alvos a 10.000 km de distância. Esse armamento deveria substituir a velha tecnologia naval chinesa herdeira do arsenal soviético da década de 1950. Segundo o Nuclear Threat Initiative, a China possui 4 submarinos de mísseis balísticos, e 6 submarinos de propulsão nuclear (a imensa maioria dos 60 submarinos chineses é movida a diesel, com tecnologia antiquada). Outras fontes confirmam que a China possui 14 submarinos nucleares em funcionamento. É provável que o AUKUS signifique a aceleração do programa naval chinês, que havia sido impulsionado desde o início do governo Xi em 2013, e incremente nos próximos anos a armada chinesa.

Mais em geral, o Indo-Pacífico começa a se tornar um barril de pólvora marítimo. Isso tem a ver com a política do establishment norte-americano de contenção da China, como se revela no documento intitulado “Guia Provisório de Estratégia de Segurança Nacional” (Interim National Security Strategic Guidance), divulgado em março de 2021, segundo o qual a China é o único competidor [dos Estados Unidos] potencialmente capaz de combinar o seu poder econômico, diplomático, militar e tecnológico a fim de opor um desafio sustentado a um sistema internacional aberto e estável.

Como afirma Matthew Goodman, do Center for Strategic and International Studies, Biden deixou claro que compartilha com Trump a caracterização da China como “competidora estratégica” dos Estados Unidos. Biden não desfará o que foi realizado por Trump nesse terreno, porque a contradição entre o declínio imperial dos Estados Unidos e a ascensão da China é um processo estrutural de longa data, e veio para ficar. Por isso, embora existam diferenças táticas de como fazê-lo, o Partido Democrata não tem nenhum interesse em diminuir a necessidade de conter e atrasar a ascensão da China, uma política de primeira ordem para a classe dominante dos Estados Unidos.

 
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