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O espectro do 11 de Setembro e a crise no Afeganistão
Maryam Alaniz

No final de 2001, depois que os EUA invadiram o Afeganistão, uma capa da revista Time declarou com orgulho: “Os últimos dias do Talibã”. Quase 20 anos depois, artigos na mídia convencional estão dissecando o que poderia ser chamado de “Os últimos dias dos EUA”. Depois de quase 20 anos, a guerra mais longa da história dos EUA agora faz parte da própria história.

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Imagem: Brian Stauffer

Enquanto os EUA tentam lidar com sua posição diminuída no mundo após o conflito de 20 anos, vítimas do programa de tortura da CIA na Baía de Guantánamo estão preenchendo cargos de liderança no novo governo afegão.

Para o governo Biden, a retirada, que foi simbolicamente arquitetada para ser concluída no 20º aniversário dos atentados de 11 de setembro, abriu uma das maiores crises de sua presidência até agora. O índice de aprovação de Biden caiu 8 pontos em resposta à crise no Afeganistão. Esta é a queda mais acentuada desde que Biden assumiu o cargo e a primeira vez que seu índice de aprovação caiu para menos de 50%.

A tragédia em torno da queda de Cabul e do resto do país tem sido dominada por dedos apontando para ambos os lados do corredor, apesar da intervenção no Afeganistão ser um assunto bipartidário. Enquanto Trump e Biden estão atirando um no outro por “falta de competência”, ao orquestrar a retirada, na realidade, o desastre foi causado por nada menos que quatro presidentes de partidos imperialistas dos EUA.

Enquanto isso, outros setores importantes adotaram uma narrativa reacionária pró-guerra em resposta ao caos da retirada junto a alguns pensadores militares dos EUA e figuras do establishment, como Kissinger, em negação aberta a respeito da situação em questão.

Talvez esses “especialistas” em política externa tenham convenientemente esquecido as atrocidades que cometeram e a forma como a “guerra ao terror” começou. A história de como o islamismo radical se tornou o principal antagonista dos EUA tem raízes nos objetivos estratégicos dos EUA de garantir um controle absoluto sobre as ricas reservas de petróleo do Oriente Médio. Após a Revolução Iraniana sinalizar a perda de um importante reduto regional dos EUA (e acesso à riqueza do petróleo do país) e ameaçar reforçar os sentimentos revolucionários das massas em toda a região, os EUA, em aliança com a Arábia Saudita, Paquistão e outros Estados do Golfo patrocinaram os mujahidin afegãos para conter a invasão soviética no Afeganistão. No decorrer de alguns anos, facções desses guerrilheiros islâmicos se tornaram os maiores inimigos dos EUA.

Entre os “heróis do jihad” apoiados pelos americanos, Osama Bin Laden, de origem saudita, nutria de forma mais definitiva ressentimentos em relação aos EUA após o fortalecimento da aliança saudi-americana durante a Guerra do Golfo. Bin Laden condenou a implantação militar americana e argumentou que o Alcorão proibia os não-muçulmanos de colocar os pés na Península Arábica, que é o local dos dois santuários mais sagrados do Islã.

Além da Al-Qaeda, no entanto, o mundo muçulmano nutria um profundo senso de antiamericanismo devido a décadas de políticas imperialistas e pró-sionistas e o apoio e instalação pelos EUA de governos despóticos e ditatoriais em toda a região. Por sua vez, o surgimento de movimentos islâmicos radicais representa uma expressão distorcida dos processos de radicalização na região. Esse fenômeno só pode ser explicado pelas lentes da retirada do movimento operário, especialmente durante a ofensiva neoliberal, que impediu setores de vanguarda dos países imperialistas e semicoloniais de propor uma alternativa para os povos oprimidos pelo imperialismo.

Buscando sua vingança, os EUA usaram a cortina de fumaça do 11 de setembro para flexionar seus músculos militares e invadir e ocupar o Afeganistão em 7 de outubro de 2001, assumindo o campo de aviação de Bagram, que antes era uma base dos soviéticos. Esta estratégia reacionária e unilateral concebida pelo setor neoconservador hawkish do governo Bush procurou reafirmar agressivamente a posição dos EUA no mundo. Ideologicamente, quase da noite para o dia, o Islã substituiu o comunismo como a ameaça mais iminente à sociedade ocidental e o 11S se tornou um tapa na cara das narrativas do “Fim da História” promovidas por comentaristas liberais que prometiam a ideia de que uma realidade globalizada e pacífica era iminente.

Na verdade, a guerra lançada no Afeganistão após o 11S foi apenas a primeira etapa de uma série de intervenções do Iraque à Síria, ao Iêmen e à Somália, inaugurando uma era de “novo intervencionismo” como parte da guerra contra o terror marcado por guerras sem fim, a desestabilização da região e o declínio relativo da hegemonia dos EUA.

Em casa, a resposta chauvinista do imperialismo dos EUA a esta situação política exacerbada assumiu a forma de ataques sem precedentes às liberdades democráticas por meio de medidas de vigilância e segurança mais rígidas, legitimação da tortura e ataques a muçulmanos.

Durante esses dias sombrios, o apoio à guerra entre amplos setores, incluindo feministas liberais e líderes sindicais chauvinistas de muitas maneiras explica porque os protestos contra a invasão do Afeganistão foram menores em comparação com os protestos contra a guerra após a invasão do Iraque em 2003. Avançamos rapidamente para 2021 e a guerra mais longa também é agora uma das mais impopulares. Donald Trump sabia disso quando fez campanha para acabar com as “guerras eternas”. Mas nem Biden nem Trump realizaram a retirada por razões progressistas. Na verdade, a retirada apenas ressalta confrontos maiores à frente.

O novo bicho-papão dos Estados Unidos

A mudança sísmica que caracteriza a situação geopolítica desde o início da guerra contra o terror tem sido a ascensão gradual da China no contexto de um império norte-americano em declínio. À medida que esse processo se desenvolveu, as tendências sinofóbicas tomaram o centro do palco na política externa dos EUA no lugar da visão islamofóbica de que um “choque de civilizações” ocorreria no mundo muçulmano.

Como cálculo estratégico, a retirada do Afeganistão é tanto uma redistribuição quanto uma retirada. Longe de ser uma medida anti-guerra, o governo Biden está terminando o trabalho que os governos imperialistas anteriores começaram – preparar-se para a crescente confrontação com a China.

No entanto, a crise atual está provando que esse realinhamento estratégico era mais fácil de falar do que fazer. Mesmo Barack Obama – ironicamente premiado com o Prêmio Nobel da Paz – fez promessas de campanha para acabar com a guerra e tentou um Pivô para a Ásia, mas acabou aumentando as campanhas de bombardeio na Síria, Iêmen, Líbia, Somália e Iraque. Embora o governo Biden entenda que os EUA não estão mais em posição de ser “o policial do mundo”, o imperialismo e seu intervencionismo de uma forma ou de outra veio para ficar. Os bombardeios rápidos que Biden autorizou recentemente no Afeganistão são prova disso.

Enquanto o “Grande Jogo” para os Estados Unidos no Oriente Médio e na Ásia Central está longe de terminar, os planejadores militares dos Estados Unidos, como resultado da luta de guerrilhas por quase duas décadas, estão tentando se reaproximar das abordagens convencionais à guerra devido ao crescimento da competição entre os EUA e a China. É um sinal de que a destrutividade de eventos como a Segunda Guerra Mundial não são apenas uma invenção da nossa imaginação e que, apesar das consequências da retirada do Afeganistão, o imperialismo dos EUA está dobrando suas capacidades em vez de diminuir, como evidenciado pelo histórico orçamento militar proposto pela administração Biden.

Embora o impacto geopolítico total da crise no Afeganistão ainda deva ser visto, sem dúvida, a crise acelerou o declínio da hegemonia americana e fortaleceu os rivais dos EUA, incluindo, mas não se limitando, a China, Rússia, Paquistão e Irã.

Para a China, o Talibã representa o menor de dois males, mas apesar da aprovação inicialmente cautelosa de Pequim do novo governo afegão, a China tem se mantido firme nos últimos dias para se assegurar como o principal parceiro estrangeiro do Talibã, com o apoio à liderança do Talibã, que está desesperadamente procurando reconhecimento internacional e apoio financeiro. Ao fazer isso, a China anunciou recentemente pelo menos 31 milhões de dólares em ajuda de emergência, incluindo suprimentos de alimentos e vacinas contra o coronavírus, durante uma reunião com ministros das relações exteriores dos países vizinhos do Afeganistão, incluindo Paquistão, Irã, Tadjiquistão, Uzbequistão e Turcomenistão.

A abordagem pragmática da China ao Talibã tem seus riscos, no entanto. Por um lado, a China provavelmente teme o fato de ter um grupo militante islâmico bem à sua porta no meio de sua campanha brutal que tem como alvo a população muçulmana Uigur por seu “extremismo”. E sua colaboração próxima e contínua com o impopular Talibã corre o risco de alienar não apenas sua própria população, mas também as massas do mundo semicolonial que pretende influenciar. Esse relacionamento cada vez mais profundo também é um fator decisivo nos programas de diplomacia de vacinas da China, que tentam fortalecer o poder brando de Pequim.

O próximo capítulo da luta afegã

A resistência contra o Talibã tem aumentado nas últimas semanas enquanto sua consolidação no poder se torna mais e mais iminente. Estes protestos, liderados predominantemente por destemidas mulheres e jovens, têm enfrentado forte repressão e continuam fragmentados. No entanto, eles têm o potencial para iniciar um movimento nacional que teste o brutal e reacionário regime do Talibã.

Manifestações em Cabul e cidades menores variaram de várias centenas a poucas dezenas de pessoas, a maioria levantando a demanda de “Liberdade”. Os manifestantes foram dispersados por militantes do Talibã atirando com armas de fogo. Mais de 100 manifestantes e jornalistas foram feridos e pelo menos 10 foram mortos, ainda que números não oficiais são provavelmente maiores.

Com o espalhamento dos protestos, o Talibã procurou bani-los. O número de prisões aumentou, sujeitando os manifestantes ao abuso de celas superlotadas. Mas os manifestantes disseram que as manifestações continuarão nos próximos dias, com mais e mais protestos sendo organizados online por ativistas locais. Uma manifestante afegã, mãe de quarto crianças (incluindo um bebê), recentemente disse:

O Talibã não estará aqui por alguns dias. Eles estarão aqui a longo prazo. Temos que demandar nossos direitos, não só para nós, mas para a futura geração, nossas crianças. Sabemos que o Talibã vai nos encontrar e podemos ser perseguidos. Mas não temos escolha. Temos que continuar.

Em meio a essa situação aguda, alguns setores de afegãos e mesmo alguns de esquerda colocaram suas esperanças no apoio à Frente de Resistência Nacional do Afeganistão (FRNA), um grupo sucessor da Aliança do Norte, liderado pelo famoso comandante de guerrilha afegão, Ahmad Shah Massoud. O grupo é baseado na província Panjshir, que tem uma população de maioria tajique. A província Panjshir foi a última das 34 províncias afegãs a caírem para o Talibã, depois de uma ofensiva nesta semana. Apesar do antagonismo da FRNA em relação ao Talibã, muitos afegãos lembram da Aliança do Norte como tão opressora quanto o Talibã, se não mais, depois de seu breve tempo no poder no início dos anos 90.

Durante a invasão do Afeganistão pelos EUA, o grupo se aliou com o imperialismo norte-americano e agiu como intermediador durante a ocupação, lucrando enormemente enquanto infligia arbitrariamente violência sobre o povo afegão. Com o recuo da FRNA, talvez o ISIS-K (Estado Islâmico-K), outro grupo fundamentalista de extrema direita, vá tentar recrutar aqueles que estão descontentes com o Talibã no poder. Grupos anti-Talibã como esses claramente não são a solução para a miséria do povo afegão.

Na década passada, os povos da região demonstraram repetidamente suas aspirações por alternativas políticas que vão além das perspectivas reacionárias de grupos fundamentalistas como a Al-Qaeda, o Talibã, e o Estado Islâmico. A onda de luta de classes que levantou o Movimento Verde no Irã e a Primavera Árabe, assim como protestos mais recentes no Líbano, Iraque, e na Palestina ocupada, mostra a disposição de amplos setores para a luta no contexto de instabilidade regional e influência imperialista.

Talvez essa realidade seja sentida de forma mais aguda entre a geração de jovens que cresceu sob a sombra da guerra contra o terrorismo em países que possuem algumas das populações mais jovens do mundo, o que inclui o Afeganistão. Esta geração, que não tem um caminho claro para uma melhor qualidade de vida e sente que nada deve a este sistema podre, tem se colocado corajosamente na vanguarda de lutas importantes, como a que está acontecendo na Palestina.

Ao lado da juventude e das mulheres, as minorias oprimidas, como os hazaras no Afeganistão, que foram alvos dos etnonacionalistas Pashtun do Talibã, também têm um papel fundamental a desempenhar na unificação das lutas e na condução dessas lutas. Assim como o recente levante na região Khuzistão do Irã mostrou alianças entre nacionalidades oprimidas, como árabes iranianos e outros setores, podem desempenhar um papel fundamental nas lutas entre as populações multiétnicas da região.

Levando esses exemplos em consideração, o único caminho viável para sair da crise que os oprimidos e explorados no Afeganistão enfrentam é aquele em que junto aos trabalhadores se encarregam de determinar seu próprio destino contra seus inimigos locais, que estão empenhados em manter um sistema baseado em muita opressão e exploração. Esses mesmos protagonistas devem também exercer seu direito democrático à autodeterminação e decidir o curso de seu país independentemente de qualquer interferência imperialista e estrangeira.

Essa luta, porém, não deve acontecer no vácuo. A responsabilidade recai sobre os ombros dos trabalhadores e oprimidos em toda a região e em todo o mundo para demonstrar solidariedade ativa com a luta das massas afegãs. Não se trata de usar armas imperialistas, como pedir sanções ao Paquistão e outros países amigos do Talibã no Paquistão, que prejudicaria principalmente os oprimidos, incluindo os milhões de refugiados afegãos que vivem lá. Trata-se de utilizar nossas próprias armas e métodos.

Espelhando-se no exemplo da juventude e dos trabalhadores que participaram do movimento anti-guerra dos anos 1960, precisamos de um movimento anti-imperialista renovado. Isso é ainda mais urgente 20 anos após o 11 de setembro, com o crescimento da crise humanitária no Afeganistão que se deparou com mais bombas.

Olhando para a frente, construir as bases de um movimento anti-imperialista agora, com a combatividade da geração que cresceu sob a sombra do 11 de setembro, nos colocará em melhor posição para enfrentar à força um sistema imperialista marcado pela crescente competição entre os Estados Unidos e a China. Nossa luta não é apenas para tirar os Estados Unidos do Afeganistão e da região, mas também para fechar todas as bases dos Estados Unidos ao redor do mundo, lutar contra a máquina de guerra que é tão central para os lucros capitalistas e a hegemonia dos Estados Unidos e lutar contra nossos inimigos em casa que oprimem as pessoas da classe trabalhadora em todo o mundo.

 
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