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Limites da época ou degeneração burocrática? Um breve debate sobre o stalinismo e a questão da mulher
Mariana Duarte
Estudante | Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo

Diante da abertura do último ciclo de luta de classes internacionalmente, o debate de estratégias se torna ainda mais candente. Aos 81 anos do assassinato de Leon Trótski, contra todo tipo de falsificação stalinista que infelizmente permeia a esquerda mundial até os dias de hoje, é preciso retomar alguns dos principais fundamentos teóricos de por que toda a obra de Stalin se tratou de uma verdadeira negação do marxismo revolucionário. Nessa batalha, queremos aqui combater alguns dos argumentos recentemente utilizados para defender todo o retrocesso realizado pela burocracia stalinista do ponto de vista dos direitos das mulheres.

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Ilustração: Juan Chirioca | @macacodosul

Não é novidade que, mesmo após anos de todo o processo de restauração capitalista na URSS, ainda existam aqueles que, de maneira cínica, queiram ser parte do resgate do sujo legado da degeneração burocrática do Estado operário fundado pela Revolução Russa de 1917. Como parte desse objetivo existem algumas organizações políticas hoje na esquerda brasileira que se utilizam de todo tipo de malabarismo teórico para defender o indefensável. No entanto, quando se trata de defender ou justificar os tremendos retrocessos que representaram para a vida das mulheres soviéticas as medidas tomadas pela burocracia stalinista após a morte de Lênin, a defesa desse legado demonstra uma de suas faces mais degeneradas.

Um dos principais argumentos utilizados para defender esse legado é o de que o projeto da URSS era o projeto mais avançado daquele momento, mas não do presente. Ou seja, uma série de aspectos que hoje são considerados progressistas, no início do século XX era impossível que fossem encarados dessa forma. Tal discussão esbarra inevitavelmente no debate em relação ao direito ao aborto, ao divórcio e mais uma série de reivindicações dos direitos das mulheres que foram extintas com a chegada da burocracia.

O direito ao aborto e o papel do stalinismo

A URSS foi o primeiro Estado na História a legalizar o direito ao aborto. Essa mesma luta que hoje foi capaz de mobilizar centenas de milhares de mulheres e meninas na chamada Maré verde na Argentina e que arrancou do regime político argentino sua legalização, foi pela primeira vez pautada na Rússia Soviética. Foi no ano de 1920 que o aborto foi legalizado ali, sendo encarado como um triste direito, mas mediante a compreensão profunda de que era necessário leis que caminhassem num sentido de libertação das mulheres. Tal compreensão era parte do chamado Código da Família, da Tutela e do Casamento, criado em 1918. Em seu texto “Stalinismo, trotskismo e a luta contra a opressão às mulheres”, Diana Assunção coloca que:

“Não se tratava de um adendo no processo revolucionário, mas de uma questão central. Também não se tratava de uma visão romântica sobre a libertação das mulheres, e sim de uma batalha científica para realmente avançar pelo fim da opressão. O centro do pensamento bolchevique sobre a libertação feminina se dava com base em quatro princípios: a) união livre; b) emancipação das mulheres através da independência econômica; c) socialização do trabalho doméstico; e d) gradual e inevitável desaparecimento da unidade familiar. Sem avançar nesses pontos, ao lado da planificação da economia e do monopólio do comércio exterior, não seria possível abrir espaço para a libertação das mulheres, incluindo aí a perspectiva internacionalista da Revolução, que foi umas das principais teses de Trótski. A Revolução Russa criou o Código da Família, da Tutela e do Casamento em 1918, um dos mais avançados, legalizou o divórcio (que poderia ser feito até por cartão postal!), legalizou o aborto, a homossexualidade deixou de ser crime, acabou com a divisão entre filhos legítimos e ilegítimos e avançou para a socialização das tarefas domésticas.” [1]

Ou seja, tratava-se de uma batalha científica por parte do Estado Operário de, ao se apoiar nas transformações materiais, econômicas e políticas que se desenvolviam em seu interior, caminhar num sentido de emancipação das mulheres, através de leis que visavam libertar economicamente a mulher do homem e das tarefas domésticas. Isso se ligava, ao contrário do que dizem aqueles que querem resgatar o legado de Stálin, a uma compreensão de Lênin e Trótski de que o lugar da mulher não era no lar, na família e no cuidado das tarefas domésticas, e sim nas trincheiras de luta do conjunto da classe trabalhadora, como sujeitos políticos do processo revolucionário, cumprindo um papel dirigente nos sovietes e na formação do novo Estado Operário.

Sendo assim, se analisamos o papel que os bolcheviques cumpriram no início do século XX com relação à libertação das mulheres, torna-se algo chocante qualquer argumento que aponte num sentido de que “não era essa a mentalidade”, ou de que Stálin tinha limites em suas concepções mas que eram limites da própria época. Isso não significa que não houvesse um atraso enorme na consciência da imensa maioria dos trabalhadores em relação a questão de gênero. É inegável que os preconceitos em relação a estrutura familiar e ao papel da mulher, consolidados durante séculos na sociedade de classes e apropriados pela burguesia para aumentar seus lucros, era parte do que pressionava os trabalhadores russos. No entanto, Lênin, Trótski e mais uma série de bolcheviques revolucionários entendiam que a superação de tais atrasos era um passo fundamental no avanço das tarefas da revolução no interior do Estado Operário.

Em um discurso no ano de 1925, Trótski apontava que:

“Vocês devem ser a força moral que arrasará com esse conservadorismo enraizado na nossa velha natureza, na escravidão, nos preconceitos burgueses e nos da própria classe operária, que neste sentido, arrasta o pior das tradições camponesas. E todo revolucionário consciente, todo comunista, todo operário e camponês progressista, se sentirá obrigado a vos apoiar com todas as forças.” [2]

Foi no ano de 1926 que se instituiu novamente o casamento civil como única união legal, e poucos anos depois o direito ao aborto deixou de ser legalizado e, em 1934, a homossexualidade passou a ser criminalizada. Em relação ao aborto, Stálin declara no ano de 1936 que

“O aborto que destrói a vida é inadmissível em nosso país. A mulher soviética tem os mesmos direitos que o homem, mas isso não a exime do grande e nobre dever que a natureza lhe assinalou: é mãe, dá vida.”

O que se somou com a absurda medida de que a mulher que tivesse mais de 10 filhos ganhava uma medalha de “Mãe Heróica”, como podemos ver na obra de Wendy Goldman Mulher, Estado e Revolução [3].

Em outras palavras, não se trata de justificar os retrocessos nos direitos das mulheres que o Estado Operário havia realizado de maneira revolucionária contra o que havia de mais avançado da democracia capitalista. Trata-se de entender que o stalinismo representou o avanço das bases da contrarrevolução e buscou destruir cada uma das medidas revolucionárias conquistadas pela Revolução de 1917.

A noção de que o retrocesso representado por Stálin era fruto de um “limite imposto pela época”, para além destes elementos, choca-se diretamente com o fato de que, já naquele momento, o movimento de mulheres se organizava internacionalmente. Uma série de operárias revolucionárias como Clara Zetkin, Alexandra Kollontai e outras centenas de mulheres se organizavam em defesa da igualdade perante a lei e perante a vida. O 8 de março, dia internacional das mulheres, inclusive surge em 1910 durante as conferências de mulheres da Internacional Comunista.

A teoria do “socialismo em um só país” expressava justamente a visão de que a revolução na Rússia estaria 90% concluída. Ou seja, que a tomada do poder e a expropriação dos meios de produção das mãos da burguesia significava que a imensa parte das tarefas da revolução estaria cumprida. Tal concepção serviu para justificar a derrota de todas as revoluções que se seguiram nos países vizinhos a Rússia e nos demais processos revolucionários dirigidos pela Internacional Comunista após a morte de Lênin, os quais, sob o comando de Stálin, tiveram como desfecho inevitável um acúmulo de derrotas.

Para saber mais: Confira o curso sobre o livro Stálin: o grande organizador de derrotas, ministrado por Edison Urbano aqui.

Stálin, ao lado dos demais dirigentes da burocratização do Estado Operário, conduziu a Revolução Russa a um verdadeiro beco sem saída, pois a transformou em um fim em si mesmo. Para manter seu aparato burocrático recheado de privilégios materiais sobre o conjunto dos trabalhadores soviéticos, era preciso cortar pela raiz cada uma das medidas mais avançadas trazidas pela revolução, já que estas poderiam cumprir um papel perigoso frente a esse objetivo reacionário: abrir espaço para que o pensamento das trabalhadoras e trabalhadores pudesse ir além dos limites impostos pela burocracia e, com isso, avançar num sentido de superar as amarras da degeneração do estado soviético e caminhar para retomar o estado para as mãos dos trabalhadores que tomaram o céu de assalto.

Ao contrário do que dizem os que defendem esse legado, tais medidas de avanço da burocratização eram opostas a herança de Lênin, que junto com Trótski sempre defendeu a necessidade da expansão da revolução como forma de preservar suas conquistas.

A teoria da revolução permanente e a questão da mulher

O debate que queremos fazer aqui diz respeito a entender que, como feministas revolucionárias, é preciso compreender que a luta das mulheres é a mesma luta pela transformação revolucionária da humanidade, pela revolução socialista. Não são lutas separadas e, portanto, com o desenvolvimento da contrarrevolução no interior do Estado Operário, era impossível o avanço do processo de emancipação da mulher. Essa era a visão que Lênin, ao lado de Trótski buscava defender em cada uma de suas batalhas.

Em relação a essa visão, em seu texto “Para construir o socialismo é preciso emancipar a mulher e proteger a maternidade”, León Trótski coloca:

“Assim como era impossível construir o Estado soviético sem libertar o campesinato dos laços da servidão, também será impossível construir o socialismo sem libertar a mulher operária e camponesa dos grilhões do trabalho com a família e o lar. [...] A liberação da mulher significa cortar o cordão umbilical que ainda une o povo às superstições do passado.” [4]

Portanto, estabelecia uma visão profunda da ligação em relação aos avanços do Estado Soviético e as tarefas revolucionárias dentro da revolução, contra a visão de que a tomada do poder seria 9/10 da revolução, Trótski, como parte de retomar os fios de continuidade com a teoria de Marx, Engels e Lênin, defendia que era necessário seguir com o processo de revolução dentro da revolução, o que se ligava com encarar a revolução a nível nacional como um elo de uma cadeia internacional, aspecto fundamental do avanço das tarefas revolucionárias.

Tal visão era parte do que o revolucionário russo desenvolveu com a Teoria da Revolução Permanente, que do ponto de vista das tarefas revolucionárias colocava justamente como, nos países atrasados, as tarefas democrático burguesas só poderiam ser levadas a frente pela revolução proletária, o que se ligava com a continuidade internacional da revolução e, por sua vez, o seguimento das tarefas revolucionárias no interior da própria revolução. Tais aspectos são parte do caráter permanente da revolução socialista e totalmente fundamentais se queremos hoje ser parte daquelas que se preparam para a vitória do conjunto da classe trabalhadora, que arrastará consigo todo o velho lixo patriarcal que oprime e explora as mulheres na sociedade capitalista.

É preciso retomar o legado daquele que deixou para as novas gerações de meninas e mulheres a face mais acabada de uma estratégia e um programa para derrubar o Estado Burguês e abrir caminho para o novo. Trótski dizia que era preciso enxergar o mundo pelo olhar das mulheres pois compreendia que são os setores mais oprimidos da sociedade que irão transformar tudo e pavimentar o futuro.

Aos 81 anos de seu assassinato por um agente de Stálin, contra toda a falsificação histórica do stalinismo e seu legado de perseguição, morte e assassinato de centenas de revolucionárias e revolucionários, de degeneração das conquistas da revolução proletária e dos direitos das mulheres trabalhadoras, seguimos na luta para colocar de pé uma organização trotskista revolucionária no Brasil e no mundo.

 
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