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Literatura e resistência
Nossa história e cultura não se queimam nem se apagam: críticas sociais na poesia de Cordel
Lara Zaramella
Estudante | Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo

1º de agosto é o Dia do Poeta da Literatura de Cordel e, no Brasil de Bolsonaro e Mourão, em que a Cinemateca, museus e patrimônios ardem em chamas, como parte de um projeto de país que tenta apagar e queimar nossa história, é ainda mais importante manter viva a cultura popular permeada por críticas e questionamentos políticos e sociais.

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“Não foi príncipe dos poetas do asfalto, mas foi, no julgamento do povo, rei da poesia do sertão, e do Brasil em estado puro”.
(Carlos Drummond de Andrade sobre o poeta Leandro Gomes de Barros)

Neste 1º de agosto, comemora-se o Dia do Poeta da Literatura de Cordel, literatura mais fortemente produzida e documentada a finais do século XIX e início do XX na região Nordeste. Ainda que seja uma literatura que, infelizmente, porém não surpreendentemente, seja pouco analisada e referenciada no meio acadêmico, muitos críticos literários apontam que falar sobre Cordel, até o ano de 1918, é, de certa forma, falar sobre o poeta popular Leandro Gomes de Barros.

A partir de retratar satírica e criticamente os temas da tradição oral e de acontecimentos daquele período no Nordeste, Leandro Gomes de Barros é conhecido por ser pai criador do cordel, também nomeado popularmente como “o primeiro sem segundo” na sua arte. O poeta pernambucano foi pioneiro na produção e também na difusão dessa literatura popular escrita e cantada por trabalhadores nordestinos, levando o cordel para o sertão, para as feiras e para os centros urbanos.

A situação do Nordeste naquele momento reflete e repete a marca da desigualdade, com relações sociais e econômicas pautadas pela herança colonial e escravocrata, pelo coronelismo e uma massa de trabalhadores que sofriam com a opressão e exploração de seus patrões sedentos por manter suas posições privilegiadas em uma realidade em que a fome, descaso e miséria predominavam.

Especialmente nas regiões rurais, as condições de vida eram bastante precárias e as informações eram escassas e chegavam atrasadas. É nesse contexto que a literatura de cordel, conhecida por não só ser escrita, mas também cantada, cumpre um papel social importante para fazer com que a população, em sua maioria analfabeta e esquecida pelos governos, pudesse ter acesso ao que acontecia no país e no mundo, acesso à cultura e à informação.

Esses eram os objetivos do poeta Leandro Gomes de Barros que no final do século XIX passa a percorrer o sertão nordestino difundindo seus materiais de cordel. Com obras que recontam histórias clássicas como as heroicas de Homero, romances medievais e de cavalaria, levava para o povo a cultura advinda da Europa, adaptando as histórias à realidade e imaginário nordestinos. Além disso, as obras de Leandro Gomes de Barros são marcadas por basear-se em causos cotidianos, problemas sociais, histórias rotineiras e populares, levando do sertão para o litoral, do rural para o urbano, as críticas presentes na boca do povo naquele momento.

O cordel nasce então já marcado por essa realidade agreste, pelas relações sociais e econômicas de exploração, de desigualdade, com histórias com críticas sociais e políticas, sendo porta-voz de muitos pensamentos e opiniões da população.

Seleciono e compartilho aqui alguns trechos de alguns cordéis, que não só servem para conhecer mais a obra do poeta Leandro Gomes de Barros, mas também para ver a forma e conteúdo desta literatura popular que retratava o contexto nordestino daquele momento, sendo patrimônio e parte da história desta região, deste povo e de nosso país.

O poeta, em muitas de suas obras, baseava-se em notícias de crimes e prisões e, com o recurso da sátira, criticava e apontava como o que originava ações imorais e violentas como assassinatos e roubos, estava ligado aos problemas sociais de fome, desigualdade entre as classes sociais, abandono estatal e exploração.

Em um cordel chamado “A palmatória e o punhal”, Leandro Gomes de Barros se baseia na notícia de um trabalhador que havia apunhalado um coronel por ter sido demitido com porradas e impedido de encontrar novo trabalho. Esse é um de seus cordéis mais conhecidos e polêmicos, já que não só trata do assassinato jornalístico, mas também o autor coloca sua opinião e avaliação moral, sendo um cordel interditado pela polícia pernambucana em 1918 e levando o autor inclusive à prisão.

“Nós temos cinco governos
O primeiro o federal
O segundo o do estado
O terceiro o municipal
O quarto a palmatória
E o quinto o punhal.

Desde que entrou a República
Que o nosso país val mal
Pois o lençol da miséria
Cobriu o mundo em geral
Deixando a mão entregue
À palmatória e ao punhal”.

Ao longo do poema, o autor expressa mais profundamente as suas críticas e, mais do que isso, também a sua opinião moral frente à realidade. Isto é, “a lei de quem tem dinheiro // é tronco e cipó de boi”, é claro que existe uma diferenciação em relação ao pobre e ao rico, inclusive é

“por isso é que estamos vendo
todo o dia uma questão;
os grandes no cemitério,
os pequenos na prisão”.

Neste cordel, o autor aponta que o problema não está no assassinato, na ação imoral, ilegal e violenta do trabalhador, mas sim nas relações de trabalho que são desiguais e opressoras. E se assim o é, “nós temos visto os exemplos // devemos nos emendar”.

O roubo e crescente incidência de assaltos, outra ação imoral presente nos jornais e tema de segurança pública, é também tratado nos poemas de Leandro Gomes de Barros como decorrentes da realidade vivida pela maioria da população. Em “A cura da quebradeira”, o poeta apresenta a tal da cura para a quebradeira, isto é, a fome, que reinava e percorria quase toda a região nordestina. Frente à crise e situação econômica da região, o autor, de forma satírica e irônica, coloca e aconselha o roubo – e não qualquer roubo e nem a qualquer pessoa – como forma de solucionar a miséria, a fome e as necessidades que a população está passando.

“encontra-se esse remédio
em cofres municipaes
pelas fábricas de tecidos
ou bancos especiaes
repartições d’alta escalia
thesouros estadoaes”

Combinado com a forma e os elementos apresentados no desenvolver do poema, fica clara a crítica que Leandro Gomes de Barros traz às diferenças entre as classes sociais, à riqueza e privilégios garantidos aos coronéis e poderosos, e à fome e pobreza para a maioria da população. Inclusive isso se comprova em outro trecho deste mesmo cordel, quando o autor critica a instituição da Igreja que já teria experimentado e aprovado a prática desta tal cura.

“O frade estudou a cura,
O bispo achou-a correta,
Consultaram ao cardeal
Diz ele a obra é completa
Um arcebispo estudou
Como há de ser a dieta.

Disse frei Espertalhão
O remédio é exelente
A pharmacia sendo grande
Cura-se radicalmente
Mas não guardando a dieta,
Está desgraçado o doente...”

A justiça que produz as leis, que condena os imorais e criminosos, se mostra então arbitrária e parcial. Instituições pilares da construção de nossa sociedade parecem estar imunes aos julgamentos, como retratado pelo cordelista, em que a Igreja, mesmo conhecendo, realizando e aprovando a prática do roubo, não é condenada, enquanto muitos que roubam por fome, o são.

Mais de cem anos se passaram desde a morte de Leandro Gomes de Barros. Muito se desenvolveu e se modificou. Mas infelizmente muito da estrutura que ergue nossa sociedade se mantém, com uma classe dominante parasita que suga as riquezas e, em nome de seus privilégios e lucros, descarrega ataques sobre nossas costas diariamente.

Neste Dia do Poeta da Literatura de Cordel, recordemos Leandro Gomes de Barros e tantos outros cordelistas que buscaram dar vazão às principais questões vividas pela maioria da população nordestina. Claro que isso não significa que a literatura de cordel em si seja revolucionária ou se caracterize somente por críticas sociais com objetivo de questionar a ordem colocada, já que existem inúmeras obras e poemas que condizem com a moral, costumes, valores e pensamentos do momento, expressando e aprofundando visões maniqueístas, religiosas, às vezes também racistas e misóginas.

Entretanto, é parte de nosso patrimônio cultural e parte de nossa história a literatura de cordel que, com estes poemas aqui apresentados, além de outros tantos, se colocaram no objetivo de questionar a ordem imposta, buscando fazer da arte e da literatura não só formas de informar e entreter uma população marginalizada e abandonada pelo Estado, mas também como forma de conscientização e como armas da crítica.

Em tempos de Bolsonaro e Mourão, de palmatória, quebradeira, fome, desemprego e miséria, em que incendeiam e queimam nossa cultura, desprezam e querem apagar nossa história, é tempo também de relembrar e manter vivo cada autor, artista, história e acontecimento que questionou, criticou e subverteu a ordem das coisas determinadas pela classe exploradora. Por mais que tentem e recorram às práticas mais repressoras e violentas, nossa história e nossa cultura não se apagam.

 
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