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LITERATURA
Um dia como hoje nascia Franz Kafka
Susana López

Há pouco mais de uma semana atrás, no dia 3 de julho, completaram-se 138 anos do nascimento de um dos maiores escritores do século XX em Praga. Nem tudo em sua obra é tão obscuro, dramático e desesperançador como parece. Compartilhamos alguns aspectos de sua vida e de seus escritos.

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A visão predominante tende a mostrar Kafka como uma pessoa triste, temerosa e debilitada pela tuberculose pulmonar que o afetou precocemente, lembrando-se somente do que parece colocá-lo nessa toca escura e sem saída, e que o “kafkiano” é aquilo que nos aproxima do inseto repugnante e indecifrável que levamos dentro de nós.

Nada mais distante, nada mais incompleto: Franz Kafka praticava natação, remo, academia e realizava caminhadas. Era adepto da terapia naturista e participava do célebre centro de medicina natural Jungborn. Também se interessava por jardinagem realizando, por exemplo, tarefas no Instituto de Fruticultura, próximo a Praga. Foi um assíduo viajante por Boêmia, pelo norte da Itália, França, Alemanha, Áustria, Hungria, pelas praias do Báltico e Suíça, e plasmou suas impressões destas viagens em seus diários e desenhos.

Apaixonado por cinema, Franz frequentava frequentemente desde 1907, já que sua cidade contava com uma sala. Em 1914 se somou na emblemática Kino Lucerna (“kino” em tcheco significa “cinema”) que funciona até hoje. Seu amigo Max Brod narra que seu entusiasmo era tal que, quando gostava de um filme, convidava seus amigos e irmãs a assistir juntos e comentava repetidamente sobre isso. Hanns Zischiler, em seu livro Kafka vai ao cinema nos aproxima dos filmes em cartaz dessa época que Kafka admirava.

É possível imaginar que teria sido um grande admirador do chamado “cinema novo tcheco” que marcou um divisor de águas no “cinema cult”, com diretores como Agnezka Holland Sarça ardente, 2013), Jerí Henzel (Trens Estreitamente Vigiados, 1966), Milos Forman (Um Estranho no Ninho, 1975; Amadeus, 1984) e de Jan Sverék (Kolya - Uma Lição de Amor, 1996), para citar alguns dos diretores mais reconhecidos.

Seu contato com as artes cênicas se deu graças a sua admiração pelo ator Jizchak Löwy e foi através desse caminho que começou a se interessar mais pela cultura judaica. Sua última companheira, Dora Diamant, foi uma atriz polonesa que estudou artes dramáticas em Berlim e que, depois da morte de Kafka e de uma vida de perseguições na Rússia e na Alemanha, abriu um teatro para a comunidade judaica em Londres.

Em seus escritos encontramos referências à música e ao canto como expressões inevitáveis da existência e das ânsias de liberação. Segundo Walter Benjamin, sobre “O silêncio das Sereias”:

“Em Kafka, as sereias se calam. Talvez porque nele a música e o canto são uma expressão ou pelo menos um testemunho de salvação. Um sinal de esperança para esse pequeno mundo intermediário, em um tempo inacabado e cotidiano, um tempo consolador e pueril em que ‘os ajudantes’ estão em casa”

Em um dos últimos relatos que Kafka escreveu em 1922, um cão que narra se surpreende diante da aparição intempestiva de uma matilha que produz um estrondo estremecedor sem explicação. Animais que trazem a música consigo, em seu corpo, em seus movimentos, em sua dança canina. Através do cão narrador, o escritor resgata a valentia para se expor abertamente à música criada.

Uma vez mais, Benjamin coloca:

“O que é certo é que de todos os seres de Kafka são os animais os que mais refletem. O que é a corrupção no mundo do direito, a angústia é no mundo do pensamento. Ela perturba o pensamento, mas constitui o único elemento de esperança que ele contém. Porém em nosso corpo o mais esquecido dos países estrangeiros é o nosso próprio corpo, e, por isso, compreendemos a razão pela qual Kafka chamava “o animal” à tosse que irrompia das suas entranhas. Era o posto avançado da grande horda”.

Outra paixão de Kafka foi o desenho. Assistiu aulas sobre história da arte e, quando criança, de desenho. Dizia que sua medíocre professora o atrapalhou. Seus desenhos mais famosos são as marionetas negras de fios invisíveis (como caracterizado por Brod). Suas figuras são, em sua maioria, garranchos e silhuetas que se assemelham a equilibristas que desafiam a gravidade. Em alguns de seus traços, quase abstratos, os poderosos são robustos e com o nariz sobressalente, enquanto que os espoliados são magros e encurvados, como se levassem um peso nas costas.

Sobre essa imagem, Max Brod reproduz uma frase de Kafka:

“Como essa gente é moderada. Vêm pedindo. Em vez de assaltar a instituição e fazê-la pedaços, vêm pedindo”.

A Literatura, sua maior paixão

Martín Kohan, na introdução ao livro O covil, diz que diante dos tantos Kafkas que podemos encontrar ou tantas leituras de suas obras, é preciso lembrar que: “com um traço compartilhado e essencial: a literatura é sempre o que o contém e lhe dá forma. Não sua literatura e nem sequer uma literatura, e sim a literatura”.

Kafka buscava na literatura um lugar de refúgio crítico diante de uma realidade que parecia liquidar toda alternativa: em seus Diários diz: “As dez, 15 de novembro de 1910. Não deixarei que o cansaço me assalte. Penetrarei de um salto na minha narração, ainda que me encha a cara de cortes”.

Gilles Deleuze e Felix Guattari em Kafka, por uma literatura menor, tratam de se distanciar da imagem de um Kafka atormentado, culpado, trágico e absurdo. Para eles não é uma falta de esperança, e sim uma visão radical da vida, da cultura e da política. É um escritor irônico, desterritorializado da língua. Daí que falem de uma literatura menor que se escreve em meio de uma língua maior, irreverente diante da cultura canônica. Em uma literatura menor se visibiliza melhor o poder subversivo das palavras.

Em seu fervor por escrever, chegou até a ver em sua doença uma oportunidade de se liberar do trabalho já que, com suas reiteradas licenças, assegurava mais tempo para escrever.

Elias Canetti, em O outro processo de Kafka, se refere ao período em que Ottla, irmã de Kafka, o levou a Zurau assim que se soube de sua doença:

“Ottla me leva realmente sobre suas asas através do mundo difícil; o quarto é excelente, arejado, cálido e tudo isso em uma casa totalmente silenciosa; tudo o que como me rodeia em abundância (...) e a liberdade, antes de tudo a liberdade. (...) Em todo caso, me comporto com a tuberculose como uma criança apegada à barra da saia de sua mãe (...). Em ocasiões me parece que o cérebro e o pulmão se entenderam entre eles sem meu conhecimento. ‘Isto não pode seguir assim’, disse o cérebro, e por volta dos cinco anos, o pulmão se declarou disposto a intervir”.

A defesa de Kafka por ter momentos de solidão e silêncio para escrever foi obstinada. Em seu conto “O novo advogado” se identifica com o personagem do Dr. Bucéfalo, submergido nos livros de leis:

“Livre, sem a pressão da virilha do cavaleiro sobre os flancos, à luz da lâmpada silenciosa, distante do fragor da batalha de Alexandre, ele lê e vira as folhas dos nossos velhos livros”.

Sua paixão fervorosa por escrever faz com que possamos nos aproximar da obra kafkiana e pensá-la como uma maneira lúcida e de algum modo esperançosa, de compreender e se enfrentar a um mundo repleto de situações injustas e desesperadoras.

Como dizia Albert Camus, em “A esperança e o absurdo na obra de Kafka”:

“chega um momento em que a criação não é tomada mais pelo trágico, mas é tomada seriamente. Então o homem se preocupa pela esperança (...) no veemente processo em que Kafka trata de submeter o mundo, seu veredito incrível absolve o fim a este mundo horrível e transtornado em que até os próprios topos se empenham em esperar”.

Talvez seja necessário descrever e habitar os labirintos e obscuridades para poder dizer o inexplicável, ironizar as formalidades dos magistrados para denunciar a substância, rondar castelos para não abandonar nunca a busca de um poder que dê respostas. Definitivamente, uma leitura profunda, minuciosa, completa e despojada de lições de escola e preconceitos, nos permitirá desfrutar de um dos autores mais geniais do século XX.

Nota traduzida por Lara Zaramella do original: https://www.laizquierdadiario.com/Un-dia-como-hoy-nacia-Franz-Kafka

Bibliografia:

Benjamín, Walter (2014). Sobre Kafka. Textos, discussões, apontamentos. Buenos Aires: Eterna Cadencia Editores.
Bokhove, Niels e van Dorst, Marijke (ed.) (2011). Desenhos. Madrid: Sextopiso.
Camus, Albert (1985). A esperança e o absurdo na obra de Franz Kafka. O mito de Sísifo. Madrid: Alianza Editorial.
Canetti, Elías (1981). O outro processo de Kafka. Sobre as cartas a Felice, Barcelona: Muchnik Editores.
Deleuze, Gilles y Guattari, Felix (1978). Por uma literatura menor. México: Ediciones Era.
Kafka, Franz (2009). La madriguera. Buenos Aires: La Compañía de los libros.
Kafka, Franz (2015). Diários. Buenos Aires: Debolsillo.
Kafka, Franz (2015). O novo advogado. Um médico rural. Praga: Editorial Vitalis.
Kafka, Franz (2019). Investigações de um cachorro Buenos Aires: Buchwald Editorial.
Zischler, Hanns (2008). Kafka vai ao cinema. Barcelona: Editorial Minúscula.

 
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