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Crítica às categorias de Ruy Mauro Marini (Parte 1)
Seiji Seron

A corrente “radical” ou “marxista” da dependência proporcionou uma salutar contribuição à crítica da economia política ao conceber o subdesenvolvimento não como mero atraso ou falta de desenvolvimento, falta de capitalismo, mas sim como uma forma particular de desenvolvimento capitalista e consequência necessária do próprio desenvolvimento dos países centrais e da economia mundial como um todo. Contudo, as categorias que Ruy Mauro Marini criou a fim de “determinar a legalidade específica” que rege este capitalismo periférico incorrem em algumas inconsistências teóricas.

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Este artigo é uma revisão de nossa primeira resenha da principal obra de Marini, Dialética da Dependência, publicada em 1973 [1]. Esta visava explicar o esgotamento do modelo de industrialização substitutiva de importações (ISI), que os países latino-americanos adotaram após a Segunda Guerra Mundial. Tal modelo, prescrito pela Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL), consistia em taxar as importações de bens de consumo industrializados e, em contrapartida, subsidiar as importações de bens de produção, isto é, de maquinário e insumos industriais. Conjuntamente, estas medidas incentivavam as multinacionais a se instalarem em tais países e produzirem para um mercado interno cativo, protegido por barreiras tarifárias. Esse esgotamento foi um dos fatores que suscitou processos da luta de classes os quais tiveram de ser derrotados através de golpes militares. Tais processos, além do êxito da Revolução Cubana, resultaram em uma radicalização da intelectualidade progressista que, então, gerou a teoria da dependência.

Marini define a dependência como

uma relação de subordinação entre nações formalmente independentes, em cujo marco as relações de produção das nações subordinadas são modificadas ou recriadas para assegurar a reprodução ampliada da dependência. A consequência da dependência não pode ser, portanto, nada mais do que maior dependência, e sua superação supõe necessariamente a supressão das relações de produção nela envolvida. [2]

No século XIX, as economias latino-americanas irão se re-inserir na divisão internacional do trabalho de maneira funcional ao desenvolvimento da primeira potência industrial do mundo, a Grã-Bretanha, e dos demais países centrais [3]. As exportações latino-americanas de alimentos e matérias-primas serão cruciais para aumentar a extração de mais-valia relativa [4]. A diminuição do custo da força de trabalho e do capital constante [5] possibilitaram a acumulação de excedentes que financiaram o desenvolvimento técnico das indústrias do centro. Na periferia, o mesmo processo tornou a extração de mais-valia, entretanto, mais dependente do prolongamento da jornada e da intensificação do trabalho do que da elevação da produtividade [6].

Superexploração

Em Dialética..., lê-se que este aumento da intensidade e da duração da jornada de trabalho e o rebaixamento do nível de vida dos trabalhadores “significam que o trabalho é remunerado abaixo de seu valor e correspondem, portanto, a uma superexploração do trabalho.” Ainda segundo Marini, “o fundamento da dependência é a superexploração”, ou seja, o pagamento de salários inferiores ao valor da força de trabalho.

É certo que, no centro e na periferia, a “morfologia” da exploração não é idêntica. Marx, porém, ressalta que o valor da força de trabalho é determinado não apenas pelas necessidades biológicas do trabalhador, como alimentação, etc., mas também por critérios “histórico-morais”, que mudam conforme o tempo e o lugar. Assim, fatores culturais, o nível de desenvolvimento das forças produtivas, a inserção internacional do país e, principalmente, a correlação de forças entre o capital e o trabalho também afetam o valor da força de trabalho. Logo, Esteban Mercatante questiona: a superexploração é super em relação a que? “Se uma diminuição do salário abaixo do pretenso valor em uma determinada geografia se prolongasse no tempo, mais bem estaria indicando que o capital conseguiu impor um valor da força de trabalho mais baixo. Se trataria, então, de uma maior taxa de exploração, simplesmente, e não mais de superexploração.”

Isto não quer dizer que o pagamento de salários abaixo da força de trabalho não seja uma realidade. Mulheres, negros, imigrantes são superexplorados quando o capital lhes paga menos do que aos homens brancos e nativos que fazem o mesmo trabalho. A terceirização é, rigorosamente, uma forma de superexploração. Em um sentido mais laxo, os trabalhadores da periferia são superexplorados quando o capital multinacional, a fim de empregar uma mão de obra mais barata, deslocaliza um processo produtivo que era feito, até então, no centro.

Porém, é errônea a suposição de Marini de que todos os trabalhadores da periferia capitalista, sem exceção, são superexplorados, pois isto nega o próprio parâmetro de medida da superexploração [7]. Esta lógica é semelhante à da teoria da “dualidade estrutural” de William Arthur Lewis, um clássico da economia do desenvolvimento. Nos países subdesenvolvidos, a existência de um amplo setor “arcaico”, de economia de subsistência ou pré-capitalista, propicia uma oferta abundante de mão de obra que os “modernos” setores capitalistas não são capazes de absorver e que, consequentemente, pressiona os salários para baixo, tornando-os menores do que estes deveriam ser segundo as premissas do mainstream econômico burguês. Nota-se, assim, um dos principais limites da teoria “marxista” da dependência: esta é, em grande medida, uma tentativa de interpretar, ou de “traduzir” para o marxismo, as constatações do mesmo pensamento cepalino e desenvolvimentista, de modo geral, que os teóricos da dependência criticavam.

Consumo suntuário

Na medida em que o “centro de gravidade” das economias dependentes é a primário-exportação, a compressão da demanda de consumo dos trabalhadores que a superexploração implica não compromete o processo de acumulação do capital. A demanda de bens de consumo industrializados divide-se, por conseguinte, entre uma esfera baixa, de bens-salário, e uma esfera alta, de bens suntuários, os quais não compõem a cesta de consumo dos trabalhadores. A demanda de consumo das classes dominantes e dos estratos sociais de renda mais elevada será suprida por meio de importações até que a produção suntuária possa ser, em maior ou menor medida, internalizada. Subsequentemente, o processo de industrialização tenderá a cindir ou “divorciar” a estrutura produtiva das necessidades das massas. Esta seria, para Marini, a causa da heterogeneidade estrutural, isto é, da difusão desigual do progresso técnico entre aquelas indústrias que os desenvolvimentistas denominavam “tradicionais”, produtoras de bens de consumo não-duráveis, e as “modernas”, produtoras de bens de consumo duráveis, como automóveis e eletrodomésticos [8]. Nestes ramos, o grau de oligopolização é maior e o capital estrangeiro predomina.

Os efeitos do consumo de luxo sobre o equilíbrio da balança de pagamentos [9] e sobre o processo de industrialização periférica também foram teorizados por Ragnar Nurkse e Celso Furtado. Estes dois desenvolvimentistas assinalavam que assimilação ou “mimetização” dos padrões de consumo dos países mais desenvolvidos pelas elites dos países subdesenvolvidos diminui a renda disponível para ser investida na modernização da estrutura produtiva destes últimos. Marini afirma ainda que, nos países dependentes onde a indústria mais se desenvolveu, a superexploração acarreta dificuldades crescentes de realização do valor, ou seja, uma insuficiência de mercado consumidor, insuficiência esta que engendraria o fenômeno do subimperialismo. Ao caracterizar o Brasil deste modo, Marini visava elucidar as causas tanto do “milagre econômico” quanto da crise que o precedeu. Mas, para os herdeiros teóricos de Marini, a atualidade desta caracterização teria sido provada pela maior atuação das empresas “global players”, as “campeãs nacionais” do lulismo, no exterior.

Antinomias do subimperialismo

A definição de Marini possuia duas dimensões: uma econômica e uma geopolítica. Economicamente, o subimperialismo caracterizaria um país dependente cujo processo de industrialização, e o grau de internacionalização de sua estrutura produtiva, transformou-o em exportador de bens industrializados, e até de capitais, de maneira a compensar a estreiteza do mercado interno. Neste sentido, o subimperialismo não implicaria menor sujeição às potências imperialistas de fato, como os EUA, em particular. Associando-se à burguesia subimperialista, o imperialismo reforçaria sua capacidade de projetar sua dominação sobre os demais países da região. Assim, um país dependente onde o capital multinacional se instala a fim de acessar os mercados de outros países dependentes, vizinhos do primeiro, seria subimperialista.

Qual seria o ganho explicativo de se referir a uma “sucursal” do imperialismo usando um termo que atribui o caráter imperialista ao próprio país dependente, apenas para atenuar tal caráter acrescentando o prefixo “sub” em seguida? O critério geopolítico da definição de Marini é ainda menos esclarecedor, já que o subimperialismo envolveria “o exercício de uma política expansionista relativamente autônoma” e uma relação de “cooperação antagônica” com o imperialismo estadunidense [10]. Mas o “antagonismo” não passou da assinatura do acordo nuclear Brasil-Alemanha, que sequer foi cumprido, em sua maior parte. As tentativas do Brasil dos militares de conquistar uma influência geopolítica própria por meio de algumas iniciativas diplomáticas direcionadas a países do Terceiro Mundo tampouco descrevem uma “política expansionista relativamente autônoma”.

Esta aparente autonomia contrasta com a real submissão do país ao imperialismo que a ditadura militar consolidou. Foi através do Plano de Ação Econômica do Governo (PAEG) que o governo Castelo Branco assentou as bases do sobre-endividamento que ocorrerá nos anos subsequentes e que, a despeito dos vários processos de reestruturação e de mudança da composição e da forma da dívida pública brasileira, continua sendo um dos principais meios de espoliação do país pelo imperialismo [11]. Em suma, deve-se analisar concretamente o desenvolvimento desigual e combinado do capitalismo brasileiro a fim de apreender a contradição entre a subserviência da burguesia brasileira ao imperialismo, por um lado, e as barganhas mediante as quais esta mesma burguesia tenta se aproveitar ao máximo das margens de manobra de que dispõe, ou ainda ampliá-las, por outro. Nenhuma definição esquemática, como a de suimperialismo, é capaz de substituir tal análise.

Subimperialismo e “imperialismo coletivo”

Claudio Katz afirma que a desindustrialização do Brasil revela a perda do caráter subimperialista do país e que a transnacionalização de empresas brasileiras prescindiu de qualquer pressão militar ou geopolítica, pois os eventuais conflitos entre este e outros países sul-americanos foram todos resolvidos diplomaticamente [12]. Para Katz, o fim do modelo de substituição de importações e a mudança da forma de internacionalização do capital produtivo que o neoliberalismo acarretou teriam tornado irrelevante a dimensão econômica do subimperialismo, mas a categoria de Marini ainda seria útil para caracterizar algumas potências regionais, como Turquia, Arábia Saudita, Irã e Índia. Porém, este uso do subimperialismo por Katz relaciona-se à concepção do “imperialismo coletivo” de Samir Amin.

Segundo o economista argentino, o maior entrelaçamento internacional dos capitais e a drástica superioridade militar dos EUA sobre as demais potências teriam modificado o “cenário leninista” e relegado as guerras inter-imperialistas aos livros de história. Nesta lógica harmonicista de Katz, as “potências intermediárias” ou “semiperiféricas” são uma importante fonte de estabilidade geopolítica mundial a despeito dos conflitos com os EUA que os interesses regionais de tais países suscitam. Diferentemente de Katz, achamos que a crise econômica mundial e as crescentes tensões geopolíticas, entre os EUA e a China, sobretudo, reatualizam a definição leninista do imperialismo como uma época de crises, guerras e revoluções, e que a decadência de uma potência hegemônica e a ascensão de uma nova, portanto, não acontecerá de maneira pacífica, sem causar conflagrações militares abertas, ainda que isto não deva ocorrer no futuro imediato.

 
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