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Entrevista com Matheus Gato: “a Abolição foi festejada como uma conquista popular contra as injustiças sociais”

Nesta entrevista, o professor da UNICAMP Matheus Gato de Jesus fala sobre a história do racismo brasileiro, as causas e o significado da Abolição da escravatura, sobre o racismo bolsonarista e sobre violência estatal e democracia.

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Matheus Gato é professor do Departamento de Sociologia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade de Campinas (IFCH-UNICAMP). É pesquisador do Núcleo Afro do Centro de Brasileiro de Análise e Planejamento (CEBRAP) e Coordenador do Bitita: Núcleo de Estudos Carolina de Jesus. É doutor em sociologia pela Universidade de São Paulo (USP) e realizou pós-doutorado na universidade. Pesquisa sobre racismo, classificações raciais, violência racial, intelectuais negros, literatura e pós-abolição.

Ideias de Esquerda: O seu livro O massacre dos libertos: sobre raça e República no Brasil (1888-1889) discorre tanto sobre os sentidos históricos construídos e silenciados em torno da abolição, quanto traz à tona um evento quase que esquecido, o massacre de manifestantes no Maranhão que temiam que a recém República implicasse o retorno da escravidão. Você poderia nos contar um pouco sobre a pesquisa que resultou no livro e sobre a importância política dela na conjuntura atual?

Essa pesquisa se iniciou quando tive contato com o livro A Nova Aurora (1913) do escritor negro maranhense Astolfo Marques (1876-1918). Confesso que imaginei que aqueles episódios eram parte da ficção, pois em São Luís não havia qualquer memória coletiva sobre o evento. Assim, quando fui confrontar a narrativa do romance com os dados do jornal tomei um susto enorme ao descobrir que aquilo havia realmente acontecido. Aquele evento esquecido na periferia do Brasil moderno, numa ilha situada no norte agrário, me pareceu uma oportunidade para compreender como uma sociedade imperial dividida entre cidadão e escravos havia se tornado uma república cindida entre brancos e negros. A análise dos acontecimentos da capital maranhense permitia visualizar aquelas situações em que raça se tornava fronteira política, econômica e imaginária entre os grupos sociais. Eu penso que a importância política da pesquisa no contexto atual aparece quando observamos a enorme legitimidade da violência na regulação dos conflitos entre a gente comum e os poderes constituídos do Estado e da sociedade. A violência não apenas ataca as populações vulneráveis mas constitui um ato supremo de classificação social que edifica o chamado “lugar de negro” no Brasil.

Um esforço permanente das ideologias racistas brasileiras tem sido o silenciamento dos processos de luta dos negros e o papel protagonista deles nas suas conquistas. A ideia de que a abolição foi uma “concessão bondosa” talvez seja um desses sensos comuns construídos no imaginário nacional. Como você vê um outro tipo de resgate histórico sobre a abolição?

Dois tipos de leitura têm sido muito influentes na conformação do nosso imaginário sobre a Abolição. Por um lado, essa ideia da “concessão”, de que os avanços dos direitos no Brasil se devem, sobretudo, à ilustração das elites dirigentes sem o concurso das lutas populares. Ideia presente também no tocante ao imenso protagonismo concedido à Getúlio Vargas quando se pensa nos direitos dos trabalhadores.

No caso da Abolição, há ainda uma leitura construída pelos movimentos negros do 13 de Maio como engodo, falsidade e mentira. Uma reação ao lugar simbólico que a narrativa elitista da “concessão” desempenhava no fortalecimento no mito da democracia racial. Penso que hoje uma leitura crítica precisa se assentar em outras bases e numa interpretação mais complexa da história. Aquele foi um período de mobilização política e popular, com intelectuais e jornalistas negros ativos na imprensa, um momento em que palavras como liberdade e igualdade entram de um modo radical no vocabulário e na vida das pessoas comuns. A abolição foi festejada como uma conquista popular contra as injustiças sociais. É essa dimensão que precisa reemergir no nosso entendimento histórico daquele período. O livro O 13 de Maio e outras estórias do pós-abolição, que reúne os contos do escritor negro maranhense Astolfo Marques (1876-1918), organizado por mim e recentemente publicado pela editora Fósforo, regata precisamente esse aspecto.

Como você vê as relações do governo Bolsonaro com o racismo brasileiro? Além de declarações abertamente racistas, por vezes ele ou Mourão se utilizaram de um discurso que lembra muito o “mito da democracia racial”. Na ocasião do assassinato de João Alberto Silveira Freitas pelos seguranças do Carrefour em Porto Alegre foi possível ver isso. Bolsonaro expressa uma espécie de radicalização do racismo histórico brasileiro? Ou existe algo diferente no enfrentamento dele às pautas do movimento negro?

Existe algo bastante diferente na forma como Bolsonaro e o bolsonarismo articulam a ideia de raça. Em suas palavras, o projeto de uma supremacia branca aparece com toda clareza. Os brancos são superiores e o resto é o resto. Não há aquele tom superficialmente conciliatório que caracterizava o discurso do mito da democracia racial. Essa é uma carta utilizada apenas para deslegitimar as políticas públicas de enfretamento do racismo como as ações afirmativas e a política de cotas. Mas como disse certa vez um dos líderes da Ku Klux Klan sobre o presidente brasileiro: “He sounds like us” (Ele soa como um de nós). Além do mais, Bolsonaro e o bolsonaristas parecem dispostos ao confronto violento com todos os seus desafetos. Nada nele e em seus correligionários apela para uma ideia de harmonia, algo central para o mito da democracia racial.

Por outro lado, precisam manter e formular, pela via da extrema direita, algum discurso dirigido aos negros brasileiros. Seja porque o movimento negro conseguiu auferir um enorme valor político à questão racial, seja porque os pardos de hoje não são como os mulatos de antigamente. Isto é, esta nação hoje não se define mais como mestiça. O Brasil se transformou num país imaginado como negro para a maioria de seus cidadãos. E este é um elefante na sala da direita e da esquerda.

Seria impossível não falarmos sobre a chacina do Jacarezinho. Para nós, do Ideias de Esquerda, o tema do racismo e da violência policial é algo hierárquico. Achamos que não é ocasional que as lutas negras, como o Black Lives Matter, sempre precisem enfrentar o tema da repressão policial. No Brasil, com histórico de chacinas e racismo das Forças Armadas, este tema é ainda mais dramático. Quais aspectos históricos você acha que nos ajudam a entender esses eventos presentes?

Em primeiro lugar, como eu havia dito antes, o Massacre do Jacarezinho coloca em cena a centralidade da violência na constituição das fronteiras sociais entre pobres e ricos, e, também, entre negros e brancos. Ele também revela algumas de nossas ilusões com o processo de democratização brasileira. Alguns de nós imaginávamos viver num país com liberdade, restando apenas lutar pelo sentido e a efetivação da igualdade material entre todos os cidadãos. Mas a violência policial escancara a existência de uma sociedade onde a liberdade, os direitos civis, não são assegurados para as comunidades periféricas. Que liberdade possui uma criança que pode ser surpreendida na porta de casa com tiros de fuzil? Não existe liberdade quando se é obrigado a viver com medo. Cadê o usufruto de direito do ir e vir dessas pessoas constantemente humilhadas em batidas policiais? Então, ainda é preciso lutar por direitos civis no Brasil contemporâneo. Como diria Walter Benjamim, para alguns, e esse é o caso dos descendentes de africanos nas Américas, o estado de exceção sempre foi a regra.

 
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