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O imperialismo em tempos de desordem mundial
Esteban Mercatante

É com enorme alegria que traduzimos para o português esse texto para anunciar a publicação desse livro fundamental, publicado na Argentina pela Ediciones IPS, que não é apenas uma ferramenta para compreendermos o imperialismo atualmente, mas também uma ferramenta para agir na realidade para os que visam a derrubada desse sistema que lucra com a miséria do mundo e dos trabalhadores.

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O livro O imperialismo em tempos de desordem mundial, publicado pela Ediciones IPS na Argentina, reúne uma série de artigos publicados na Ideas de Izquierda desde 2013 até o presente. Neles analisamos, sob diversos ângulos, a configuração das relações de poder no sistema mundial capitalista e as principais transformações por estas sofridas nas últimas décadas. Viemos fazendo isso em muitas ocasiões por meio de comentários críticos sobre algumas das obras mais relevantes que foram publicadas durante esses anos sobre o assunto. Além dos artigos elaborados por quem os escrevem, a compilação inclui várias entrevistas que realizamos com aqueles que publicaram algumas das obras mais relevantes para entender as relações que prevalecem no sistema mundial capitalista atual, bem como trocas polêmicas que geraram alguns dos artigos. O fio condutor do percurso pelos diferentes temas abordados é dado por uma série de coordenadas teóricas que vamos discutir nesta apresentação.

Imperialismo: a trajetória de um conceito

Dois anos após a eclosão da Primeira Guerra Mundial, em 1916, Vladimir I. Lênin publicou o famoso Imperialismo: Fase Superior do Capitalismo, que como indica o título, considera que estamos entrando em uma nova época histórica. O texto de Lênin, que desde então se tornou o mais clássico entre as obras “clássicas” sobre o assunto, partiu de uma elaboração crítica do que foi proposto por um autor marxista, (Rudolf Hilferding), e outro liberal, (John A. Hobson). Essas foram, por sua vez, algumas das contribuições mais relevantes em um debate que o movimento marxista internacional (então quase exclusivamente europeu) havia timidamente começado a ter no final do século XIX, a par do fortalecimento das pressões chauvinistas e o desenvolvimento de uma corrida armamentista entre as potências da época. [1]

O surgimento do imperialismo, cuja contrapartida foi uma pressão redobrada para cooptar os setores mais elevados da aristocracia operária nos países capitalistas desenvolvidos, já havia começado a dividir as águas da social-democracia europeia na primeira década do século XX. O ponto de ruptura final foi em agosto de 1914, quando todos os deputados do Partido Social-democrata Alemão, que até 1914 havia sido a principal referência dos marxistas de todo o mundo, votaram a favor dos créditos que permitiram ao governo do Kaiser iniciar a I Guerra Mundial.

Os marxistas do início do século XX (entre os quais, além dos autores citados, devemos destacar Rosa Luxemburgo com A Acumulação do Capital e Nikolai Bukharin com A Economia Mundial e o Imperialismo) definiram o imperialismo como uma nova fase ou estágio no desenvolvimento do capitalismo, isto é, capitalismo e imperialismo resultavam em conceitos intimamente entrelaçados. Hilferding, e Lênin a partir de sua elaboração, destacaram a transformação ocorrida na empresa capitalista como resultado da concentração e centralização do capital (as duas tendências fundamentais apontadas por Marx): estávamos ante o surgimento do capital financeiro como resultado do salto qualitativo que registrava a grande indústria e o domínio que os grandes bancos adquiriram sobre as direções das empresas [2]. O domínio dos bancos estimulou, na opinião de Hilferding, a aceleração de dois fenômenos que ele identificou como característicos do capitalismo da época. A primeira foi a “cartelização”, termo que se refere à associação de empresas para proteger seus interesses comuns e limitar o confronto entre elas, o que havia se tornado corriqueiro nos principais setores da grande indústria. O segundo fenômeno, visto principalmente na Alemanha e nos Estados Unidos desde o final do século XIX, foi uma aceleração de fusões e aquisições que levou numerosas indústrias ao surgimento de grandes trustes, ou seja, novas empresas de escala gigantesca que surgiram da integração das pré-existentes.

Junto a isso, a característica desse novo período histórico para Lênin foi o acirramento da competição pelo domínio do território mundial entre os grandes conglomerados capitalistas dos poucos países que registravam alto desenvolvimento capitalista, com crescente intervenção dos Estados e tendências belicistas, que se manifestou em uma corrida armamentista cada vez mais acelerada e um crescente de conflitos armados que desembocou à Primeira Guerra Mundial. O mundo, que entre o final do século XIX e o início do século XX testemunhou uma nova onda de avanço febril das potências europeias (e dos Estados Unidos) para garantir a primazia em todos os continentes, já estava "repartido". A carnificina imperialista visava definir uma nova repartição do planeta.

A Primeira Guerra Mundial, como Lênin havia antecipado - e apostado - que ocorreria, levou a revoltas revolucionárias em toda a Europa, começando com o triunfo da Revolução de Outubro de 1917 na Rússia, mas também movendo a Alemanha. A conflagração acabou deixando sem soluções os motivos que a impulsionaram, embora tenha selado o avanço dos Estados Unidos em detrimento da Europa. Será Leon Trótski quem, a partir do início da década de 1920, discutirá essa relocalização do centro de gravidade do sistema capitalista mundial e suas consequências para a Europa. Embora Trótski não tenha elaborado uma obra especialmente dedicada à questão do imperialismo, ele a abordou sistematicamente por duas décadas, o que se refletiu em numerosos livros e artigos. Seus relatórios nos primeiros congressos da Internacional Comunista desenvolveram um método de abordagem abrangente das relações entre as tendências econômicas, a luta de classes em cada país e as relações interestatais. Este método continuou a iluminando o olhar de Trótski até seu assassinato, e permitiu-lhe vislumbrar desde cedo as tendências para uma nova matança imperialista - e para novos levantes revolucionários como resultado dela.

A categoria do imperialismo teve suas reviravoltas nas correntes marxistas após a Segunda Guerra Mundial. Após o triunfo dos aliados contra o eixo, os Estados Unidos lideraram a reconstrução no espaço mundial dominado pelo capital - diante do qual havia um espaço fora do domínio capitalista graças ao fato de que a URSS também saiu vitoriosa da guerra e avançou no Leste da Europa, à qual se juntou a revolução na China em 1949. A integração militar das potências capitalistas na Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), por trás do imperialismo dos EUA contra a URSS, e a crescente interpenetração de capital desses países que ocorreu durante os anos de boom do pós-guerra (um período de alto crescimento econômico que durou até o final da década de 1960) deram origem aos primeiros debates sobre em que medida as coordenadas das teorias do imperialismo - nas quais a disputa Inter-imperialista ocupa um lugar central - se ajustavam à nova realidade na qual o espaço capitalista parecia dominado por uma única grande potência.

Ao mesmo tempo, durante os anos do pós-guerra, e na América Latina especialmente após a Revolução Cubana, o debate sobre o imperialismo do ponto de vista dos países oprimidos teve um desenvolvimento vigoroso, refletido sobretudo na tendência marxista da dependência, com um heterogêneo conjunto de autores e abordagens, mas que coincidia no diagnóstico de que os países coloniais e semicoloniais haviam bloqueado qualquer desenvolvimento significativo, e que a condição para a superação desse bloqueio era o rompimento das relações de produção capitalista [3].

Para grande parte da produção teórica realizada a partir das abordagens marxistas, a teoria do imperialismo foi caindo no esquecimento em tempos adversos para as classes subalternas, após a derrota/desvio dos processos revolucionários dos anos 1960/1970, com a “restauração burguesa” [4] e a ascensão da globalização. Fred Halliday reclamava que o debate da globalização, tema que se tornou obcecado pelas ciências sociais nas últimas décadas, era caracterizado pela “ausência, ou supressão, no quadro da discussão ortodoxa, de dois termos analíticos centrais para a análise desse processo”, capitalismo e imperialismo [5]. O economista marxista indiano Pratap Patnaik retratou essa mudança climática em um artigo de 1990:

Eu abandonei Cambridge, na Inglaterra, onde lecionava Economia, em 1974, e voltei para o Ocidente, nessa oportunidade para os Estados Unidos, após um período de 15 anos. Quando eu saí, o imperialismo ocupava talvez o lugar mais proeminente em qualquer discussão marxista, e em nenhum lugar o assunto foi mais escrito e discutido do que nos Estados Unidos, a tal ponto que muitos marxistas europeus acusaram o marxismo americano de estar manchado pelo terceiro-mundismo [...] Obviamente, esse não é o caso hoje. Os marxistas mais jovens parecem perplexos quando o termo é mencionado. [6]

Curiosamente, o clímax daquele momento foi alcançado com um livro cujo título sugeria o contrário: Império, publicado em 2000 por Michael Hardt e Tony Negri, levou ao extremo a ideia de desterritorialização dos esquemas de poder global. Hardt e Negri constroem a teoria de um império sem centro. “Os Estados Unidos não constituem - e, na realidade, nenhum Estado-nação pode fazê-lo hoje - o centro de um projeto imperialista”, diziam [7]. As teses deste livro extrapolaram unilateralmente algumas características que caracterizaram as ações imperialistas durante a primeira década desde o colapso da URSS. Eram tempos de globalização crescente no auge da pressão dos EUA por intervenções multilaterais. Mas com a chegada de George W. Bush ao governo, pelas mãos de um gabinete repleto de figuras neoconservadoras, os EUA demonstrariam claramente suas intenções de continuar sendo o "centro de um projeto imperialista". Os ataques de 11 de setembro de 2001 realizados pela Al Qaeda foram usados para implantar uma agenda de intervenções unilaterais que já estava planejada, iniciada no Afeganistão e continuada no Iraque.

Depois desse novo avanço militarista unilateral dos Estados Unidos (que marcou uma virada a respeito do que foram os anos 1990, durante os quais quase todas as suas incursões militares aconteceram sob a égide do apoio da “comunidade internacional”, fazendo votar as resoluções das Nações Unidas que as endossaram), o debate sobre o imperialismo voltou ao primeiro plano. Destes anos são as obras de David Harvey, O novo imperialismo e Ellen Meiksins Wood, O império do Capital, entre outros. Mas esse retorno não significa que houve muito consenso sobre a relevância da categoria para caracterizar as relações interestatais. Os altos graus de coordenação alcançados pelos Estados Unidos para responder desde 2007, e especialmente a partir de 2008 com a quebra do banco de investimento Lehman Brothers, à crise que então se iniciou, que levou à pior recessão desde 1930 (até que apareceu a covid e produziu um colapso ainda maior), deram novo vigor àqueles que afirmavam que a coordenação entre as potências e não sua rivalidade, é o que dá o tom para as relações entre os Estados no atual momento do capitalismo.

Mas esse não é o único aspecto que favorece a relevância da categoria para caracterizar a ordem capitalista mundial a ser questionada. A mudança que temos observado no centro de gravidade da acumulação de capital em direção à Ásia e, em particular, à China, contribuiu na mesma ou em maior medida. Se isto foi produto das políticas de abertura e globalização impulsionadas pelos EUA, juntamente com o resto das potências europeias e do Japão, através de organizações multilaterais onde têm um peso dominante, e o resultado foi uma degradação, pelo menos relativa, do peso dessas potências em termos de poder econômico, em que medida podemos caracterizar essas diretrizes como imperialistas? Para muitos autores, incluindo David Harvey, a ascensão deste "bloco de poder na economia global" formado pela China, Coréia do Sul, Taiwan, Cingapura e outros países, não pode ser explicada bem a partir das categorias da teoria do imperialismo.

Esses são alguns dos fundamentos sobre os quais boa parte do que poderíamos definir como pensamento social crítico põem em dúvidas a relevância da categoria do imperialismo na atualidade.

Globalização, império, ou (novo) imperialismo?

Dentro do que poderíamos chamar, seguindo Razmig Keucheyan, o hemisfério esquerdo do arco ideológico [8], encontramos hoje três posições sobre esta questão. Em primeiro lugar, aqueles que argumentam que a globalização constitui um ponto de ruptura qualitativo e que, de acordo com esse salto na integração dos processos econômicos, o poder também se transnacionalizou. Nesta corrente podemos localizar o império vaporoso de Hardt e Negri, e também toda uma série de teóricos que fazem o eixo no avanço dos processos de conformação de uma classe capitalista e de um Estado transnacional, como William I. Robinson, William K. Carroll ou Ernesto Screpanti. Com ressalvas, Rolando Astarita também se situa nesse espectro daqueles que enfatizam a mudança de época da globalização em um sentido relacionado a esses autores, embora sem necessariamente subscrever todas as suas conclusões.

Em segundo lugar, podemos localizar aqueles que reconhecem a presença de centros de poder geograficamente distintos, que agem para impor uma determinada ordem, no sentido de que nem tudo é redutível ao mandato do capital, mas que, ao mesmo tempo, enfatizam que os Estados desempenham esse papel em benefício do capital social global, sem que qualquer competição entre eles (muito menos rivalidades estratégicas) desempenhe um papel significativo. Com variações, fazem seu o termo império, mas com ele remetem a uma política de poder territorial bem definida, nas antípodas do que apontam Hardt e Negri. Nesta linha podemos primeiro colocar Leo Panitch e Sam Gindin, que afirmam isso em A construção do capitalismo global. A economia política do império estadunidense que, desde o pós-guerra, os Estados Unidos dominaram o planeta, integrando de forma subordinada as demais potências (e o resto dos países) sob seu império informal. Ellen Meiksins Wood e Perry Anderson (como podemos ler em seus textos “Imperium” e “Concilium”) também têm posições relacionadas a essa noção de que os Estados Unidos se constituem como um “império” que, pelo menos até recentemente, não enfrentou desafios consideráveis ao seu poder.

Por fim, num terceiro ponto de vista, diversos autores sustentam a necessidade de caracterizar as relações que dominam o sistema capitalista mundial como imperialistas, algumas delas propondo alguma forma de “novo imperialismo”. Uma das intervenções mais clássicas com esse termo corresponde a David Harvey que, em 2003, quando ocorreu a guerra do Iraque, escreveu um livro intitulado nada menos que O Novo Imperialismo. Desde então Harvey tem destacado repetidamente sua insatisfação com a "rigidez" das categorias da teoria do imperialismo, afirmando que "elas não funcionam muito bem nos dias de hoje" [9]. Portanto, parece-nos que seria enganoso incluir Harvey nesta terceira abordagem, ou pelo menos fazê-lo sem problemas. Outros autores que podemos incluir nessa corrente heterogênea são Peter Gowan, Claude Serfati e Alex Callinicos. Claudio Katz tem se posicionado em relação aos postulados de alguns autores nesse espectro. Também poderíamos contar com John Smith, autor de Imperialismo no século XXI, neste conjunto. Mas é preciso dizer que na maioria dos casos a elaboração desses autores adota a categoria e sua validade em apenas uma das duas dimensões que busca dar conta nas elaborações "clássicas". Por exemplo, Callinicos se concentra exclusivamente na questão das rivalidades Inter imperialistas, sem dar maior relevância ao saque dos países imperialistas sobre o resto do mundo, o que não é negado categoricamente, mas extremamente relativizado. O autor engloba em uma corrente do “terceiro mundo” – que em sua opinião é errônea – todo o conjunto de teóricos da dependência marxista que, desde a década de 1970 até o presente, desenvolveram uma concepção em que “o imperialismo é a dominação sistemática econômica e política do Sul Global pelos países ricos do Norte, condição que incubou o que [André Gunder] Frank chamou de desenvolvimento do subdesenvolvimento, que "impedia qualquer progresso econômico nos países da ’periferia’ [10]. Para Callinicos, "basta pronunciar a palavra ‘China’ para indicar o que há de errado com essa compreensão terceiro-mundista do imperialismo - embora 20 anos atrás, pronunciar ‘Coreia do Sul’ também fosse o suficiente–" [11]. Em nenhum momento Callinicos se aprofunda em uma distinção maior entre correntes e autores para delimitar aquelas abordagens da "relação Norte-Sul" que podem ser mais esquemáticas e parciais, da importância de considerar os problemas teóricos que buscavam dar conta, para além seus sucessos e erros. Por esse motivo, a análise de como vários dos mecanismos identificados por algumas teorias marxistas da dependência atuaram e continuam agindo hoje, fica relegada a segundo plano, na melhor das hipóteses.

A posição de Callinicos é a resposta à tendência oposta, que efetivamente caracterizou alguns expoentes da teoria da dependência, de identificar o imperialismo simplesmente com a opressão do Sul Global, sem introduzir na análise as rivalidades Inter-imperialistas e desvinculando a questão da libertação dos povos oprimidos e a luta do proletariado nos países imperialistas, questões que o imperialismo separa verdadeiramente, mas que a luta revolucionária contra o capitalismo e o imperialismo deve unir, se aspira ao triunfo. Essa separação pode ser encontrada em vários autores, desde Arghiri Emmanuel e seu clássico A troca desigual, até os dias de hoje [12]. John Smith, um dos marxistas pioneiros em analisar desde uma perspectiva marxista as consequências da formação nas últimas décadas das Cadeias Globais de Valor por meio das quais o capital transnacional reorganizou a produção, internacionalizando-a, embora não chegue aos extremos de Emmanuel, em sua análise dá ênfase quase exclusiva à superexploração realizada por multinacionais dos países mais ricos da força de trabalho no Sul Global, e dá pouca atenção à reconfiguração que a exploração da força de trabalho teve nos próprios países imperialistas.

Nosso enfoque

A competição e o conflito - potencial ou efetivo- entre os países imperialistas, e a exploração do planeta por parte das empresas transnacionais e as finanças globais são duas dimensões que, longe de serem opostas ou separadas, devem ser abordadas de maneira integral como parte de uma compreensão do imperialismo contemporâneo. Acreditamos que ambas as dimensões devem ser pensadas em conjunto para desenvolver uma teoria do imperialismo que dê conta de como a economia mundial hoje se configura como uma totalidade hierárquica, como resultado da ação articulada do capital global e dos Estados mais poderosos. Essa é a abordagem a partir da qual desenvolvemos as elaborações encontradas nesta publicação.

Ao longo dos artigos deste livro, entramos em polêmica com as propostas dos autores que defendem as três posições que mencionamos, delineando um enfoque em alguns núcleos de problemas a partir do debate. Fazemos isso recorrendo muitas vezes aos mesmos textos e autores para discutir, a partir deles, aspectos em cada caso relacionados, mas distintos.

O livro está organizado em três partes. A primeira aborda a questão do alcance e dos efeitos da chamada internacionalização produtiva, que é, a nosso ver, o aspecto verdadeiramente novo que a chamada globalização tem sustentado nas últimas décadas. Esta internacionalização deu novos contornos ao desenvolvimento desigual, fazendo pela primeira vez em mais de um século os centros mais dinâmicos de acumulação de capital que se encontram não nos países mais ricos, mas no que, do ponto de vista do "centro" imperialista, aparecem como a periferia. É imprescindível calibrar adequadamente em que medida isso pode ou não representar uma mudança na trajetória do capitalismo imperialista, em que os processos de acumulação em todo o planeta foram subordinados à concentração da apropriação de seus benefícios por uma pequena minoria, permitindo ao mesmo tempo que os Estados imperialistas reafirmarem sua posição de liderança.

Na segunda parte do livro, abordamos a perspectiva do imperialismo norte-americano. Embora em claro declínio, continua a ser a potência imperialista dominante, tendo uma vantagem esmagadora sobre qualquer outro Estado imperialista na maioria das áreas (militar, financeira, expansão do capital internacional, peso mundial de sua moeda, inovação, etc.). Definir o alcance de seu declínio e as perspectivas, e como a classe dominante responderá, é a chave para determinar se estamos caminhando para um estágio de choques maiores. Discutir para onde vai o poder dos Estados Unidos exige, ao mesmo tempo, entrar no debate sobre em que medida a natureza das relações entre as potências se transformou. Há, como já apontamos, quem afirma que está em curso a formação de uma classe capitalista transnacional e, com ela, a de um Estado transnacional. Além disso, aqueles que caracterizam que não existe tal transnacionalização, mas há uma crescente interdependência entre as classes capitalistas dos EUA, Europa e Japão, o que se traduz em pressão - ativamente favorecida pelos secretários de Estado e do Tesouro dos EUA, pelo menos nos tempos pré-Trump - rumo à cooperação permanente dos Estados, subordinados à principal potência imperialista, para garantir a reprodução do capital em todo o planeta, o que baniria qualquer horizonte de grande conflito entre potências. Discutimos ambas as teses em vários artigos. A série de artigos sobre os EUA também dá conta de como foram criadas as condições que possibilitaram a chegada de Donald Trump à presidência dos Estados Unidos e o saldo deixado por seu governo. Como apontamos, apesar do otimismo da maioria da elite americana - localizada no campo "globalista" oposto a Trump - e da grande mídia semelhante a essas visões, há muito voluntarismo na ideia de que com Biden poderá haver um retorno fácil à "normalidade" pré-Trump.

Um lugar de destaque na arquitetura imperialista, especialmente nas finanças internacionais, é ocupado pela Grã-Bretanha, embora seu esplendor imperial esteja enterrado em um passado distante. As finanças de Londres, auxiliadas em muitas dimensões pela geografia, foram capazes de se reconverter para manter a liderança na canalização de capital e no comércio de instrumentos financeiros cada vez mais complexos. A Grã-Bretanha também nos fala sobre a União Europeia, cuja crise tem sido o capítulo mais proeminente desde o voto majoritário a favor do Brexit no referendo de 2016, mas decidimos incluí-la nesta segunda parte devido às íntimas conexões que se mantêm entre a velha potência imperialista e seu sucessor do outro lado do Atlântico.

Finalmente, na terceira parte do livro abordamos outra questão crucial na discussão do imperialismo contemporâneo: até onde vai o desafio que a China representa para os EUA e o resto das potências e qual é a sua natureza. Isso requer discutir, antes de tudo, o que a China se tornou depois de décadas de transformações aceleradas que começaram com as reformas de Deng Xiaoping desde 1978. É um “socialismo com características chinesas”, como afirmam os líderes do PCC? Uma formação nem capitalista nem socialista, como afirmam alguns autores? Um "capitalismo de Estado"? Quais os critérios que poderiam permitir uma visão equilibrada de uma formação socioeconômica na China, caracterizada por uma trajetória tão peculiar, em que a dialética revolução/restauração seguiu um caminho bem diferente do da URSS? Uma vez que esta questão esteja resolvida - pelo menos provisoriamente - podemos discutir até que ponto a China é, ou pode se tornar, uma potência imperialista; ou se, na realidade, representa um desafio à potência imperialista, mas sem aspiração a se tornar outra potência, ideia que Giovanni Arrighi levantou há 15 anos em seu famoso Adam Smith em Pequim, e que vários autores repetem hoje.

A compilação, segundo esses eixos temáticos, não segue uma ordem cronológica, embora seja mais respeitada dentro de cada uma das partes que compõem o livro, com exceções. A data de publicação é indicada em cada artigo. Tão pouco estão separadas as elaborações próprias das entrevistas que conduzimos e os debates que pudemos travar com alguns dos autores aludidos em nossos artigos; acreditamos que a apresentação conjunta desses materiais contribui para tornar inteligíveis os fios da argumentação que pretendemos realizar, que se constrói por meio desses diálogos.

Com os tópicos discutidos neste livro, não pretendemos esgotar todos os problemas que precisam ser explicados para se ter uma visão completa do imperialismo contemporâneo. Procuramos, com esta compilação, contribuir com elementos para enfrentar uma situação extremamente fluida em que, tudo indica, o caminho para rivalidades mais exacerbadas continuará a dar o tom - entre os EUA e a China, antes de mais nada, mas junto com eles o resto das potências que já estão sendo arrastadas para se posicionarem, e elas serão ainda mais à medida que o conflito se agudiza. Para aqueles que aspiram acabar com este sistema capitalista, baseado na exploração e opressão de todo o planeta, definir o estado de situação do imperialismo - que, como Lênin apontou, é "reação em toda a linha" - é uma questão de primeira ordem para a atividade revolucionária.

 
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