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A uberização vai acabar com a luta de classes?
Camila Begiato

O que o fenômeno da uberização e suas novas relações de trabalho representam, afinal, para a luta de classes?

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A uberização é um fenômeno muito particular e muito único, em particular porque nunca existiu tamanha tecnologia que permitisse essa estruturação. Materialmente, ela significa uma mudança nas relações formais de trabalho e, no ponto que quero me aprofundar, nas formas que os trabalhadores se relacionam.

O trabalho é a atividade mais essencial e peculiar ao homem. Faz parte de quem é como ser social. Trotsky tem, em seu programa transitório, que todo o trabalho disponível seja distribuído entre todos os trabalhadores: o trabalho é o maior bem que o homem trabalhador tem para oferecer e, em taxas de desemprego, nem isso pode oferecer. Seu programa me fez pensar a centralidade que tem o trabalho para nós, marxistas, e como não é um elemento externo, alheio à realidade e às condições materiais a que estamos condicionados.

Dessa forma, em primeiro lugar, me proponho a analisar tais condições materiais (rapidamente na medida do que me é relevante nesse texto). Nas relações formais de trabalho, podemos identificar características que claramente se diferenciam das formas que o trabalho sempre foi entendido na sociedade, em especial a brasileira.

O trabalho no Brasil e no mundo é marcado, inicialmente, por exploração desmedida. Trabalho com jornadas extensas, trabalho infantil, salários pequenos, quase nenhum direito. Marx se propõe a discorrer sobre as condições do trabalho na Europa em O Capital, no capítulo 8, A jornada de trabalho. O excesso e a extração de mais trabalho é aterrorizante.

Olhemos a jornada do trabalhador no Brasil, desde o começo de sua industrialização e sua intensificação, em particular, no século XX com Getúlio Vargas. Jornada de luta por direitos que podia-se entender como intrínsecos ao trabalho do capital: jornada limitada, salário mínimo, idade mínima, descanso semanal.

Hoje, entretanto, as características intrínsecas ao trabalho não são tão intrínsecas assim. A uberização é exemplo claro disso: não se há jornada mínima, salário mínimo, idade mínima. O trabalho tem novas nuances. Quero chamar atenção, com essa apresentação, para a liquidez do trabalho e das relações formais de trabalho: não são dadas, nem são dadas como consenso. Não são incontestavelmente colocadas, mas são modificadas dentro da época e pela astúcia do capital. O trabalho nos aplicativos é prova disso: o capital se coloca a aproveitar de um mais-valor que é completamente alheio às características que eu, particularmente, piamente acreditava ser intrínseca ao trabalho.

Meu objetivo aqui, entretanto, é observar como essa mudança se deu em outro patamar: nas relações entre os próprios trabalhadores e, consequentemente, no movimento da luta de classes. Minha pequena introdução me serviu para chamar atenção a um ponto em particular: a materialidade das condições. Como as condições materiais dadas por essas relações formais de trabalho modificam, materialmente, a luta de classes?

Numa pesquisa com trabalhadores do aplicativo e, em geral, sobre a estrutura dos aplicativos, algumas partes me chamaram atenção. Os trabalhadores não têm contato nenhum ou quase nenhum entre si. Não trocam palavras durante o horário que trabalham como, por exemplo, os trabalhadores de um escritório. Não conhecem os nomes de seus colegas, não trocam ideias entre como se organizam ou como efetuam diferentes tarefas. As trabalhadoras de aplicativos de limpeza não trocam ideias de rotinas e limpezas, os motoristas da Uber não discutem rotas.

Os trabalhadores também são separados em outros níveis: os motoristas do Uber não são da mesma categoria que os motoristas de ônibus, os professores de aplicativo que os professores de escola, as profissionais de limpeza por aplicativo do que a empregada doméstica. Não veem uns aos outros como classe única. Apesar de exercerem o mesmo trabalho, não exercem a mesma profissão.

Durante o processo de terceirização no Brasil (processo bem diferente da uberização), houve uma separação semelhante. As trabalhadoras terceirizadas não são as mesmas que as trabalhadoras formais. Os professores flutuam entre categorias diferentes. Como marxistas, sabemos que todos eles são trabalhadores, mas o que observamos materialmente nessa tentativa do capital?

O papel do capital de separar cada vez mais os trabalhadores não é novidade, mas dentro da uberização, me parece ser muito mais exacerbada. Em tempos de tecnologia de ponta, mensagens trocadas dentro de segundos, os trabalhadores nunca pareceram estar tão distantes. Não podemos negar o papel que a subjetividade tem dentro da luta de classes: trabalhadores que não se sentem parte de uma classe não lutam como uma.

O trabalho por aplicativos me parece um grande dispositivo que tenta tirar a socialização do trabalho social. Trabalhadores que não trocam receitas também não trocam angústias, não trocam ódio. Uma companheira discorreu, aqui, sobre quem paga a conta da saúde mental na era do incentivo do trabalho informal. Os trabalhadores não apenas se encontram cansados fisicamente de noites mal dormidas e hematomas pelo corpo. Eles se encontram desgastados mental e emocionalmente. Não se pode tirar o social do homem e a verdade é que, dentro das horas absurdas de trabalho desse sistema, a interação entre os companheiros de trabalho são essenciais para a socialização.

A revolução parece encontrar um grande obstáculo. A subjetividade parece ser um obstáculo para a luta de classes mas, peculiarmente, é seu impulsor. Há uma tentativa ferrenha de separar os trabalhadores. É, porém, a exploração desenfreada que motiva os trabalhadores a fazer justamente o que o capital não quer: se unir. A beleza da luta de classes é que ela emerge nas tentativas mais medonhas de esmagá-la: procurava-se separar os trabalhadores para explorar cada vez mais, mas essa exploração clama pela união dos trabalhadores.

E a mesma tecnologia que os separa é aquela que os une: foi pelos grupos de whatsapp que os entregadores do iFood e da Rappi organizaram a paralisação massiva ano passado. Em 2019, foram motoristas do Uber que ajudavam manifestantes a escaparem da repressão policial e foram aplicativos de comunicação que auxiliaram na organização de protestos, foi por meio deles que foi combinado onde e quando se encontrar, que rotas tomar.

O que a uberização representa, afinal, para a luta de classes? Uma pedra no caminho. Nada mais que um obstáculo que apenas adia a derrocada inevitável do capitalismo. Não se pode tirar o social do homem: e o trabalho por aplicativos tenta desesperadamente. Mas o homem pede por conhecer seus companheiros, de se unirem e de estarem juntos numa luta que, inevitavelmente, é a mesma entre eles. É por isso que vemos hoje a união de inúmeros entregadores em grandes avenidas como a Avenida Paulista, e em toda a Europa que resultou na conquista de direitos.

Materialmente, a luta de classes encontra percalços, mas nunca deixa de existir. A organização dos trabalhadores encontra percalços, mas se torna ainda mais essencial. Não é um elemento externo, alheio à realidade e às condições materiais a que estamos condicionados, mas se move por elas. Trago essa reflexão porque acredito ser importante entendermos como podemos agir e nos movimentar dentro de um sistema tão dinâmico, e é essencial compreendermos como as condições atingem e influenciam a forma como nos entendemos e como entendemos a nós mesmos.

 
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