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FOME
Anuncia o trem da vida: tem gente com fome
Patricia Galvão
Diretora do Sintusp e coordenadora da Secretaria de Mulheres. Pão e Rosas Brasil
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Foto: Raul Spinassé/Folhapress

“Hoje não almocei, comi uma coisinha. Tinha pouco arroz e feijão que deixei pros meus filhos jantarem”

No ano passado, o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) publicou uma pesquisa sobre segurança alimentar. Os dados são de 2017 a 2018 e demostravam um aumento significativo de pessoas sofrendo em algum nível com a insegurança alimentar, ou seja, desde a falta alimentos em quantidade adequada na mesa das famílias, mudança no padrão de alimentação, com adultos pulando uma ou mais refeições, até atingir crianças. Esse era o pior resultado do Brasil desde 2004. O índice indicava que essa situação atingia mais de 37% dos brasileiros. Além disso, cerca de 4,6% da população, incluindo crianças, passam por uma insegurança alimentar grave, ou seja, não tem alimentos suficientes e passam fome. Um número chocante e inaceitável num país cuja produção agrícola, de acordo com estudo da Embrapa publicado em março deste ano, alimenta 10% da população mundial, ou seja, aproximadamente 800 milhões de pessoas.

Com a pandemia, a fome aumentou. Nos telejornais da mídia tradicional são diversas reportagens denunciando a situação de milhares de famílias que já não consomem nenhuma proteína de origem animal, ou frutas e verduras frescas. Com sorte tem arroz e feijão à mesa. Numa das reportagens, diversas famílias só possuíam fubá para se alimentarem. Na imprensa escrita são publicados cotidianamente dados que demonstram como a fome avança de forma acelerada pelo Brasil com o aumento da cesta básica e um auxílio emergencial insuficiente para garantir o mínimo da alimentação familiar.

“No lixão se eu acho um pacote de bolacha, levo pra casa e rezo pra não fazer mal pros meus filhos”

Chama a atenção que dos muitos depoimentos colhidos pela imprensa geral, a maioria absoluta ou mesmo a quase totalidade seja relatos de mães denunciando a situação precária de alimentação. E na maioria dos casos, mães negras.

A equação perigosa que une o patriarcado à miséria capitalista agravada na pandemia tem um efeito devastador. As casas chefiadas por mulheres e negros são a maioria entre os que passam fome em algum nível entre moderado e grave. Na mesma pesquisa do IBGE de 2020 a insegurança alimentar grave atinge mais os lares chefiados por mulheres, 51, 9% contra 48,1%. O recorte racial é mais escandaloso, 73,9% da população que sofre com a fome são negros.

O desemprego atingiu brutalmente as mulheres. Se, antes da pandemia, já eram maioria entre as fileiras de desempregados, os postos de trabalhos onde a maioria da força de trabalho é feminina, foram os mais atingidos. Setores como alimentação e alojamento, limpeza e educação tiveram quedas de quase 50% de população ocupada. De acordo com o Pnad Contínua, no quarto trimestre de 2020 o desemprego atingia 16,4% das mulheres contra 11,9% entre os homens.

“Não tem mistura faz tempo. Antes tinha ovo, agora nem isso”

Em contrapartida, o trabalho doméstico aumentou com o isolamento social. Cerca de 57% das mulheres, de acordo com o Datafolha, sentiram um acúmulo maior de afazeres domésticos com o fechamento das escolas, o isolamento social e o trabalho remoto. A educação dos filhos em casa, o cuidado com os doentes e as tarefas domésticas ocupam quase a totalidade dos dias. Aquelas que estão trabalhando de forma remota, se desdobram para garantir o trabalho e as tarefas domésticas, muitas vezes num espaço minúsculo, tendo que dividir o computador com as aulas de EAD dos filhos, trabalhando madrugada adentro. As que estão trabalhando fora, nos serviços essenciais ou não, vivem com medo de contaminar os familiares, além da preocupação constante com a segurança dos filhos em casa.

Essa herança do patriarcado custa às mulheres horas e mais horas das suas vidas num trabalho atrofiante, como disse Lênin, que resulta em uma dupla jornada exaustiva física e mentalmente, que rouba a energia dessas mulheres. No entanto, a exploração do trabalho feminino gratuito é extremamente lucrativa para os capitalistas.

Se, por um lado, a própria classe burguesa reconhece a situação trágica e mostra preocupação com o aumento da fome, trazendo relatos sensíveis de mulheres que estão enfrentando a fome na pandemia, arrancando lágrimas verdadeiras de quem ouve esses relatos em meio a recordes do número de mortos, ou seja, não escondem essa situação, pautando nos principais meios de comunicação de massas, por outro tenta disputar a consciência das massas alçando figuras como Luiza Trajano, a dona do Magazine Luiza, como exemplo de garra feminina que nasce na adversidade. Tudo como parte de incentivar o “empreendedorismo”, uma máscara fajuta para a precarização do trabalho.

“Meu filho ficou doente durante a pandemia e tive que acompanhá-lo no hospital várias vezes. Meu chefe me demitiu, eu e outra menina. Só ficou um garçom, que é homem e não tem filhos”

A preocupação da imprensa burguesa se deve não por uma empatia com sofrimento de milhões de brasileiros, especialmente em relação às mulheres. Reflete a preocupação dos empresários com o potencial explosivo da classe trabalhadora contra essa situação. Afinal, é instintivo lutar para não se deixar morrer.

E nos diversos processos de luta revolucionária a fome foi o gatilho e o ódio das mulheres foi combustível para a explosão de lutas desde a Revolução Francesa, em 1789, a Comuna de Paris, em 1871, a Revolução Russa em 1905 e 1917.

Os relatos de 1789 e dos levantes do século XIX, de hordas de mulheres enfurecidas atacando pequenas vendas e mercearias e, em muitos casos, arrancando o pênis dos comerciantes, trazem um relato bem gráfico da violência de gênero sofrida por essas mulheres mais pobres. Ao ver faltar pão, carne na mesa, ao vivenciarem a fome dos filhos, elas negociavam a compra a fiado de comida e cediam à chantagem do pequeno-burguês que exigia em troca favores sexuais. O estupro dessas mulheres é frequentemente motivo de chacota quando se diz que fulano é filho do padeiro, do açougueiro, inferindo a infidelidade da mulher, mas deixando encoberto o estupro tão comum sobre essas mulheres em situação tão vulnerável.

Os levantes operários que marcaram o século 20 contaram com a participação fundamental das mulheres, mesmo quando não eram elas que ocupavam os postos de trabalho, com comissões de mulheres, como foi na greve dos mineiros na Inglaterra nos anos 80, os levantes de mineradores na Bolívia nos anos 60 e 70, etc. A potência do ódio dessas mulheres se traduziu em combatentes incansáveis, nos piquetes de fábricas, nas passeatas reprimidas pela polícia e exército . E essa potência pode ser sentida no movimento de mulheres hoje. Nas meninas do Chile que denunciavam os estupros que sofriam da polícia, os carabineiros, em 2019, mas mulheres de Mianmar em luta contra o golpe militar em meio a pandemia. Pode ser sentida na maré verde que conquistou a legalização do aborto na Argentina.

O nosso ódio é o mesmo dessas mulheres que vieram antes de nós e que se insurgiram contra a miséria, pelo direito ao pão. E vai ser das fileiras operárias, cada vez mais feminina e negra que surgirá um mundo novo. Vamos arrancar tudo da burguesia.

Louise Michel, grande combatente da Comuna de Paris, afirmou: Cuidado com as mulheres quando sentirem nojo por tudo que as rodeiam e se levantarem contra o velho mundo. Nesse dia, nascerá o novo mundo!

“se tem gente com fome
dá de comer”
Solano Trindade

 
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