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COLUNA
Das coisas brutas e das refinadas
Iuri Tonelo
Recife
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Os descaminhos da gestão do capitalismo brasileiro se evidenciam a cada dia, a cada instante. A gente sabia desde o golpe de 2016 a catástrofe que se avizinhava, mas nem o maior dos pessimistas poderia imaginar que a população trabalhadora enfrentaria uma junção de golpe, reformas, Bolsonaro e pandemia. Na tradição dialética sabemos que o todo não é a soma das partes, então as dificuldades são mais complexas e maiores. A dicotomia indigesta entre vida e emprego é o prato do dia a dia para a massa trabalhadora. O sofrimento é com falta de leitos e, também, com as necessidades econômicas cotidianas que não são sanadas. Para uma ampla parcela da população não tem a dicotomia, porque sofre duplamente.

Para uma percepção apurada das coisas é importante ter parâmetros: mirar o sofrimento das massas é um critério importante. Mas isso não significa que setores da população trabalhadora e da juventude, que não estão nos limites do sofrimento, tenham um desgaste desprezível diante da situação. Poderia dar vários exemplos, mas do ponto de vista do sofrimento emocional me toca pensar na situação da juventude. Eu que convivi por longos anos, por força do ofício de professor, junto a adolescentes. Consigo imaginar o quão difícil é para um jovem de 15 anos aceitar que o mundo é o quadrado do seu quarto ou da sua casa, convivendo com sua família. O mundo é a gaiola do canário que descrevia Machado de Assis.

O sistema conseguiu essa grande façanha de sufocar a população nos hospitais, os trabalhadores aglomerados no trabalho, nos ônibus, nos metrôs e a juventude dentro de suas casas. Faz isso para manter as patentes, os lucros com as vacinas, as disputas dos estados nacionais, e toda essa desgraça que se chama capitalismo. Por que todas as cabeças científicas do mundo não estão reunidas pensando uma solução? Porque tudo o que é descoberto não se torna patrimônio da humanidade? Conseguem imaginar que, não fosse o direito à patente, ou seja, ao lucro exorbitante às custas de vidas e as disputas geopolíticas, poderíamos estar nos laboratórios brasileiros hoje produzindo milhões de vacinas em uma escala infinitamente superior e muito tempo antes?

Talvez o próprio leitor concorde e seja crítico do sistema no qual vivemos, mas esteja, ainda assim, desanimado. Mas justamente aqui quero falar que o momento talvez não seja de desanimo. É preciso ler os sinais. Enquanto escrevia essas linhas, Bolsonaro estava fazendo discurso “pró-vacina” em cadeia nacional (demagogia, claro, mas leiamos o sintoma), no mesmo dia que a Lava Jato entrava em crise aguda com a suspeição do Moro, pouco tempo antes de ter ocorrido a elegibilidade do Lula. O que esses fatores expressam e o que eles tem a ver com vocês, lutadores que se mantiveram todo dia odiando esse governo e esse sistema político, atuando no micro e no macro contra ele?

Na linguagem militar se diz “vanguarda” aqueles guerreiros que, numa guerra entre exércitos, adentravam as primeiras filas de um combate. Traduzindo para a batalha atual, seria dizer que alguns dos nossos estão enfrentando Bolsonaro e esse regime num momento em que os inimigos ainda estão vencendo. Contudo é impressionante... todo dia vemos as notícias da catástrofe, mas também vemos, conhecemos, conversamos, acompanhamos milhares que continuam na linha de frente enfrentando. Gritam que Bolsonaro é genocida, resistem de várias formas. Alguns ameaçados, presos por um tempo breve. “Como vai proibir, quando o galo insistir, em cantar?”.

A vanguarda não existe só para atacar quando a “guerra” está favorável, mas também para se defender com o conjunto da classe, para evitar a desorganização, a fragilidade e que os inimigos avancem sem resistência. Então esses que continuam militando dia a dia nesse momento preparatório tem um mérito enorme e, embora não pareça, os efeitos dessa atuação estão operando.

E justamente sobre isso que queria falar: das coisas brutas e as refinadas que compõem o combate. Da necessidade de ampliar nossa visão sobre esse momento. Peço que nos atentemos juntos a essa belíssima passagem de Walter Benjamin:

A luta de classes, que um historiador educado por Marx jamais perde de vista, é uma luta pelas coisas brutas e materiais, sem as quais não existem as refinadas e espirituais. Mas na luta de classes essas coisas espirituais não podem ser representadas como despojos atribuídos ao vencedor. Elas se manifestam nessa luta sob a forma da confiança, da coragem, do humor, da astúcia, da firmeza, e agem de longe, do fundo dos tempos. Elas questionarão sempre cada vitória dos dominadores. Assim como as flores dirigem sua corola para o sol, o passado, graças a um misterioso heliotropismo, tenta dirigir-se para o sol que se levanta no céu da história. O materialismo histórico deve ficar atento a essa transformação, a mais imperceptível de todas.

Essa passagem das Teses sobre o conceito de História nos ajuda a pensar as duas coisas, que julgo serem vitais. Em primeiro lugar, todos os lutadores de vanguarda do país que atuam contra essa situação miserável devem saber que embora pareça que a situação difícil caminhará assim indefinidamente, o curso da história não se determina apenas pelas vontades de Bolsonaro, militares, golpistas, nem pela demagogia das batalhas dentro do STF ou pelas promessas eleitorais de 2022. Todos esses atores tem sua ação, mas no teatro da história o palco e o cenário são decisivos.

O grande determinante do curso da história são as coisas brutas e materiais. A fome da massa da população brasileira, a falta de empregos, as mortes pela pandemia, a falta de leitos, essa humilhação cotidiana tem um efeito potente e visceral nas massas. Esses nojentos que estão no andar de cima não vão conseguir uma hegemonia duradora com o país em recessão de 4% na economia.

E também pelas refinadas, pois embora vemos ainda limites fortes nas direções sindicais e políticas das organizações de massa, e devo dizer com um boa dose de covardia diante desse milicianismo chinfrim que se amedrontaria frente à primeira greve operária mais forte, é preciso ver também os elementos positivos das “coisas refinadas e espirituais” da vanguarda de trabalhadoras e trabalhadores brasileiros: em meio a pandemia, se reparar bem, vemos muitos gestos de confiança, coragem, humor, astúcia, firmeza dos melhores elementos da nossa classe. Não fosse esse combate que se dá todos os dias contra os assédios, explorações, formas de opressão, contra os que “culpam” a juventude todo dia pela pandemia (que infâmia dessa elite!), mantendo de pé nosso cabelo black, nossa sexualidade, nossos valores, se todo mundo se entregasse e amargurasse o gosto amargo da pandemia de forma cética, nossa situação seria muito, muito pior. Bolsonaro e sua trupe tem aspirações fascistas, mas não estamos no fascismo. A correlação de forças entre as classes é o que determina e a nossa classe, em batalhas maiores ou menores, segue batalhando todo dia, há milhões que não aceitam essa situação e atuam sem parar das formas que podem, a despeito das direções.

Toda a vanguarda que tem se colocado na linha de frente nas lutas nos hospitais como as trabalhadoras da saúde, as professoras, metroviários, aeroviários, as e os operários fabris, os jovens trabalhadores do telemarketing ou entregadores, que contra a corrente tem remado no combate à pandemia, aos ataques econômicos, ao governo Bolsonaro e a esse regime de golpes e falcatruas, que estão dando o corpo no momento mais difícil, bem como os desempregados e setores que vem sendo oprimidos por essa situação e se mantém de pé e combatendo com todas as armadas que dispõem, esses estão construindo a poesia do futuro. Sim, os que encaram de frente a situação nesse momento mais difícil e se mantém de pé, por uma lei da teoria militar ou da poética mais sublime, estão sendo talhados pela tragédia como os melhores combatentes de nossa classe, pois estão sendo forjados no adverso.

E aos lutadores, a recompensa. Os que não cederam seguramente estão forjando laços de solidariedade, desses laços que se forjam em momentos difíceis, que ficam. O pragmatismo e a superficialidade dos anos 1990 são colocados contra a parede pelas duras circunstâncias da catástrofe pandêmica. As ilusões miseráveis na "ascensão na empresa" na vida profissional e "na princesa ou o príncipe encantados" na vida privada ganham novos questionamentos, mais intensos e profundos. Os artistas da pandemia não poderão se contentar em enlatar suas artes, os jovens não poderão se contentar com festas quadradas. Custou caro, meu patrão, agora vamos querer tudo com juros.

E o que vamos sentir quando o jogo começar a virar? A grandiosa Larissa Reisner, uma das combatentes das condições dificílimas da guerra civil na Rússia revolucionária, comentando o momento em que passavam a avançar contra o inimigo que parecia antes muito forte, nos diz:

Pela primeira vez, o pânico diante da superioridade técnica do inimigo [Exército Branco] se dissolveu. Ali se aprendia a avançar sob o fogo de qualquer artilharia [...] às vezes a irmandade chega, nos momentos de maior penúria e perigo [...] e ninguém pode dizer que viveu ou que sabe algo da vida se nunca passou a noite no chão com a roupa desgastada e cheia de piolhos, pensando o quão maravilhoso é o mundo, quão infinitamente maravilhoso! Que aqui o velho foi derrotado e a vida segue de mãos limpas por sua verdade irrefutável, pelos cisnes brancos de sua ressureição, por algo muito maior e muito melhor que este pedaço de céu estrelado que se mostra através da escuridão azeviche de uma janela com vidros quebrados: pelo futuro da humanidade
 
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