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Notas sobre as ofensivas ideológicas da CIA na Guerra Fria
Pamela Mendes
Alexandre Azhar
Lucas Santiago Mattos
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A Central IntelligenceAgency (CIA), um dos mais notórios braços da máquina imperialista norte americana é comumente associada a golpes de Estado, espionagem e assassinatos extrajudiciais. De fato, a história de boa parte do século XX, e o destino de milhões de pessoas ao redor do mundo, já foram afetados (para dizê-lo de maneira suave) pelas operações mais “diretas” da agência (notadamente, a classe trabalhadora e o povo pobre de países oprimidos dos quatro cantos da Terra, quando ousaram lutar por libertação). Entretanto, é outra faceta da atuação da agência americana durante a Guerra Fria que pode fornecer uma perspectiva interessante tanto sobre hegemonia, como os caminhos estratégicos da luta dos explorados contra o jugo do imperialismo. Notícias esparsamente vazadas ao longo dos anos, e, eventualmente admissões públicas feitas pela própria Agência, ou mesmo eventos narrados por ex-membros, nos permitem ter acesso ao escopo do que foram as operações da chamada “guerra fria cultural” por parte da CIA. Datando dos inícios da Guerra Fria - pelo menos desde a criação do Office ofPolicyCoordination (OPC), em 1948, encarregado de levar a cabo operações secretas, envolvendo empresas de fachada e financiamentos ocultos - a inteligência americana tinha em seu olhar um horizonte também promover a hegemonia cultural americana, especialmente em uma Europa destruída. Por um lado, promoviam a “cultura americana”, provendo caminho fácil a artistas e pensadores provenientes dos EUA para marcarem presença no cenário cultural. Por outro, os grandes investimentos da CIA tiveram grande influência no cenário intelectual do pós-guerra, e - junto a um processo de desilusão de setores de vanguarda com Moscou e o pelo bonapartismo stalinista, que se gestou principalmente a partir de fins dos anos 50 e meados dos 60 - foram responsáveis pela desarticulação da intelectualidade e da vanguarda militante que foi de grande ajuda para propagar a influência americana.

As décadas seguintes à guerra e a penetração da CIA na Europa ocidental

O cenário europeu logo após o fim da Segunda Guerra Mundial não estava livre de contradições no que diz respeito à hegemonia do imperialismo americano. Se, por um lado, o poderio militar dos EUA se mostrava presente em grande parte do território ocidental do continente, a memória recente da crucial intervenção soviética e seu papel na derrota de Hitler não estava esquecida. Além disso, o potencial hegemônico da URSS - que saiu com um terço do mundo sob a sua influência com os tratados de Potsdam e Yalta – é grande, e a credibilidade carregada por alguns dos organismos internacionais ligados direta ou indiretamente a ela era um fator de preocupação [1]. [2]. Igualmente a CIA avaliava que o cenário intelectual também estava influenciado pela posição da URSS como um contraponto ao imperialismo durante a Guerra Fria, minando parte do espaço que intelectuais de direita ao serem esses identificados como apoiadores mais ou menos dissimulados do Eixo.

Mas esse terreno intelectual estava aberto à disputa. A orientação da própria URSS - a essa altura afundada solidamente na teoria antimarxista do “socialismo em um só país”, e inteiramente privada de qualquer oposição política, após o massacre de Stalin da velha guarda bolchevique - passava a ter como objetivo principal dos comunistas no Ocidente deveria ser esforçar-se para atenuar o risco de uma invasão imperialista contra Moscou. Dessa forma:

O equilíbrio capitalista que ocorreu depois do segundo pós-guerra coincidiu com o que foi chamado, em termos gerais, Guerra Fria(...) esse equilíbrio surge da derrota da revolução na Europa à saída da guerra no contexto dos pactos de Teerã, Yalta e Potsdam e do estabelecimento das respectivas “zonas de influência”. Um elemento fundamental foi o compromisso da burocracia stalinista de congregar esforços para impedir o triunfo das novas revoluções, especialmente no centro (França, Itália e Grécia em particular). (Estratégia Socialista e Arte Militar, p. 500).

Isso significava que o cenário posto era de uma enorme confiança nos PCs oficiais (ligados ao Kremlin) que era conscientemente mobilizada para uma tentativa de preservar a zona de influência soviética e o que não excluía tensões com a hegemonia americana no Ocidente, que era vista (corretamente) pelos soviéticos como acúmulo de forças para uma potencial invasão. Certamente, tratava-se de uma pedra no sapato daqueles cujo emprego era garantir que os interesses dos grandes capitalistas americanos sempre se sobressaíssem, porém, ao mesmo tempo, a estratégia levada a frente pela III Internacional stalinizada engendrou contradições que deixavam vácuos estratégicos e ideológicos que só se aprofundaram com o desenrolar das décadas. A frustração da revolução no ocidente, por trabalho deliberado dos PCs stalinistas, e uma recuperação econômica da Europa, frente a uma URSS cada vez mais afastada – especialmente na visão do público de esquerda – de seu ideal de Estado revolucionário dos trabalhadores proveram condições materiais para um caldo cultural que ia desde abertamente antissoviético ou antimarxista, onde a situação permitia, até aquelas que nominalmente se mantinham à esquerda, mas que afundavam em deriva teórica. [3]

O interesse da CIA em instrumentalizar as teorias francesas contra o marxismo

O filósofo e historiador franco americano Gabriel Rockhill, com ampla contribuição no debate acerca da arte na política e nos usos do discurso político, narra em artigo no periódico The Philosophical Salon como um trabalho clandestino, por parte da Central IntelligenceAgency (CIA) foi fundamental ao surgimento de uma camada intelectual e militante dos chamados “novos filósofos”, cuja importância estratégica para o imperialismo repousava, precisamente no caráter anti-estratégico do seu pensamento, cuja influênciaentre ativistas e setores progressistas ajudou a desarmar a vanguarda revolucionária em momentos decisivos.

A CIA dedicou recursos significativos para ter um grupo de agentes secretos que estudassem a complexa teoria francesa de tendências internacionais, com nomes como Michel Foucault (estruturalista), Jacques Lacan e Roland Barthes (pós-marxistas). Nesse sentido, conforme Rockhill: “A agência de inteligência entende a cultura e a teoria como armas cruciais no arsenal global que se desdobra a fim de perpetuar os interesses dos EUA em todo o mundo”.

Conforme o filósofo, o trabalho de pesquisa da CIA intitulado de “França: Defecção dos intelectuais de esquerda” teve o propósito de estudar a intelectualidade francesa e seu papel na formação de tendências políticas, diante do destaque da esquerda na era pós-guerra devido à resistência do comunismo ao fascismo, tendo em vista a forma como a direita estava desacreditada por conta da contribuição com nazismo, xenofobia, exclusão e fascismo. Por outro lado, à esquerda, havia um descontentamento intelectual com o stalinismo e o marxismo e um afastamento do debate teórico socialista, e à direita, os chamados “Novos Filósofos” faziam campanhas de difamação ao marxismo. A CIA na França se aproveitava dessa circunstância cultural e política para coletar dados teóricos à direita que beneficiassem a política externa dos EUA, sobretudo diante do movimento antimarxista e do avanço do neoliberalismo, que alimentaram as guerras financiadas pela CIA, conforme o historiador Greg Grandin, como Guatemala em 1954, República Dominicana em 1965, Chile em 1973, El Salvador e Nicarágua nos anos 1980, no qual os Estados Unidos emprestou apoio financeiro, material e moral para regimes contra insurgentes.

A agência certamente via potencial nesta nova geração de pensadores “detratores do marxismo” e relatou como a ascensão de (para citar alguns) Bernard-Henri Levy, André Glucksmann e Jean-François Revel sobre “comunistas ilustrados” (em suas palavras) como Sartre, Barthes, Lacan e Louis Althusser poderia favorecer seus interesses. Muitos dos teóricos “detratores do marxismo” supracitados, justamente por seu histórico de adesão ao marxismo em sua juventude, acabaram por fornecer narrativas de uma suposta “evolução pessoal e histórica” e que a transformação social igualitária é coisa do passado.

O que interessava à CIA era a possibilidade que se colocava de absorver uma camada da sociedade tradicionalmente contestatória para dentro dos limites estratégicos da hegemonia burguesa. Uma tarefa que se apoiava, é claro, em uma série de fatores históricos.

A política de “coexistência pacífica com o imperialismo” levada a frente pela URSS desde o fim da segunda guerra mundial levou o PCF - que saiu da guerra com enorme prestígio, principalmente por sua grande identificação com os partisanos antifascistas – a abandonar de maneira quase completa qualquer perspectiva revolucionária de transformação radical da sociedade. Representantes fiéis da linha oficial da III Internacional stalinizada - ditada pela burocracia de Moscou - aplicam-se a atuar institucionalmente dentro do Estado burguês e põe os organismos operários e estudantis que dirigem a serviço não da auto-organização dos explorados, mas de agir como pontos de pressão política para favorecer a política externa da URSS. Eleitoralmente, o PC francês segue a mesma linha, chegando a compor o governo vigente na França no tempo em que o relatório da CIA foi grafado, e alcançando absurdos como seu boicote ao movimento de maio de 68, quando sindicatos ligados à CGT (então controlada pelo PCF) abertamente chamam aos trabalhadores que não se unissem aos estudantes, e mesmo espalham boatos – condizentes com a narrativa reacionária do governo – de que os protestos tratavam-se de “esquerdistas e anarquistas” ( e no qual, alternativamente, Foucault ganha muita popularidade) e mesmo apoiar a invasão francesa da Argélia (!). Por um lado, todo o processo levou a uma vertiginosa desintegração da popularidade do maior representante da III Internacional em solo francês, o que evidentemente, deu força a narrativa de muitos “ex-marxistas” e “ex-PCF”. Por outro lado, a burocratização e imobilização dos organismos operários por parte do PCF favoreceu não só a saída da cena política do movimento operário, como uma crescente separação entre os trabalhadores organizados, o movimento estudantil, e a intelectualidade. Antes mesmo que a CIA engatasse propriamente seus trabalhos, já via os intelectuais perdendo espaço político - os mais diretamente ligados ao PCF, desacreditados, e outros simplesmente isolados de sua antiga posição de ligação orgânica com a política nacional.

Neste caldo cultural, onde burocracias e direções dos partidos comunistas oficiais e dos movimentos de massas mais e mais se afastavam da possibilidade de se apresentarem como alternativa de transformação radical, a CIA se aplica a explorar ao máximo a possibilidade de que, com um pouco de sua ajuda, esse espírito de época reifique-se como teoria política derrotista. Rockhill escreve: “Mesmo os teóricos que não eram tão opostos ao marxismo quanto esses intelectuais reacionários deram uma contribuição significativa para um ambiente de desilusão com o igualitarismo transformador, o desapego à mobilização social e a “investigação crítica” desprovida de política radical. Tal fato é extremamente importante para entender a estratégia geral da CIA em suas amplas e profundas tentativas de desmantelar a esquerda cultural na Europa e em outros lugares. Reconhecendo que era improvável que pudesse aboli-la inteiramente, a organização de espionagem mais poderosa do mundo procurou afastar a cultura esquerdista de uma política anticapitalista e transformadora resoluta para posições reformistas de centro-esquerda que são menos abertamente críticas às políticas externa e doméstica dos EUA (...) também aspirava a fragmentar a esquerda em geral, deixando o restante da centro-esquerda com apenas um mínimo poder e apoio público (bem como sendo potencialmente desacreditada por sua cumplicidade com a política da direita de busca pelo poder, questão que continua a atormentar os partidos contemporâneos institucionalizados à esquerda).”

O estudo da CIA citado acima também versa elogiosamente sobre os chamados “marxistas reformados” – descritos por eles mais ou menos nos termos de “intelectuais que se propuseram a aplicar a teoria marxista, mas que depois repensaram e rejeitaram toda a tradição”. Sobrea contribuição da Escola de Annales (corrente historiográfica) e sobre o estruturalismo, particularmente Claude Lévi-Strauss e Michel Foucault, fundamentalmente por seu feito de suplantar a influência do marxismo nas Ciências Sociais. Neste caso, é ilustrativo, por exemplo, o parágrafo do estudo dedicado à chamada “Nova Direita” [4], e o papel prestado – decerto não intencionalmente – por Foucault ao apoiar suas supostas empreitadas em “lembrar filósofos das consequências sangrentas do racionalismo social do século XVIII”, o que em última instância favoreceu o estabelecimento de uma corrente profundamente reacionária.

Rockhill afirma: “(...) De acordo com uma concepção etapista da história progressista (que normalmente é cega à sua teleologia implícita), o trabalho de figuras como Foucault, Derrida e outros teóricos franceses de ponta é muitas vezes identificado intuitivamente como uma forma de crítica profunda e sofisticada que presumivelmente ultrapassa qualquer coisa encontrada nas tradições socialista, marxista ou anarquista. É certamente verdade, e merece ênfase, o fato de que a recepção anglófona da teoria francesa (...) tem importantes implicações políticas como um pólo de resistência à falsa neutralidade política, aos tecnicismos seguros da lógica e da linguagem, ou à ideologia do conformismo operante nas tradições da filosofia anglo-americana (...) No entanto, as práticas teóricas de figuras que deram as costas (...) a tradição de crítica radical – que significa resistência anticapitalista e anti-imperialista – certamente contribuíram para a deriva ideológica da política transformadora. Segundo a própria Agência de espionagem, a teoria francesa pós-marxista contribuiu diretamente para o programa cultural da CIA de persuadir a esquerda para a direita, ao mesmo tempo em que desacreditava o anti-imperialismo e o anticapitalismo, criando assim um ambiente intelectual no qual seus projetos imperiais poderiam ser perseguidos sem serem incomodados pelo exame crítico sério da intelligentsia.”

Em outro sentido, o pensamento foucaultiano acabou sendo útil a esse fim, já que “Foucault constrói toda sua teoria em um diálogo de negação ao marxismo. Se o marxismo é a análise da luta de classes e a utilização da luta de classes para vencer, a de Foucault é uma teoria de como o “Poder” vai se aperfeiçoando e se fazendo cada vez mais eficaz para poder reprimir toda resistência. E, em última instância, o que defende como estratégia, já que não há poderes concentrados no Estado, mas sim micro-poderes, são pequenas resistências parciais. Nesse sentido, para Foucault não há estratégia, porque o poder não se concentra em nenhum aparato central – como o Estado –, e apenas há possibilidade de resistências parciais, não podendo haver uma estratégia que é a arte justamente de derrotar o Estado e o poder hegemônico de uma classe dominante sobre outra para manter seu domínio. São pensadores anti-estratégicos”. (ALBAMONTE, E, 2017, sp)

A ofensiva da CIA

Um setor que tinha um papel preponderante neste sentido era a intelectualidade. O papel que a vanguarda artística e acadêmica tinha na “Guerra Fria Cultural” era pivotal, e como um relatório de pesquisa da própria CIA, recentemente tornado público revela, a agência avaliava que, na França em particular, acadêmicos tinham grande influência sobre a opinião pública. Ainda segundo o relatório, era visto com preocupação pelos espiões americanos que a grande maioria da elite intelectual francesa do pós-guerra fosse composta de membros ou simpatizantes do Partido Comunista Francês (PCF), algo que se agravava ainda mais com as inúmeras iniciativas patrocinadas direta ou indiretamente pela URSS nos “congressos pela paz”, que buscavam unificar progressistas, pacifistas, liberais entre outros moderados de esquerda sob a visão (longe de incorreta) de que a máquina de guerra americana é a principal responsável pelas guerras e a destruição no mundo, orientando a opinião pública contra qualquer tentativa de ofensiva militar direta contra os Estados Operários.

A tarefa à qual a CIA se lançou, então, era clara: desarticular esta ampla rede de apoio à URSS e crítica ao imperialismo americano, e erguer no imaginário popular uma visão de que a sociedade capitalista era uma forma de civilização superior, mais amigável e receptiva à arte e à cultura, portanto trazendo para sua trincheira, mesmo que não diretamente, todos os intelectuais e artistas até então favoráveis ao lado oriental do muro de Berlim.

Dificilmente poderia se falar do envolvimento da CIA na cultura do séc XX, sem mencionar o Congress for Cultural Freedom (CCF). Fundado em 1950, na cidade de Berlim, tratava-se de uma organização ampla de intelectuais e artistas de diversos ramos organizada ao redor da promoção de visões anticomunistas e da ideia de que a sociedade burguesa é mais favorável ao florescimento da cultura. Em uma agora redatada publicação no site da própria Inteligência americana sobre a história do Congresso ele é descrito como “uma das operações secretas mais ousadas e eficazes da CIA durante a Guerra Fria”. O que é mais digno de nota sobre a organização – que funcionou com financiamento secreto dos EUA até a revelação do esquema em 1966 e por mais alguns anos depois, com financiamento privado – é como ela ilustra a chamada “estratégia de coleira frouxa” que a CIA adotou em se tratando de cultura. Ao invés de controlar rigidamente a produção do CCF, ou anunciá-lo como uma empreitada abertamente patrocinada pelo governo dos EUA, a aposta era em usar os amplos recursos do Estado americano para fortalecer pontos de vista que, mesmo que não explicitamente anticomunistas ou entusiasticamente pró-americanos, permitissem divergir a discussão, dificultando a articulação militante da esquerda organizada no público geral e lentamente criando um consenso menos crítico à agressão americana mundo afora. Em seu auge, o CCF publicava mais de duas dúzias de jornais literários e políticos em várias línguas, incluindo a famosa Encounter britânica. Mantiveram agentes em, pelo menos, 35 países, e organizou dezenas de conferências, reunindo “alguns dos mais eminentes pensadores ocidentais”, segundo as palavras da agência.

Tudo isso foi feito através de fundações de fachada, montadas pela agência com auxílio de milionários americanos para canalizar recursos do governo americano. Tal era o caso desde o primeiro congresso do CCF construído com recursos repassados através de Michael Josselson, um milionário americano que serviu ao exército durante a guerra e atuava como ligação da CIA ao CCF, não só em assuntos financeiros, mas sutilmente representando seus interesses como membro do Comitê Executivo. A Fundação Rockefeller foi outra grande contribuidora, inclusive cedendo espaço em seus museus para conferências e exposições. Uma relação tão profunda que, mesmo após a exposição do financiamento da CIA ao CCF, e seu subsequente afastamento, o congresso manteve seu trabalho por quase 10 anos sustentado pela Fundação Ford [5].

Em uma entrevista ao jornal The Independent, o ex agente da InternationalOrganization Division da CIA, Thomas W. Braden, expressa sua visão do complô dos espiões americanos como uma espécie de “mecenato” do novo século, provendo sustento material para impulsionar artistas que a agência considerava que poderiam dar boa reputação aos EUA. Aqui, a enorme rede do CCF, além de outras iniciativas e parcerias ocultas da CIA garantiam que uma visão de mundo compatível (direta ou indiretamente) com o imperialismo americano ganhasse um holofote muito maior que seus opositores.

Em um artigo, escrito para o jornal The Saturday Evening Post, ainda em fins dos anos 1967 (e sugestivamente intitulado Fico feliz que a CIA seja ’imoral’), Braden narra sua emoção ao ver como “a Orquestra Sinfônica de Boston ganhou mais aclamação para os EUA em Paris do que John Foster Dulles ou Dwight D. Eisenhower poderiam ter comprado com cem discursos”. No previamente mencionado relatório, feito pela própria CIA sobre as tendência intelectuais da sociedade francesa comemora como “hoje (se referindo aos anos 60 e 70) a pedra de toque do pensamento esquerdista é uma atitude crítica com relação à URSS, da qual um dos corolários é rejeitar os partidos vindos da tradição do Komintern [o PCF]... A questão essencial “não é a barbaridade de Pinochet, nem a demolição da manufatura de aço de Lorrain, nem mesmo o imperialismo de Reagan. A questão fundamental é aquela de uma atitude crítica com relação à URSS” [6]. Aqui, duas coisas podem ser observadas: primeiramente, como era considerado importante a percepção de que os EUA eram capazes de produzir cultura, e a importância que a agência dava em construir uma imagem dos EUA como “farol” da cultura “livre”. Além disso, a importância que teve catapultar para os olhos do público intelectuais cuja produção e ativismo não iam de encontro direto aos interesses americanos, mesmo que muitos fossem, inclusive intencionalmente, esquerdistas. A anteriormente mencionada postura defensiva dos partidos ligados a Moscou, junto ao espanto do Ocidente (especialmente entre muitos comunistas e na esquerda em geral) com a revelação dos brutais crimes de Stalin contra os trabalhadores no relatório Kruschev, também contribuíram, como admite o próprio estudo da Agência, para enfraquecer a penetração e influência do antiamericanismo, e, por tabela, facilitar a vida do imperialismo americano.

O que se mostra aqui é uma dimensão eminentemente material da chamada “disputa narrativa”. Isto é, a preponderância de determinadas ideias, pensadores e mesmo estilos artísticos mostra-se intrinsecamente conectada ao auxílio material fornecido em função de interesses completamente externos a si próprios. De fato, a CIA compreendia bem que o celebrado fato de que “livros escritos pelas Novos Filósofos se tornavam bestsellers instantâneos – um feito impressionante, em uma era onde a maioria dos trabalhos filosóficos logravam publicação apenas através de uma altamente subsidiada imprensa universitária” [7] tinha relação direta com a fama que seus nomes obtinham com sua participação constante em programas de televisão, por emissoras hegemônicas, mais do que felizes em recebe-los para comentar os assuntos do momento (outro fato observado no relatório), para além do caminho fácil que suas publicações tinham para o grande público, devido à imensas redes, como as do CCF, que os favoreciam. Embora a opinião editorial do The Independent em seu artigo onde consta a entrevista com Braden seja de que o Impressionismo Abstrato “provavelmente” teria se tornado o movimento artístico dominante dos anos do pós-guerra mesmo sem o patrocínio da CIA, um caso poderia ser feito de que, independentemente dos méritos do movimento artístico em si, a capacidade de suas concepções ideológicas e estilísticas de influenciar artistas mundo afora, ajudando a consolidar a ideia de que os EUA podem, sim, produzir arte de alto padrão não é tão facilmente separável das vantagens que seus criadores aproveitaram (mesmo sem seu consentimento).

O ex-oficial de caso, Donald Jameson, detalha, no mesmo artigo do The Independent, que a CIA não inventou o Impressionismo Abstrato, mas reconheceu o papel que poderia cumprir, e investiram nisso. No caso, atribui-se nominalmente ao Impressionismo Abstrato a vantagem de contrastar de todas as formas possíveis com o extremamente estrito e regulamentado “realismo socialista” em um momento onde a arte na União Soviética era monitorada e controlada de perto, permitindo pouca experimentação ou variação, e se buscava mostrar aos artistas do Ocidente como os EUA são mais receptivos a todas as formas de arte do que a URSS. [8]

As décadas nas quais os “mecenas” do imperialismo ianque esforçaram-se para capitalizar nas contradições dos PCs stalinizados e da III Internacional para solidificar as bases de sua hegemonia foram, igualmente, marcadas por processos de sublevações de massas e revoluções de sucesso [9], que carregavam um profundo questionamento tanto ao imperialismo americano, como às teorias derrotistas que começavam a erguer-se na Europa. A projeção cultural lograda pelos EUA tampouco foi capaz de impedir a generalização de sua própria crise hegemônica, aberta com a crise dos ’70 e que segue até hoje, especialmente após 2008, que só motivou questionamentos mais profundos ao status quo capitalista. É um estudo de caso fascinante tanto do potencial quanto dos limites (especialmente materiais) da construção de hegemonia cultural, assim como da necessidade imperiosa de conectar o pensamento crítico com a estratégia revolucionária.

Na segunda parte desse artigo, será explorada precisamente essa conexão, suas tensões e perspectivas, frente à crise hegemônica capitalista e o ressurgimento da luta de classes que, decididamente, abrem perspectivas aos revolucionários.

 
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