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COLUNA
Um conto chinês em Davos
André Barbieri
São Paulo | @AcierAndy

Como na obra cinematográfica de Borensztein, vai sendo difícil se livrar da presença da China nas disputas internacionais.

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Charge: Ferguson/Financial Times

O Fórum de Davos passa quase despercebido em 2021. Não admira que tenha perdido alguns holofotes, depois dos acontecimentos do assalto ao Capitólio e a assunção ao império de Joe Biden. Mas algumas placas tectônicas começaram a se mover. Biden não participou do evento, e Xi Jinping se beneficiou da ausência.

Como em 2017, quando o autocrata chinês deslocou o imperialista norte-americano Trump no papel de “defensor do multilateralismo”, quatro anos depois Xi desenhou o mesmo panorama. Afagou os capitalistas do mundo inteiro, disse que problemas globais não podem ser resolvidos nos limites de um só país (exceto o problema do socialismo, que para mandarins da cepa stalinista, sabemos bem, poderia florescer nos estreitos limites nacionais), e terminou com um apelo contra divisões entre as nações e o “confrontacionismo ideológico” imposto pelos Estados Unidos. Colheu os frutos que buscava. Nas palavras do fundador do Fórum, Klaus Schwab, “Quatro anos depois que Xi fez seu famoso discurso em Davos, voltou a enfatizar a noção do multilateralismo num momento crucial da história humana”.

Os capitalistas sabem que a China é um artefato necessário à recuperação da economia mundial. De fato, o país cresceu 2.6% em 2020, tendo no quarto trimestre alcançado 6.5% de evolução no PIB, mesmo com a pandemia. As previsões do FMI de recuperação mundial se baseiam nos resultados da China, assim como no entorpecimento que causa a combinação da derrota de Donald Trump e o início da vacinação nos Estados Unidos. A nova tração no comércio mundial, puxado pela China, resultou na recuperação dos níveis pré-pandemia. Segundo o Netherlands Bureau for Economic Policy Analysis, o comércio mundial de bens e a produção industrial retornaram ao nível de 2019, crescendo 2.1% e 1.1% respectivamente. Enquanto a China cresceu 7% em sua produção industrial em taxas anuais, os EUA ainda registram queda de 5.4%.

Tendo uma capacidade produtiva e tecnológica ainda substancialmente inferior à dos Estados Unidos – que, ainda em decadência hegemônica, segue sendo a principal potência mundial – a China, no entanto, recuperou em certa medida seu papel contratendência relativa às dificuldades econômicas globais, agravadas agora pela pandemia. Que o leitor não confunda essas previsões com uma recuperação consolidada, algo longe do panorama, com as conseqüências não resolvidas da crise mundial de 2008, e a queda de 4.4% do PIB global em 2020. O fato é que não há pessimismo nas análises das agências mundiais quando o tema é a economia em 2021.

Não à toa Pequim é vista como o Lírio do Vale balzaquiano na paisagem econômica. Em editorial, o Nikkei defendeu que a “estrutura multilateral deve incluir a China e não isolá-la", dando uma visão sobre as contradições do governo do Japão diante do crescimento chinês. O presidente sul-coreano Moon Jae-in, em coletiva reportada pelo South China Morning Post, disse que as relações com Washington e com Pequim "são igualmente importantes para nós". Até mesmo Kurt Campbell, novo “tsar da Ásia” no governo Biden, admitiu no Foreign Affairs que vai ser difícil convencer aliados tradicionais a escolher entre Washington e Pequim.

Campbell conhece a mentalidade de Frankfurt. E em Davos, quem apanhou essa deixa foi justamente a chanceler alemã, Angela Merkel. A representante do imperialismo alemão insistiu que o mundo não pode se ver forçado a escolher entre dois grandes blocos. Mas o detalhe nas entrelinhas é que Merkel concordou com a mensagem de multilateralismo de Xi Jinping, sendo dura com os EUA quanto à tributação das gigantes tecnológicas do Vale do Silício (Amazon, Facebook, Google, Apple). Deu asas a esse aspecto do conto chinês.

Essa simpatia a Pequim tem suas causas terrenas. A União Europeia acabou de assinar um Acordo de Investimento com a China, em que esta se dispõe a eliminar limites de participação acionária ou requisitos de joint venture em diversos setores industriais e de serviços, em troca de livre acesso aos mercados europeus. Outro motivo é a dependência da indústria alemã, especialmente o setor automotriz, do mercado chinês. Ainda que a Bundesverband der Deutschen Industrie, patronal alemã mais concentrada, tenha classificado a China como “competidora estratégica”, a Alemanha tem mais de 5000 empresas na China, e um Investimento Estrangeiro Direto de 80 bilhões de euros. As cadeias de produção alemãs são muito interligadas com as exportações à China, o que faz de Berlim uma apoiadora acérrima da superexploração do proletariado chinês, com o beneplácito do Partido Comunista.

Com os Estados Unidos, Merkel ainda espera melhorar relações, com a nova administração Biden. Mas não será simples. Washington se opõe não apenas à tributação das suas high-techs, mas também ao gasoduto Nord Stream 2, acordado entre a Alemanha e a Rússia, e que deve levar gás russo à União Europeia, segundo o Süddeutsche Zeitung. A Alemanha é também contrária a tentativa dos EUA de criar um D10 (uma espécie de “grupo de dez democracias”, no linguajar imperialista, que deveriam se opor à burocracia autocrática de Pequim). Boris Johnson, primeiro ministro britânico, ficou encarregado de levar adiante no Forum a ideia, que já “faz água”.

Os atritos da Europa com a China seguem fortes, e não menos por parte do imperialismo alemão, que não quer saber de ver suas empresas estratégicas, como a KUKA, compradas por Pequim. Mas as incursões da China no Velho Continente são notáveis, e contam com especial apoio de países como Hungria, Polônia, Eslovênia e outra dezena de nações do Leste europeu, aliados estreitos do governo chinês e beneficiários da diplomacia da vacina de Xi Jinping.

No intranscendente cenário de Davos, portanto, há coisas interessantes. Como na obra cinematográfica de Borensztein, vai sendo difícil se livrar da presença da China nas disputas internacionais. Os Estados Unidos viu que precisará trabalhar para remanejar aliados para sua estratégia de contenção da China. A Alemanha quer atuar como “árbitro sensato”, fazendo gestos a Pequim, sem esquecer que é a segunda potência imperialista do mundo e não poderá repetir a postura “indiferente” ao avanço chinês, no ocaso da era Merkel. Ambos os países esperam que Xi possa esmagar a luta de classes na China – assim como fez em Hong Kong, com apoio das multinacionais alemãs e estadunidenses – é a grande esperança do imperialismo mundial - e do próprio governo chinês, que se vê acossado por greves operárias contra o desemprego e os atrasos salariais em meio à pandemia -, ao mesmo tempo em que busca segurar o ritmo de desenvolvimento do dragão asiático. Japão e França seguem tocando o segundo violino, e a Inglaterra nem isso mais.

Abaixo de todos, a conclusão inquietante que ninguém se atreveu a reconhecer: a impossibilidade de que o mundo retorne à etapa pré-Trump.

 
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